Chris Ware x Caetano Galindo - uma conversa sobre a tradução de Rusty Brown (Parte 4: "Eu ia")

19/05/2022

Em 2021, a Quadrinhos na Cia. lançou Rusty Brown, aguardada graphic novel de Chris Ware. Foi a primeira experiência de Caetano Galindo na tradução de histórias em quadrinhos. Eu, Érico Assis, fui convidado a ser preparador” de Rusty Brown, mas pouco mexi naquela primeira versão da tradução, recém saída das mãos do Galindo, embora vá me gabar pelo resto da vida de que tive algumas palavras nas decisões daquele quebra-cabeça tradutório que é a página 262.

Queria conversar mais sobre a página 262, sobre Ware e a literatura e sobre a primeira experiência na tradução de quadrinhos de um tradutor com farta experiência em outras linguagens. Em uma hora de papo, acabou que conversamos sobre muito mais que Rusty Brown.

A transcrição desta hora começou nas três colunas anteriores (esta, esta e esta), segue abaixo e conclui na próxima coluna. Uma hora de papo com o Galindo rende livros.

 

Rusty Brown, página 262 em inglês.

 

Rusty Brown, página 262 em português.

 

[Estávamos falando sobre Lint”, a terceira história de Rusty Brown, que acompanha a vida do personagem Jordan B. Lint do nascimento à morte mais ou menos à métrica de um acontecimento desta vida por página. O grande desafio de tradução é a página 262, penúltima de Lint”. Atenção: SPOILERS se você não leu Rusty Brown].

 

Caetano Galindo:

Desculpa, estou falando pra você, mas obviamente você sabe. Essa ideia de que não é só a composição da página e tal, mas… do momento em que você percebe que o Ware incorporou a linhazinha do monitor cardíaco como uma letra e que essa letra é justamente o pronome de primeira pessoa em inglês, você diz: Putz, agora fodeu. Estou trabalhando com uma coisa aqui que tá para lá do limite do convencionalmente tido por traduzível.”

É justamente aí que, na poesia, as pessoas tropeçam com essa noção de intraduzível, do momento em que você foi pra materialidade da língua. Nesse caso, pra materialidade da representação gráfica, da língua num grau que faz com que não seja possível transpor, você vai precisar da imensa coincidência de estar trabalhando num outro idioma em que o pronome de primeira pessoa do singular também seja representado exclusivamente pela letra i”. E idealmente maiúscula, como é no inglês. Se não, você vai ter que dar um jeito de fazer isso funcionar.

Então foi punk. Essa página tomou muitíssimo mais tempo do que, sei lá, às vezes um capítulo inteiro de um romance difícil.

 

Érico Assis:

E é a penúltima página de Lint”, onde toda a história conflui.

É a página da morte do Lint.

Tem bastante texto, na real. Começa por aí. Tem bastante texto e tem a distribuição do texto na página. Justamente aí que é complicado, porque o texto vira, o texto fica de cabeça pra baixo, fica da direita pra esquerda. Você tem que meio que chegar a uma convenção possível pra tua ordem de leitura, decidir como você vai ler isso.

E aí você começa a perceber a bilateralidade da coisa. Que a página funciona de um jeito da metade pra cima e de outro da metade pra baixo. Começa a perceber essa coisa ambígua de, sei lá, orgasmo, morte, monitor cardíaco, afirmação do eu, dissolução do eu… urrrghhh

É muito trabalho, materialmente muito trabalho. Visualmente – pra mim, que sou visualmente challenged – é difícil determinar como está funcionando, entender essas simetrias, entender esse espelhamento, entender essas rimas, por assim dizer, entre uma metade da página e a outra.

 

Mas são rimas, não são?

Sim, são rimas. E especialmente resolver essa questão do final. Como a gente faz esse texto se apagar na página da direita [a 263] de alguma maneira que fique tolerável. Não vai ser perfeito. Não vai ser bom. Mas que seja de um jeito aceitável, uma coisa que não estrague o texto.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em inglês.

 

 

Quer contar qual foi a solução? Pode dar o spoiler pra solução do i” [literalmente o eu” do original]?

Na real, foi a única solução que eu consegui pensar. Eu quebrei a cabeça, a gente conversou sobre isso. Precisava ser a letra i”, então a única coisa que me ocorreu foi pegar essa forma do verbo ir”, essa ideia do ia”, e transformar. Eu podia fazer isso rimar em outros lugares. É fácil, no português. Eu podia transformar esse ia” no indivíduo indo”, desaparecendo.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

 

Mas não tive nenhum feedback, de ninguém, então não tinha a menor ideia do que as pessoas podem ter achado. O que é a coisa mais… às vezes acho que é a coisa mais encantadora da tradução literária: você não saber das pessoas… se as pessoas perceberam. Às vezes você passa uma semana se fodendo numa solução e descobre que ninguém vai ver que aquilo existe, muito menos que deu trabalho…

No Pynchon ou no Wallace tem essas sociedades e a sigla da sociedade é um acrônimo que forma uma palavra. Você sabe que é um leitor em cada 200 que vai pensar em procurar o original e daí vai entender e vai dizer ui, que legal, ele fez formar uma palavra”. No Graça Infinita tem um grupo de ajuda pra homens brancos traumatizados e no original a sigla forma W.H.I.N.E.R.S. e na tradução ficou formando B.U.N.D.Õ.E.S. Mas ninguém vai perceber.

Às vezes você se fode, se ferra, se diverte um monte, mas ninguém percebe. Às vezes você nem imagina, mas alguém vai encrencar ou vai achar legal uma coisa que você nem percebeu. De um lado pode ser bacana, mas de outro é meio doido. Você joga o teu produto e você não tá no palco em que você percebe se a piada ficou choca, se ninguém riu, ou se as pessoas riram de uma coisa que você não esperava e aí você se alimenta do riso ou do não-riso. A gente, no caso, não sabe. Eu não sei. Então não tenho a menor ideia do que aconteceu aqui [com Rusty Brown]. Mas, do meu ponto de vista, foi literalmente o que deu pra fazer, cara.

E isso não é uma confissão de fracasso. Isso é uma confissão de aceitar as regras do jogo. As regras do jogo determinavam, eu acho, que tinha que ser a letra i”. Podia fazer que não. Podia, sei lá… não sei o que você ia me dizer e o que o pessoal da arte ia me dizer, mas eu podia botar um eu” aqui, e aí vamos só manter o tracinho vermelho como marca do monitor cardíaco e escrever o eu”. Seria mudar a regra do jogo, seria eliminar essa integração do gráfico com o verbal. Mas acho que dava pra fazer. Dava pra manter aquele risquinho vermelho só como risquinho vermelho. O leitor que entendesse. E em vez daquele ia” que está nessa edição, manter um eu” ou o que quer que fosse.

Com o detalhe que o risquinho vermelho dele ainda tem o pingo do i”.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em inglês.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

 

Eu tava pensando que podia virar uma exclamação.

É, a exclamação de cabeça pra baixo, porque tem toda a coisa da especularidade. Mas eu podia manter isso tudo exatamente como está. Só não usar como parte de uma palavra. Escrever a palavra e deixar isso por isso mesmo.

A minha opção é sempre a favor da forma. A minha opção foi manter o joguinho formal. Mas eu acho que dava pra fazer o contrário. Se, por acaso, no idioma em que a pessoa está traduzindo, não tiver o que fazer com esse i”, joga fora. Vai ser uma perda, mas, enfim…

 

Eu estou olhando aqui em inglês e português… Tem no cantinho da página em que ele está morrendo, amei tanto”. Amei”, exclamação, tanto”. E o original é “oh”, exclamação, i love”. E esse i” do i love” é vermelho. Na tradução, o i” virou a exclamação. Ou seja, um i” de cabeça para baixo.

