O ato de contar histórias como garantia da vida

07/08/2018

 

Mil fábulas para a infância. Esse foi o tema do debate do primeiro dia da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, na última sexta-feira, 3/8. Os visitantes que ali estavam puderam se aconchegar nas almofadas dispostas no chão da Tenda das Mil Fábulas para ouvir falar o professor, pesquisador e tradutor do Livro das mil e uma noites Mamed Jarouche, a escritora Ana Maria Machado, autora de diversas adaptações do clássico para o público infantil, e a ilustradora Graça Lima, que trouxe as mais diferentes representações gráficas da obra que data do século IX d.C.

 

 

Primeiro, Jarouche deu uma aula sobre a origem dessas histórias. O livro foi baseado em uma obra persa ainda mais antiga, do século IV d.C. Sob o título de Mil fábulas, ela não foi recuperada – restaram só os relatos de que teria existido e inspirado a versão árabe, que surgiria uns cinco séculos depois.

O texto que chega aos leitores hoje conta a história de um rei que, ao descobrir-se traído por sua esposa, decide que a partir de então se casaria com uma mulher por dia. Dorme com cada uma delas, e, ao amanhecer, as assassina. Quando chega a vez de Sheherazade, filha de um ministro, a jovem traça um plano. Na primeira noite, começa a contar ao rei uma história que se prolonga até o raiar do dia. Ao final da madrugada, ela interrompe a narrativa em um momento de suspense. Curioso para saber o desfecho, o rei opta, então, por deixar Sheherazade viver por mais um dia, situação que se prolonga por mil e uma noites.

As adaptações para o público infantil partem de uma tradução famosa feita pelo francês Antoine Galland no século XVIII. Quando o autor trouxe o texto para o mundo ocidental, decidiu atenuar as histórias carregadas de violência e sexo. Seu texto ainda não era direcionado ao público infantil, mas colaborou para que outras versões fossem escritas, estas consideradas "apropriadas para crianças". Naquela época, aliás, ainda nem existia a chamada literatura infantil, que seria escrita por contemporâneos de Gallant, como Perrault, ou até posteriores, como os Irmãos Grimm.

Ana Maria Machado foi uma das autoras a adaptar as histórias para crianças brasileiras. No encontro, lembrou que teve contato com o livro ainda bastante jovem, já que ouvia muitas dessas narrativas diretamente da boca de seus pais. Quando teve filhos, já escritora, percebeu que era muito difícil encontrá-las publicadas. Só achava nas livrarias os contos de fadas europeus. Daí a vontade de pesquisá-las e recontá-las para as crianças.

Ela acredita fortemente na importância do contato com narrativas de outras culturas. Na mesa, inclusive, contou a história de um menino de nove anos, que, durante o ataque terrorista do 11 de setembro, acompanhava pela TV as negociações para que os países árabes entregassem os suspeitos. "Mas é claro que eles não vão entregar [os suspeitos]! Nunca leu a história do Ali Babá? A hospitalidade não deixa", ele teria dito. "Isso me confirmou de um jeito forte a importância de entendermos a maneira de como os outros veem o mundo. As histórias universais, de países diferentes, são uma forma muito importante e muito natural de termos esse conhecimento."

 

 

Para além das narrativas escritas, há também as diversas ilustrações que foram feitas da obra, ao longo dos últimos 12 séculos. A ilustradora e escritora Graça Lima, autora de Dez patinhos, entre outros livros, trouxe na conversa alguns desses trabalhos, como os de Virginia Frances Sterrett, Edmund Dulac e Walter Frame. Eles chamam a atenção por contar toda a narrativa em um mesmo plano, sem a percepção de profundidade ou de perspectiva, sombra ou gradientes de cores. Muitos optavam pela utilização de moldura ou até pela quadrinização das pinturas.

O Livro das mil e uma noites é uma obra que ainda tem muito a nos ensinar. É difícil tratá-la como uma só, já que conta com diversas versões, diferentes histórias, passível de variadas leituras. Mas o livro só se popularizou com a tradução de Galland, no século XVIII. Foi seu sucesso na França, onde tornou-se um verdadeiro best-seller, que provocou a sua revisão no Oriente.

Só assim passou a ser mais lido e até apropriado pelas feministas árabes. Elas reivindicam Sheherazade como uma personagem que luta todos os dias contra o que simboliza a dominação masculina. Ela tem voz, narra suas próprias histórias. Representa o poder daquilo que temos de mais humano – as palavras e as histórias – contra a selvageria retratada pelo rei.

A cada noite, um conto. O que eles têm em comum? O fato de existirem pelo mesmo motivo – são “histórias para salvar a vida”, como lembra Jarouche. Salvam por mil e uma noites a vida de Sheherazade, mas também servem de metáfora para toda a humanidade, que, à procura de respostas, conta histórias há milênios, em busca de sua própria salvação. "É o que o livro tem de mais rico: propor que o ser humano vive em função do que ele narra. O ato de contar histórias é a própria vida, é uma garantia de vida."

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog