Do romantismo de roubar quadrinhos

15/10/2021

Trecho de The Book Thief, de Pascal Girard

 

Faz um tempo que eu li o artigo e acho que foi na Veja. Há uns vinte anos, talvez mais. Sei que me marcou. O articulista contava que seu carro tinha sido arrombado. Os únicos pertences à vista nos bancos eram livros – bons livros, segundo o articulista – e um par de meias velhas. O ladrão levou apenas as meias velhas. Daí seguia o resto do artigo, discutindo a percepção do brasileiro sobre os livros, o desestímulo à leitura e por que o ladrão preferia meias velhas e não os lindos livros.

Deixei de lado o que o ladrão teria de representativo do povo brasileiro no geral ou na maioria – vai saber o valor de meia velha num pé gelado – e embarquei no argumento do artigo: no Brasil, livros valem menos do que meias sujas e livro não vale a pena nem roubado.

Foi com o artigo ainda em mente que li, no mês passado, a respeito do furto na Ugra Press, em São Paulo. A Ugra é uma loja e editora de quadrinhos alternativos que funciona na internet e num espaço físico na Galeria Ouro Velho, na Augusta, a poucas quadras da Paulista. Sempre é citada quando se fala da importância das lojas como agregadoras, curadoras, promotoras da HQ independente no país. Já participei de alguns eventos por lá.

Segundo uma postagem da Ugra no Instagram em 18 de setembro, três jovens entraram na loja e roubaram R$ 600 em quadrinhos. Na postagem, a Ugra avisa que tem imagens dos três – captadas pelas câmeras de segurança da galeria – e que vai compartilhar com lojas de quadrinhos da cidade.

A postagem ironiza que os três ladrões eram “jovens saudáveis e bem vestidos”, de “bochechas rosadas” e que eles deviam pedir “um adiantamento de mesada ao papai porque, cá entre nós, vocês visivelmente não precisavam se prestar ao papelão de furtar livraria independente num momento crítico como esse.”

E aí eu fiz o meu papelão. Repostei a conclamação da Ugra, dizendo: “Que se recupere o preju, que os jovens saudáveis levem um cagaço e que me desculpem os ugras, mas: Dá alguma esperança no Brasil ver alguém querendo roubar livro.”

Eu ainda carregava no peito aquele argumento da Veja. Se ladrões, jovens e rosados que sejam, preferem usar todo seu descaramento, mínimo de organização e premeditação, habilidades furtivas e desprendimento do risco para roubar quadrinhos em vez de celulares, roupas, joias e tudo que for menor e mais caro… é porque querem ler, certo?

Errado. Se este texto não ficar claro até o final: não faça que nem eu e não veja romantismo onde não há.

“Esse clichê de romantizar roubo de livro geralmente parte da ideia de que o gatuno é um desafortunado tomado por uma incontrolável sede de cultura ou qualquer coisa do tipo”, me respondeu Douglas Utescher, um dos proprietários da Ugra, educadamente rebatendo meu comentário. “Eu, que estou negociando aluguel para manter e loja aberta no meio desse caos, vou ter que desembolsar 600 contos para bancar a molecagem de três playboyzinhos. Da minha parte, só desesperança.”

Pedi desculpas. Também pedi a lista do que havia sido furtado. Foram três exemplares de Fun, de Paolo Bacilieri; dois de Hokusai, de Shotaro Ishinomori; um de Jack Kirby: a épica biografia do rei dos quadrinhos, de Tom Scioli; e um de Aqui, de Richard McGuire. Livros em formato grande, quase todos em capa dura, o menor deles com duzentas páginas. A compra passaria dos seiscentos reais no caixa. Além disso, estranho alguém roubar três exemplares do mesmo livro para ler.

“Se você conversar com outros livreiros, vai ver que o mais provável é que os livros parem em algum sebo ou no Mercado Livre”, explicou Utescher.

Antes mesmo dessa puxada devida na minha orelha, o editor Guilherme Kroll já minha me dado um alerta sobre o romantismo do meu comentário: “Não quero estragar sua esperança, mas o dono de um sebo de quadrinhos de São Paulo me falou que é bem comum roubarem livro novo para revender em sebo e comprar crack.”

Conheço as histórias sobre roubo de livros raros no Brasil. Entre colecionadores de quadrinhos, correm até histórias sobre assalto à mão armada em que se levou obras também raras. Há esquemas de receptação para esse material raro. Até mesmo os trocados que se ganha num sebo valem mais que meias velhas.

Nem preciso ir muito longe: o dono da banca que eu frequento tem várias histórias de furto para contar, assim como imagino que todos os donos de banca do Brasil têm. Seja qual for a motivação, roubar quadrinhos e livros não é algo raro no país.

Talvez esse romantismo, ou aquele artigo da Veja, ajude os ladrões. Se a percepção é de que roubo de livros é algo raro ou que dá recompensa mínima – ou que é bonito, como era na minha cabeça – menor deveria ser a preocupação das lojas ou dos colecionadores quanto à segurança.

O furto na Ugra aconteceu numa sexta-feira. Apesar de ter as imagens dos prováveis furtadores e de o desfalque no estoque ser evidente, Utescher não tem imagens do flagrante e achou que registrar um B.O. nos dias de maior movimento da loja seria perda de tempo e mais perda de dinheiro.

“É tentador, no contexto brasileiro, pensar no ato de roubar livros como algo rebelde ou revolucionário”, ele complementou. “Mas, infelizmente, na maioria das vezes é pura e simples molecagem. Também prefiro pensar que alguém disposto a roubar para ler poderia ter um pingo de consciência de classe para selecionar melhor o alvo de suas ações.”

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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