Manual de instruções para 4 questões existenciais de escritores

03/05/2021

© Madua

 

Em seu Histórias de cronópios e de famas, Julio Cortázar tem um manual de instruções. O texto tem uma série das mais importantes instruções, por exemplo: como chorar, como subir escadas, como cantar, como entender três quadros famosos, como dar corda num relógio. É um texto, além de divertido e irônico, de uma sensibilidade mordaz.

O texto — conto? Crônica? Narrativa? — é conhecido. É famoso em oficinas de criação literária justo por esse convite a pensar atividades que nos pareçam instintivas e colocá-las num formato de manual. Pensar o que fazemos sem pensar. Mas a coisa menos engraçada que se pode fazer é explicar uma piada, e a coisa mais distante da experiência de leitura é explicar a leitura para quem não leu. Antes que os amigos acadêmicos me xinguem: é uma piada. Quis dizer que explicar uma piada não é engraçado, e explicar o texto literário nem sempre é… Bem, agora tenho um parágrafo que explica uma piada, um texto literário e destrói um ditado. Se depois de tudo isso, a prezada pessoa leitora ainda estiver lendo, agradeço.

Como comentei, já foi muito reinterpretado. Mas não por mim. E sei que estamos num momento em que brincar de bancar Cortázar não parece muito apropriado, mas talvez por isso seja o mais apropriado. (Essa não vou explicar, hein?)

Resolvi então pegar as perguntas irrespondíveis e responder em formato de manual. Como superar o bloqueio criativo, essas coisas. Não porque não tenham respostas, mas porque as respostas são o oposto do manual. Ao contrário de subir escadas, que parece um processo que todos fariam da mesma maneira, o escrever exige o famoso autoconhecimento. O que funciona pra mim não funciona pra você. Eu posso dar dicas? Posso. Mas no final das contas, um escritor sempre fala da própria experiência.

Então, vamos lá. O manual objetivo para ser escritor.

 

Como superar o bloqueio criativo

Duração: 3 dias

Você vai precisar de: um computador, uma escrivaninha, uma casa, duas crianças de 0 a 6 anos, uma pia de louça suja, uma cristaleira, um celular com acesso a internet e WhatsApp instalado, uma agência de correios, um modo de transporte (carro, ônibus, Uber, bicicleta), uma máquina de lavar (máquina de secar opcional), um varal, prendedores, um emprego que forneça contratos de trabalho, e-mails atrasados, estantes, uma cama, lençóis, roupa suja, livros variados, um scanner (impressora opcional), o livro Os tais caquinhos de Natércia Pontes.

  1. Saia da frente do computador.
  2. Lave a louça.
  3. Mande mensagens e memes no WhatsApp.
  4. Entre no Twitter.
  5. Fique furioso com o atual estado das coisas.
  6. Reclame no WhatsApp.
  7. Faça textões nas suas redes sociais. Todas elas.
  8. Cheire suas roupas paradas e defina qual tem que ir pra lavar.
  9. Separe as roupas por cor e por material.
  10. Coloque as roupas para lavar. Escolha a melhor opção de lavagem conforme a máquina que tiver. Conforme o item a lavar, use alvejante ou amaciante além do sabão.
  11. Se as roupas estiverem muito novas, uma dica é usar um daqueles lencinhos tipo Lave sem medo, que pega a tinta de roupas. Por outro lado, os lencinhos são caros. Use com moderação e quando possível, recicle.
  12. Tire uma soneca, você merece.
  13. No meio-tempo, é essencial que você não abra o computador, ou pegue numa folha de papel. Se abrir o computador, vai perder o calor retido ali e o texto vai abatumar.
  14. Após a soneca, avalie seus lençóis e decida se precisam ser lavados também.
  15. Quando as roupas estiverem lavadas, separe prendedores. Pendure suas roupas para secar no varal. Nunca deixe a roupa parada na máquina.
  16. Resolva pepinos burocráticos de trabalho. Escaneie aquele documento. Assine aquele contrato.
  17. Se possível, vá ao correio.
  18. Olhe as pessoas com ou sem máscara. Julgue-as conforme seu alinhamento político.
  19. No correio, observe a cara das pessoas e tente julgar em quem elas votaram nas eleições passadas.
  20. Lembre-se de que temos três mil mortos por dia e cada uma dessas pessoas está de luto por alguém — próximo ou não.
  21. Responda os e-mails.
  22. Evite começar uma resposta com um pedido de desculpas pela demora. Ninguém quer saber que você demorou a responder porque estava numa crise criativa. Sempre comece uma resposta com um agradecimento. Obrigada pela sua paciência, obrigada pela resposta etc. Minha mãe me ensinou essa.
  23.  Ao chegar em casa, mesmo que tenha uma máquina de secar roupas, opte por secar o que puder no varal. Muitos itens delicados e alguns tipos de materiais encolhem. Quando eu não era muito experiente com máquina de secar, uma calça jeans encolheu, eu achei que era só o tecido menos flexível pós-lavagem e beirei um transtorno alimentar de duas semanas.
  24. Se tiver filhos, coloque-os numa estante bem alta. Deixe marinar.
  25. Você já tirou uma soneca? Você realmente merece uma soneca.
  26. Leia um livro. Evite se comparar com o autor, em especial em critério de idade. Não pense que na sua idade, David Bowie já era um gênio.
  27. Lembre-se que David Bowie não era um escritor, mas se quisesse ser, seria um escritor melhor que você — mesmo ele estando morto.
  28. Ouça The rise and fall of Ziggy Stardust no volume máximo. Se os filhos reclamarem, atire neles com uma arma de chumbinho para que caiam na estante.
  29. Caso os filhos se machucarem na queda, providencie primeiros-socorros e/ou os leve à emergência. Na emergência, repita os passos 18 a 20.
  30. Volte para casa. Não mate seus filhos
  31. Lave a louça que não está suja, inclusive a da cristaleira.
  32. Volte a ler. Leia o novo da Natércia Pontes.
  33. Se você não conhece Natércia Pontes, passe algumas horas perseguindo a autora nas redes sociais. As gêmeas são uma graça.
  34. Recoloque as suas crianças na estante e as aprecie. Elas não são como as gêmeas de Natércia.
  35. Liste todas as maneiras como suas crianças são diferentes das gêmeas de Natércia. Atenção a esse passo: cuidado para não abatumar ou perder o calor.
  36. Quando sentir o corpo em absoluta exaustão, deite-se na cama.
  37. Tenha a sua ideia mais absolutamente genial, que revolucionará toda a literatura.
  38. Durma.
  39. Ao acordar, ao ser pressionada (pela culpa, por outra pessoa, por um prazo), conte da vez que sua calça jeans encolheu e você quase desenvolveu um transtorno alimentar.
  40. Inclua a dica de etiqueta de sua mãe. Falar da mãe é bom: psicanalistas e acadêmicos adoram.
  41. Sua mãe pode ter encolhido sua calça sem saber. Pronto.
  42. Tire os filhos do texto. Quer dizer, da estante.
  43. Aprecie os três parágrafos de um texto ruim que fez.
  44. Tente melhorar esses três parágrafos.
  45. Enxague. Aplique shampoo mais uma vez. Repita. Após o shampoo, aplique condicionador.

 

Como encontrar agentes

Duração: 4h+

Você vai precisar: uma lista telefônica, um telefone, papel caneta.

  1. Encontre uma lista telefônica. Abra-a em “a” de agências. Agência de qualquer coisa: publicidade, turismo, até literária. Evite a agência de correio que visitou no “Como superar bloqueio criativo”.
  2. Ligue para cada uma dessas agências e explique seu próximo projeto de livro.
  3. Reitero a importância e trabalhar com listas telefônicas e telefonemas. O escritor de verdade ama telefonemas.
  4. Não se apresente, não diga nada. Aguarde um “alô” e largue: “Estou escrevendo essa crônica inspirada num texto do Cortázar, que não é bem um texto literário, é mais…”.
  5. Cada vez que desligarem, tente o próximo número. Se quiser adicionar o drama, risque o nome da agência.
  6. Avance até que não desliguem.
  7. Quando encontrar alguém que vá até o final da sua história, agradeça e peça o endereço.
  8. Anote o que disse palavra por palavra.
  9. Use o telefone mais uma vez e envie um vinho para o santo que te ouviu.
  10. Pronto, agora você tem uma sinopse.
  11. Desculpe, eu disse agente? Você entendeu agente literário? Quis dizer o agente dentro da sua história.

 

Como conseguir escrever durante uma pandemia

Duração: 15 minutos

Você vai precisar de: uma biblioteca

  1. Ignore seus instintos de olhar redes sociais. Nada vai te ajudar.
  2. Se alguém que você gosta (ou até você mesmo) estiver num momento difícil, vá até a biblioteca.
  3. Tranque a porta da biblioteca e ignore qualquer ruído que venha de fora.
  4. Já parou de olhar o Instagram?
  5. Inspire e aprecie a biblioteca e seus livros e como você é um autor grandioso por ter uma biblioteca.
  6. Encontre um de seus autores favoritos.
  7. Eu mandei não olhar o celular.
  8. Folheie o livro. Resista a tentação de cheirar o livro. Você está aí para trabalhar.
  9. Larga essa droga de celular.
  10. Encontre uma ideia genial de outro autor.
  11. Roube.

 

Como agir se te pegarem roubando uma ideia

Duração: 10 segundos

Você vai precisar de: madeira (para esculpir sua cara de pau)

  1. Diga que foi uma referência.
  2. Diga que vê essa dúvida como um elogio.
  3. Elogie outras coisas que o autor fez.
  4. Mude de assunto.

 

***

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges PolessoMarcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

 

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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