Portuspanglish II: os não-nativos contra-atacam

15/10/2021

 

Depois do texto do Portuspanglish, trago Portuspanglish II: o brasileiro ataca de volta. Não que eu tenha voltado a falar português, não por um tiro longo. Continuo sem saber que expressão funciona em que idioma, para piorar meu espanhol está com influências de um livro venezuelano de 1924 (La Vorágine). Mas agora temos um retorno de minha língua mãe, exótica em muitas avaliações: uma multidão a traz, a carrega, com alegria e celebração e confusão,  carrega-a em seus braços, uma espécie de stage diving em movimento, sendo a plateia meus alunos de português e o cantor levemente sem noção, o idioma este levemente sem noção.

Porque cá entre nós: que idiominha.

Explique pros seus alunos uma regra, eles acharão um problema um minuto depois. Tente explicar por que alguns estados “chiam” (termo meu) o “te” e o “de” (fazendo tchi e dji) e outros não. Depois de dar a regra simplificada, encontre aquele aluno que quer saber mais e te visita no seu escritório nas office hours, perguntando de sons nasais e sílaba tônica. Você acha que explicou de forma impecável por que em “tente”, o primeiro “ten” é fechado, para ser seguido de “tchi”. Tem-tchi. Em resposta, o estudante dirá que viu num filme um sujeito que falava “/tchi/uria”, sendo que na minha suposta regra (agora já despida de sua autoridade) seria /te/oria.

Explique por que na música que você passou, o sujeito fala “Isso!” para tudo, concordando, sendo que você disse que se algo estava perto, seria isto. E por que a Elis Regina fala “frechada” em Tiro ao Álvaro. Explique que na teoria, a prática é outra e encare alunos frustrados com um idioma que parece criar suas regras conforme vai indo ­— e isso dependendo de para que lado vai. Os linguistas já sabem disso tem muito tempo.

De novo, o problema não são nem as regras (que existem e até funcionam), nem o português em si, nem o Brasil. Sou eu. Uma aluna perguntou se ela deveria então, usar consoantes africadas (obrigada Stella Alves que me deu a terminologia correta no Twitter).

Qual forma de pronunciar o de seria a certa.

Se dji ou de.  

Para piorar, me perguntam por que eu faço o [t?] (“[t?i?]” para “tia”) africado, mas não faço a fricativa do s (o “s chiado”, clássico carioca). Eu sei lá por quê. Vou agora lidar com pergunta de por que meu sotaque é assim, como se eu pensasse por que falo do jeito que falo.  

Um professor mais experiente saberia ser pragmático. Mas eu? Eu quero enfiar 500 anos de adaptação dum idioma numa resposta. Quero ir de preconceito linguístico, quero falar do jeito que o bajeense fala lá na fronteira, quero explicar mexerica, tangerina e bergamota, quero ir até aquele vídeo do Porta dos Fundos, o Sudestino,. E quero que riam da piada ainda.

Queria poder explicar. Queria poder inclusive ir além da Wikipédia e de um mapa do Brasil que mostra quem frica onde e com quem — e agora “quem frica com quem” já parece um eufemismo sexual. Eu quero contar uma história.

De quem foi a ideia de botar um escritor a dar aula de um idioma.

Talvez seja por isso que gosto tanto de Guimarães Rosa, ou até um Mário de Andrade. Por tentar explicar com narrativa a linguagem. Juntar o ‘como’ (história) com o ‘o quê’ (linguagem). Por que talvez a dúvida dos meus alunos seja a mesma que a minha. Por que é que esse idioma desgraçado é do jeito que é.

E dá-lhe explicar esse “que é que”.

(Antes que eu me esqueça: os alunos aqui mencionados são fictícios. Às vezes eles são a voz da minha cabeça no caminho de casa ou um recurso literário.)

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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