Chris Ware x Caetano Galindo - uma conversa sobre a tradução de Rusty Brown (Parte 2: Borogodós)

05/05/2022

Em 2021, a Quadrinhos na Cia. lançou Rusty Brown, aguardada graphic novel de Chris Ware. Foi a primeira experiência de Caetano Galindo na tradução de histórias em quadrinhos. Eu, Érico Assis, fui convidado a ser preparador” de Rusty Brown, mas pouco mexi naquela primeira versão da tradução, recém saída das mãos do Galindo, embora vá me gabar pelo resto da vida de que tive algumas palavras nas decisões daquele quebra-cabeça tradutório que é a página 262.

Queria conversar mais sobre a página 262, sobre Ware e a literatura e sobre a primeira experiência na tradução de quadrinhos de um tradutor com farta experiência em outras linguagens. Em uma hora de papo, conversamos sobre muito mais que Rusty Brown.

A transcrição desta hora começou na coluna anterior e segue abaixo e nas próximas três colunas. Uma hora de papo com o Galindo rende livros.

 

Cartaz de Chris Ware para o Festival dAngoulême 2022.

 

 

Érico Assis:

Eu queria ler quadrinho mais devagar e queria ler prosa mais rápido. Eu tenho essas mesmas vontades de prestar mais atenção e percebo que tenho lido… Principalmente depois de começar a traduzir, eu sinto que leio quadrinho mais rápido do que devia.

Você sente essa diferença como leitor de prosa e de quadrinho? Você acha que lê um de um jeito diferente do outro? Ou você começa a ler o quadrinho como leitor de prosa?

Caetano Galindo:

Bom, eu leio muito pouco quadrinho. Hoje, especialmente. Mas eu lia como leitor de prosa. Com certeza. E foi isso: um longo aprendizado. E um aprendizado de envelhecimento…

Curiosamente, eu acho que aprendi mais com o cinema. Isso de tentar aprender a articulação visual da coisa. Eu sou uma pessoa neurologicamente, cerebralmente míope. Meu mundo funciona de ouvido e por palavras. Visualmente eu nunca fui muito dotado pra nada e… é muito fácil, pra mim, não prestar atenção nessas coisas. E eu fui meio que me treinando para prestar.

 

Só que o cinema dita o tempo pra quem assiste, e o quadrinho não dita o tempo para quem lê.

Exato, exatamente. Pra mim tudo vem da música. A música funciona assim: você sair de música pop pra música complicada é isso, você ter que lidar com uma coisa que é muito complexa e que demandaria pause num fluxo de tempo que você não controla. Então você tem que treinar um tipo de concentração que você não tem, que ninguém mais tem no mundo de hoje.

Eu tenho a sensação de que o motivo principal pras pessoas não ouvirem musica dita clássica, hoje, é que a gente não aceita esse tipo de ditadura sobre nosso uso do tempo. Aquilo se impõe numa certa velocidade, que não dá pra ouvir em 2x no YouTube. Você tem que aceitar que é como é, que aquilo vai levar o tempo que vai levar e não vai ter consideração por você. E de repente treinar isso no cinema, conseguir transpor para um meio, os quadrinhos, onde você agora pode parar, pode decidir parar e voltar amanhã, ou na semana que vem… eu acho que teve um efeito legal. O cinema foi um treino bom por causa disso.

 

Você treinou [voltar a ler quadrinhos] com o Chris Ware?

Sim. Eu diria que bastante.

 

Lendo antes ou lendo pra traduzir?

Lendo os outros trabalhos dele, em grande medida. E lendo pra traduzir. Especialmente lendo pra traduzir. Traduzir é onde a gente aprende as coisas.

 

Eu trato traduzir como uma leitura superqualificada.

E contra tua própria vontade, às vezes. Tipo, agora estou traduzindo esse romance que ganhou o Booker. Aliás, corra se você não leu The Promise, de um sul-africano, Damon Galgut.

Eu não li o livro antes. Eu leio enquanto traduzo, que é o que eu prefiro fazer. E contra toda minha vontade.

O livro é sensacional. Estou louco para saber o parágrafo seguinte, mas eu vou contra minha vontade. É disciplina: eu, como tradutor, não vou esticar o olho pro parágrafo seguinte. Você se força a ficar fazendo aquilo no ritmo dos teus dedos e da tua cabeça pra traduzir. E é um inferno!

Pra mim acaba sendo esse supertreinamento. Pois eu não tenho escolha. Como eu não consigo traduzir na velocidade que eu leio, eu preciso ler mais devagar enquanto traduzo. Isso me faz ler mais coisas. É igual fazer um caminho a pé em vez de fazer de carro. Por mais que você queira ir rápido, você vai ter mais tempo para olhar.

 

Você estava acostumado a traduzir prosa antes do Rusty Brown. Neste momento, está traduzindo prosa de novo. Mas o que você lembra da diferença entre traduzir quadrinho e traduzir prosa? Foi sua primeira experiência traduzindo quadrinho.

Sim, foi. E vou te dizer que tenho duas primeiras grandes memórias. A primeira foi: Estou roubando trabalho do Érico.” (risos) E a saia justa que isso me gerou até conseguir a sua benção. Tinha uma coisa de síndrome de impostor e tinha uma coisa de não querer tirar o que de repente podia ser definitiva, sonho da vida de um amigo.

[Obs. do Érico: Em minha defesa, não dei benção nenhuma para o Galindo, pois ele não precisava. O que expliquei é que acho genial a decisão de passar as traduções das obras de Ware a luminares da literatura, como ele e Daniel Galera (tradutor de Jimmy Corrigan). Sou um dos maiores evangelistas da obra do Ware, mas não tenho o sonho de traduzi-lo. O que eu tenho é medo.]

E a síndrome do impostor: eu nunca trabalhei com quadrinho, talvez eu não seja a melhor pessoa pra fazer isso. Eu entendia a editora, que a impressão que eles queriam passar era meio de chancelar o livro um pouco fora do mundo dos quadrinhos e aí foram buscar um tradutor de outro tipo de literatura. Ok, entendo editorialmente. Mas teve um ligeiro momento de dúvida.

E a minha segunda memória mais clara de trabalhar com tradução de quadrinho foi de ficar muito preocupado em não dificultar o trabalho de uma camada do processo que eu não estava acostumado a perceber. Quando eu trabalho com prosa, eu já sei trabalhar com as preparadoras, eu já sei como eu facilito a vida delas, eu já sei no que eu posso contar com elas pra fazer por mim. Vira uma coisa de time mesmo. Mas eu sabia que esse trabalho ia passar por outras pessoas, por gente… é letreirista que chama?

 

Isso. [O letreiramento de Rusty Brown foi realizado com requinte pela dupla Américo Freiria e Jessica Freiria, pai e filha.]

Letreirista, designer, outro tipo de preparação. E eu passei o tempo todo muito preocupado em não… não passar o cheque de amador e não dificultar demais a vida dessas pessoas. Uma coisa muito óbvia era o tamanho das frases, a ideia de que eu estava pelo menos de olho na distribuição dos quadros e dos balões. Tentando imaginar que dava pra encaixar aquilo ali, tentando chutar um pouco que dava pra enfiar aquele tanto de português ali…

 

Rusty Brown, página 95.

 

Você chegou a contar letras? Contar palavras?

Não cheguei a contar. Trabalhei no olhômetro e sempre – em inúmeras ocasiões, aliás – tomei decisões de tradução que não eram a minha primeira decisão, mas envolviam uma palavra a menos, uma palavra menor da que eu estava procurando. Especialmente espaço pra colocar aquele texto que ficasse muito vertical, tentar evitar muito hífen, tentar evitar palavras muito grandes.

É uma coisa tipo traduzir poesia: você não tem cem porcento de liberdade pra escolher o que você queria colocar. Você tem que lembrar que aquilo precisa funcionar naquela forma…

E estou sentindo de novo a síndrome de impostor, porque você sabe disso muito melhor do que eu. Mas, pra mim, era uma coisa nova, era um tipo de construção nova. Eu até estou acostumado a traduzir poema e saber que eu tenho que enfiar aquela semântica em x sílabas. Mas, aqui, no quadrinho, a questão não é essa. A questão é número de caracteres, quantidade de hífens, número de palavras. Pra mim foi tudo muito… muito dedos compridos”. Eu não estava muito acostumado. Não estava nada acostumado.

 

Sim, tem esse negócio do tamanho do balão, que o texto caiba ali dentro. E tem a questão de cuidar a relação entre texto e imagem. Acho que isso é o mais óbvio quando você traduz HQ.

Mas uma coisa que eu gosto de dizer quando perguntam a diferença entre traduzir prosa e HQ é a questão das quebras. Da decupagem. Não sei se ficou tão marcado pra você: como a gente tem quebras de texto mais constantes do que na prosa. As quebras entre balões, as quebras que às vezes são de um personagem que tem a fala quebrada em mais de um balão. E depois isso tem que ser quebrado em quadros diferentes e… Parece que você tem unidades de texto menores do que na prosa e você tem que cuidar desses strings aos pouquinhos. Isso te marcou de alguma forma?

Eu acho que sim, porque… Tipo, o balão ou o quadro tem que ter sua autonomia e frequentemente seria muito mais interessante traduzir de outro jeito. Agora, por exemplo, estou traduzindo esse cara, esse ganhador do Booker [Damon Galgut, The Promise], com freio de mão muito solto porque é um texto muito diferente, muito inventivo, muito cheio de gracinhas. Isso libera o tradutor. Estou fazendo coisas que nunca faço, tipo traduzir uma frase de sete palavras por uma de catorze. Tudo bem, eu quero que isso fique oral e cabeça, é assim que esse cara funciona e ele está me autorizando a fazer certas coisas.

Já num meio como esse, do quadrinho, eu não posso fazer essas coisas. Eu estou sempre preso ao fato de que eu preciso dizer aquele pedaço de informação naquele pedaço de espaço. E isso faz com que você trabalhe com unidades menores, trabalhe com sintagmas.

 

Eu até me sinto livre para traduzir um balão com sete palavras em um balão com catorze, mas…

Se couber, né?

 

Se couber, claro. Mas às vezes dá para aumentar o balão.

Pois é. É esse borogodó que eu não tenho.

 

No caso do Chris Ware, no seu caso com Rusty Brown, não dava pra aumentar o balão. Ele é muito sintético no tamanho e na proporção das coisas.

E já está apertadinho no original…

 

Sim, eu não mexeria mesmo. Sete palavras têm que ficar praticamente sete palavras na tradução. Agora, quando eu quero uma coisa mais oral, como você quer na prosa, e eu quero que fique aquele ritmo, aquela cadência que tem no inglês, eu não me importo de passar de sete pra catorze palavra. Quando é possível, tecnicamente. E aí peço que aumentem o balão.

Você tem esse jogo de cintura que eu não tinha…

 

Mas tem que considerar que aquele balão de sete faz parte de uma página maior e tem uma cadência entre esses balões.

Isso. No caso do Ware tem isso: o ritmo dos balões. Eu lembro que eu cheguei a pensar nesse aspecto. Pô, vou conversar com alguém da área pra saber qual é a margem da manobra, se a gente pode aumentar esses balões.” Diminuir, imagino, seria mais complicado, mas se pode aumentar.

Mas num determinado momento eu tomei uma decisão que é muito constante, que eu tomo sempre: é melhor supor que não dá pra fazer nada. E aí você toma uma decisão simples, que é: a partir de agora eu acho que vou enviar todas minhas traduções [dos balões] no mesmo espaço que elas são no original. Então, trabalhei o tempo todo assim. Se houvesse essa margem, eu não ia nem querer saber de usar. Eu quero enfiar o que eu tenho a dizer naquele espacinho, naquela variabilidade de tamanho. Acabou virando minha regra.

Queria deixar registrado que, certa feita, lá pelo ano do nosso senhor de 2010, por aí, eu assisti uma palestra do Álvaro Hattnher na Semana do Tradutor e era sobre Tradução de HQ. E daquela palestra eu saí com algumas informações que eu guardei. Pensei: um dia vou precisar disso. Essa ideia de sinalizar as viradas de páginas, sinalizar as quebras de quadro. No documento em que eu fui traduzindo, eu separava as páginas, eu separava os quadrinhos um do outro. Eu pensava: pô, alguém vai ter que distribuir isso na página. Isso tudo veio da fala do Hattnher lá atrás. É bom que fique registrado.

 

Quando eu faço traduções para a Panini, por exemplo, existe um modelo de tradução que eu tenho que seguir. Eles não pedem a separação por quadro, pedem só a ordem de leitura por página. Geralmente os quadrinhos que eu traduzo pra lá são muito mais simples do que um quadrinho do Chris Ware. Além disso, no quadrinho DC/Marvel, a gente consegue mexer nos balões. Se for num quadrinho contemporâneo, dá para aumentar e diminuir sem problemas técnicos e sem problemas pra estética, pra composição.

O Chris Ware é um exemplo máximo do que não dá pra mexer. Ele faz tudo à mão, não é uma coisa que você pega e aumenta ou diminui o balão. Teria que redesenhar.

Quando você pega tipo DC ou Marvel, os caras te mandam um arquivo da imagem do quadro e os quadrinhos vêm por cima? Você consegue diminuir o balão porque tem imagem atrás?

 

Tem como fazer [no caso dos quadrinhos deste século das duas editoras de heróis]. Não sou eu que faço isso, é o letreirista. Mas dá pra fazer. É possível.

É tipo legenda de filme, vem separadinho?

 

Sim, é uma layer. É uma camada diferente no InDesign.

Entendi. E aqui [no Rusty Brown], definitivamente não.

 

Não, aqui é tudo desenhado. Aqui é tudo [desenhos e letras] chapado, junto. Talvez o Ware faça alguma coisa no computador… eu sei que ele faz quase tudo à mão, inclusive as letras, talvez ele faça alguma separação no computador. Talvez só as cores…

Ele faz até os pontilhadinhos à mão? Tipo as retículas dessa página [a 262]?

 

Naquilo ali deve usar computador. Se ele não pegar aquelas retículas dos anos setenta. É capaz que ele faça isso também.

Pelamor de deus.

 

A conversa continua na próxima coluna.

 

Rusty Brown, detalhe da página 174.

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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