E do outro lado da página?

 

Do outro lado ficou, ah! ia amar”. No original: oh! i love”.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

Ah, é a mesma coisa [em cima e embaixo no original]? Epa!

 

Não, eu lembro que a gente conversou sobre ser diferente. Por causa do queria ter brincado” (i wish id played) e o queria ter sido” (i wish id been). Entrou ia amar” porque você começou a usar o ia”.

Tinha que semear o ia”, né?

 

Exatamente. Tem outros momentos na página em que se usa o ia” pra ele ressoar na página seguinte.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em inglês.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

 

No quadrinho das retículas, ele fica quase desaparecido.

Mas olha só: ia ser”… “seria”… ou ser ia”…

Na página da retícula já começa a aparecer. Mas a ideia era meio que essa mesmo. Eu tenho o sabia” lá em cima também, no primeiro quadrinho em que a menina está no banco do carro, só de sutiã, aí a gente começa a separar esse ia” das palavras e é meio que na direção do meio da linha, do meio da página, que é essa linha que importa.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em inglês.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

Esse é o negócio: semear o ia’”.

Aí, no outro quadrinho aqui, o menor, das retículas, já tem o seria” de novo.

Desculpa, mas aqui eu achei engenhoso. Aqui tem um seria” e tem um seria eu” do outro lado. Porque é aqui que eu tenho que começar a separar o que era o i” de pronome, esse eu” em vermelho e o que é o nosso ia”. Aqui é o momento em que a tradução faz a operaçãozinha.

No original tem sempre o i” em vermelho. Aqui eu vou ter o eu” em vermelho porque é relevante e é como se eu estivesse ensinando pro leitor: a partir daqui eu” e ia” vão se fundir nessa linha vermelha…

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em inglês.

 

Rusty Brown, detalhe da página 262 em português.

 

 

Uma das coisas das quais eu tenho dificuldade de me dissociar é olhar pra minha tradução e pensar que as pessoas vão olhar e pensar: não, tá traduzido errado porque no original é assim”. Mas as pessoas não conhecem o original. Na grande maioria das vezes não conhecem. Não sei se é um problema pra você ao olhar pra tradução.

Foi, durante muto tempo. E vou dizer qual é o problema principal. O principal é que nós, tradutores, somos uma raça mesquinha e a gente lê a tradução dos outros e lê os originais com esse olho. A gente lê atrás disso, vê legenda pensando isso, testando, pensando: Putz, que solução brilhante” ou Já sei o que a pessoa fez aqui, esse erro é comum”.

A perversão é nossa, mas a gente atribui ao mundo inteiro. A gente acha que todo mundo vai ler a gente desse jeito. Na verdade, são só os colegas.

Então, de um lado, sim, eu levei um tempão pra parar de pensar desse jeito. Em geral os leitores leem aquilo como se fosse um original e nem dão bola pra isso.

E também tive que me acostumar com esse fato de que… haters gonna hate. Vai ter o leitor que nem sabe o suficiente do original, que nem é da área da tradução, aquele cara que vai pro Facebook… que é sempre um cara…

 

É sempre um cara.

… que vai pro Facebook e vai dizer: olha o que esse animal fez aqui”.

Mas, voltando ao assunto… Você meio que se acostuma porque sempre vai acontecer. E outra: a gente fica aqui falando como se fosse uma ousadia. “Ô cara chato”. Mas: alguém não vai gostar da tua tradução, legitimamente. Alguém vai achar que você está errado, mesmo alguém que tenha clareza pra saber que não é uma questão de erro, tosqueira e tal. Alguém vai ter uma opinião muito diferente da sua e vai achar que você fez um trabalho inadequado. E essa pessoa vai estar no seu pleníssimo direito de achar isso. E de não gostar e querer outro tradutor.

 

A conversa conclui na próxima coluna.

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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