Chris Ware x Caetano Galindo - uma conversa sobre a tradução de Rusty Brown (Parte 5: Tudo que é válido é traduzível)

01/06/2022

Página 1 de I Guess”, HQ de Chris Ware de 1991.

 

Em 2021, a Quadrinhos na Cia. lançou Rusty Brown, aguardada graphic novel de Chris Ware. Foi a primeira experiência de Caetano Galindo na tradução de histórias em quadrinhos. Eu, Érico Assis, fui convidado a ser preparador” de Rusty Brown, mas pouco mexi naquela primeira versão da tradução, recém saída das mãos do Galindo, embora vá me gabar pelo resto da vida de que tive algumas palavras nas decisões daquele quebra-cabeça tradutório que é a página 262.

Queria conversar mais sobre a página 262, sobre Ware e a literatura e sobre a primeira experiência na tradução de quadrinhos de um tradutor com farta experiência em outras linguagens. Em uma hora de papo, acabou que conversamos sobre muito mais que Rusty Brown.

A transcrição desta hora começou quatro colunas atrás (nesta, nesta, nesta e nesta), e conclui nesta. Uma hora de papo com o Galindo rende livros.

 

Érico Assis:

Perguntinha de palestra: quando você se depara com um negócio desses, como Lint” em Rusty Brown, e consegue resolver, você começa a achar que não existe o intraduzível”?

Catano Galindo:

Resposta de efeito em palestra: no limite, os enunciados intraduzíveis são os enunciados desinteressantes. São jogos imbecis. Ou são curiosidades sem sentido.

Tipo uma frase que diga exatamente quantas letras ela mesma tem. Isso pode ser intraduzível… Mas e daí?  O Finnegans Wake não é intraduzível. O Chris Ware não é intraduzível. Qualquer objeto artístico baseado no uso da linguagem que seja humanamente válido e artisticamente válido é traduzível pra qualquer idioma que esteja em condições de fazê-lo.

É óbvio que o pirarrã não consegue traduzir Homero. É lógico que uma língua dessas não vai conseguir traduzir o David Foster Wallace sem antes passar por um banho de loja (o que é pra lá de possível, também). Não tem palavra, não tem estrutura pra isso. Mas no caso de outras, que estejam em pé de igualdade, sempre vai ser possível traduzir. O que vai acontecer é que a noção de traduzibilidade vai tomar umas pancadas e vai ter que se adequar a um trabalho diferente.

Um soneto não é traduzível do mesmo jeito que um manual de computador, que não é traduzível do mesmo jeito que um conto, que não é traduzível do mesmo jeito que uma carta. Todas essas coisas são traduzíveis, mas o que a gente caracteriza como tradução vai sofrer alterações. E os leitores são sofisticados o suficiente pra entender que, se você traduziu o soneto e obedeceu a vários senhores, isso vai gerar um resultado que, se fosse julgado pelos parâmetros que você usa pra julgar a tradução de prosa, seria um resultado muito questionável. Ao mesmo tempo você sabe que, quando traduz prosa, você não está contando sílabas nem escolhendo sonoridade de palavra ou, nesse caso, escolhendo qual letra precisa ficar em destaque.

Eu acho que tudo é traduzível. Tudo que é válido, tudo que quer dizer alguma coisa e essa coisa é relevante, é traduzível. É só uma questão de como você vai lidar com a questão de traduzibilidade. Exatamente como o texto original, nesse caso, teve que forçar a função de significação.

Um soneto é uma coisa que trapaceia no jogo da linguagem. Geralmente não é relevante pra linguagem quantas sílabas você usa, em que posição ficam os acentos e quais as sonoridades que se ecoam nesse ou naquele momento. O soneto trapaceia. Ele coloca regras específicas e inclui essas regras específicas no processo de significação. Pra traduzir, eu vou ter que fazer isso também, eu vou ter que trapacear na questão de traduzibilidade. Eu vou ter que trapacear nos critérios de tradução.

O Finnegans Wake me oferece uma série de enunciados cujo significado não é determinável. Eles são abertos, vagos, alusivos, vagamente interpretáveis. Eu vou ter que traduzir nesses mesmos termos. A minha régua de isso é uma tradução correta” não pode ser a mesma régua que eu usei pra traduzir o Ulysses ou pra traduzir o Chris Ware.

 

Você está comentando isso dos sonetos… fazendo a comparação entre quadrinho e poesia… como a gente tem que brigar com a traduzibilidade quando vai traduzir esse tipo de formato. Mas, no quadrinho, geralmente eu não posso mexer na forma.

É, exatamente como você não pode mexer com o número de sílabas no soneto.

 

Mas… pode sim.

Ah, você quer dizer que, no quadrinho, não tem a opção de não ser fiel à forma.

 

Exato

Entendi. É verdade.

 

Na verdade, você não tem como deixar de ser fiel à composição da página. Ou melhor: você até pode recortar os quadrinhos e colocar cada um onde quiser. Mas acho que o Chris Ware não ia deixar. Ou ia ficar muito puto. Já o autor do soneto talvez não se importe.

Tem gente que traduziu Shakespeare em prosa. Você pode traduzir com verso de doze sílabas, de dez, com rimas, sem rimas, com rima imperfeita…

E é engraçado isso. Não se para pra pensar nisso, mas você tem toda razão. Em quadrinhos, ou em certo tipo de quadrinho – aqui a gente tá falando de, sei lá, quadrinho de arte, romance gráfico ou whatever – você de fato está mais preso que na tradução de poesia. Eu não tenho opção de não… eu até teria opção de miguelar alguns desses jogos. Porque os jogos, curiosamente, são estritamente verbais.

 

Exatamente. Ou melhor: eles são tipográficos, como esse do i” [na página 262 de Rusty Brown].

É, mas essa parte da distribuição na página não me dá muita saída. Não tenho pra onde fugir. Você tem razão.

 

Eu fico pensando nisso. Quando se compara tradução de quadrinhos a tradução de poesia, eu vejo que tem diferenças, não que uma seja mais difícil ou mais fácil que a outra. Tem diferenças.

Uma coisa que você não perguntou mas que eu ia falar só pra desculpar de uma coisa que eu fiz agora há pouco. Você falou quando você lê suas próprias traduções”.

Eu nem sempre gosto de voltar às minhas traduções por causa dos meus defeitos, meus problemas. Mas eu faço isso muito em aula. Eu dou aulas de tradução com o que eu traduzi porque prefiro falar mal das minhas traduções do que das traduções dos outros. A minha tradução eu pego e posso desossar sem o menor problema. Aqueles alunos provavelmente não vão querer comprar o livro depois. Aluno de Letras nem tem dinheiro mesmo.

 

(risos)

Então acabo fazendo isso, com frequência. Tem uma coisa muito louca que eu nem sei se acontece contigo. Eu acho que tradutores pertencem ao mundo das artes performáticas. Tipo atores, pianistas, pessoas que pegam um original e realizam esse original. A gente dá nossa versão.

Não sei se isso acontece com esses outros profissionais, mas frequentemente eu olho uma coisa e digo, como aconteceu agora: olha que legal essa coisa do seria, ser ia, ia’”. Mas a sensação desse olha que legal” é completamente sem ego. Não é uma sensação de como eu sou inteligente”, porque dá uma estranha sensação de que foi outra pessoa que fez aquilo. Tipo: você olha praquilo como texto e diz nossa, que achado feliz, que coisa bacana”. Frequentemente a sensação é essa. Até porque teve preparação, teve edição, teve palpites. Essa coisa do resultado coletivo final é muito satisfatória e meio que me condiciona a olhar pros bons momentos.

Sabe aquele clichê do agradecimento, agradeço a fulano, sicrano e beltrano, mas os erros que permanecem são responsabilidade minha”? Se aprende muito disso em tradução. Eu continuo lamentando os erros, os defeitos, as infelicidades. Mas as coisas bacanas passam essa estranha sensação de que não são minhas, que são do livro, que elas se encaixaram, que é o próprio Chris Ware que está fazendo, que é o projeto inteiro que está fazendo. Isso eu acho legal, acho muito bacana, gosto muito de encontrar essas coisas e de me dar conta dessa sensação, de que eu não tenho orgulho; eu tenho é satisfação de que aquela coisa existe.

Não é um traço de personalidade. Eu sou tão mesquinho quanto qualquer um. Mas eu acho que é da natureza do trabalho mesmo.

 

HQ de Chris Ware para o New York Times, 2015

 

 

Isso seria ótimo pra acabar a conversa. Mas eu tenho mais uma pergunta. Como você encaixa Chris Ware na literatura contemporânea? Se é que encaixa.

Eu não tenho nem sombra de repertório pra falar de quadrinhos. Mas graças a deus você fez a pergunta de literatura, não de quadrinhos.

 

Assim: quadrinho não é literatura. Fora isso, o Ware está separado do universo de quadrinhos. Apesar de ele ser reconhecido nos quadrinhos ele também é reconhecido fora. E eu quero saber a opinião de um cara que conhece literatura, que acompanha literatura, que dá aula de literatura… Porque eu só conheço a relação dentro dos quadrinhos.

Bom, para começar, vamos tirar da mesa que dizer que quadrinho é literatura é elevar os quadrinhos a alguma coisa e dizer que quadrinho não é literatura é rebaixar os quadrinhos. Se a gente pensar literatura como forma verbal de produzir sentido, blá, blá, blá…  eu acho que dá pra usar esse critério.

Mas é engraçado. Tipo, se eu pegar só o texto do Ware e colocar na página – o que, aliás, eu fiz na tradução – ele não é avaliável. Ele é uma outra coisa. Então, num certo sentido, duro – como diria nosso amigo Wittgenstein, tudo depende de que sentido se está dando às palavras – se eu quiser definir a literatura como arte verbal de uso de palavras para traduzir blá, blá blá etc., Rusty Brown não é literatura. É outra coisa, assim como cinema não é literatura.

Mas, no sentido grande, de literatura como arte…  Por exemplo, fornecimento de narrativa, fornecimento de história e… o Ware está muito mais próximo da literatura do que do cinema. Por causa da questão do tempo, como você mesmo apontou, do manejo, da fruição do tempo. E, nesse sentido muito grande, eu acho que cinema merece ser colocado junto com a literatura. E aí a gente pode pensar em séries de TV, cinema, quadrinhos como formas amplas de explorar coisas que a literatura também explora. E aí eu acho que sim, que o Ware está dentro desse mundão. E está muito… muito bem.

Eu não quero fingir que é fácil chegar a essa conclusão. A dificuldade faz parte do processo. As letras são pequeninhas. A questão é essa: este livro, como mecanismo de fornecimento de narrativa, poesia, filosofia e etcetera é muito superior a muuuita coisa, mas muuuita coisa, que se produz na caixinha tradicional de romance/conto/poesia. Exatamente como alguns filmes também o são, ou séries de TV são. Em termos de qualidade, profundidade, impacto, sofisticação e complexidade, que são coisas que a gente tende a associar mais à alta literatura do que a outras coisas, o Ware está muito acima de uma imensa parcela do que se produz por aí. No entanto, ele faz isso exatamente porque ele está se servindo de convenções que são estritamente de uma forma de arte. As coisas aqui dependem da página, da imagem, desse mundo visual que ele cria.

E isso eu não tenho como comparar com Moby Dick. Não tenho como comparar com Ulysses. Ulysses não fez isso. Não precisa, não quer. E como eu vou encaixar essas duas coisas no mesmo lugar e dizer o que é mais complexo, mais sofisticado? Em termos dessa coisa muito de núcleo que é pensar nessas artes literárias” como coisas que te fornecem… como é que diz o Bloom? Esplendor estético, filosófico e sapiencial”? Ou seja, uma coisa que é bonita, que é complexa, densa intelectualmente e que de certa forma te eleva como pessoa, ainda que brevemente… Isso talvez seja suficiente para colocar todas essas coisas no mesmo saco.

E nesse caso, sim, ele está muitíssimo bem encaixado e é irmão espiritual de Dante, Shakespeare, Joyce e David Foster Wallace. Só que ele está trabalhando numa forma que eles não conheceriam. Exatamente como, aliás, o Dante não reconheceria o romance que o Joyce pratica como forma literária válida.

E veja que eu nem mencionei games, porque eu sou véio. Mas acho que, sim, se a gente pensar desse jeito amplo, ele se encaixa bem e sai com flying colors, galhardamente.

Mas é estranho fazer essa comparação. A comparação rebaixa o objeto, porque não são essas as regras do jogo que ele está jogando, que é o mundo dos quadrinhos.

Eu não disse porra nenhuma, né?

 

Disse sim. Não dá para comparar. Não dá e ponto.”

(Risos) É. Termina assim a entrevista. Tradutor desiste. O tradutor desiste” e fecha a câmera. Termina com o Beckett.

 

Alguma última coisa? Eu também não quero que fique uma entrevista gigante. [Obs. depois de dois meses e meio transcrevendo e editando: (risos nervosos)]

O grande comentário é… Acima de tudo, foi um privilégio, né, cara? Eu tenho muita sorte como tradutor. Eu meio que já passeei por tudo que é tipo de tradução: teatro, conto, poesia, carta, diário, tratado, vulgarização científica… Do século 18 ao século 21. Eu não tentei fazer isso, mas… quadrinho era uma coisa que tava me faltando. E gostei muito da experiência.

E o fato de a experiência acontecer com este livro é privilégio da ordem do indescritível. Pra mim é uma coisa… é um resultado de que eu me orgulho, é um resultado que eu acho que me satisfaz razoavelmente. E uma felicidade muito grande de ter feito. E uma felicidade de ter feito com você.

 

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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