Teatro infantil para fazer gente grande pensar

06/09/2019

 

“Teatro pode mais do que ser apenas entretenimento. A literatura tem poderes indestrutíveis, porque é íntima, singular. Escrever para a infância é falar para todos. Ninguém nasce adulto. A experiência do início do mundo nunca nos abandona. Quem já foi criança sabe disso.” É o que diz o dramaturgo Marcelo Romagnoli, já autor de obras como Os mundos de Teresa Terremota, publicadas pela Companhia das Letrinhas. Sua última peça, Elagalinha, trata das relações entre fortes e fracos, ou adultos e crianças, discutidas a partir de conceitos da educação. 

 

 

E não é a primeira vez que essas relações aparecem nos palcos: a obra é a última parte da trilogia da Cia. Bendita de Teatro, que inclui as peças TerremotaGagá – ambas em cartaz em setembro no teatro Cacilda Becker, na zona oeste de São Paulo. Elagalinha, cujo texto foi premiado pelo ProAC – edital de Publicação Literária do Governo do Estado de São Paulo, desenvolve e incorpora pesquisas relacionadas a novas formas da dramaturgia contemporânea. Sua primeira leitura pública aconteceu no Projeto Dramaturgias, realizado no Sesc Ipiranga em 2018. Ainda que não esteja mais em cartaz, é possível aproveitar algumas de suas reflexões em outras atividades da programação do Dramaturgias.

Elagalinha narra as desventuras de uma galinha com as mais sensíveis qualidades humanas, que no seu primeiro dia de escola acaba sendo enjaulada pelo vilão dessa história: o Elemonstro, um homem cheio dos piores instintos animais, mas que não entende a língua de Elagalinha. Presa na jaula-galinheiro, a personagem principal, híbrido de menina e galinha, faz dessa prisão sua sala de aula, tentando ensinar a Elemonstro os fundamentos da sociedade e da vida civilizada.

É descrita como uma “fábula escolar com crítica ao vivo”, sem nenhuma pretensão realista justamente para melhor questionar a realidade. A reflexão de Elagalinha é sobre “como educamos uns aos outros, as relações de poder entre iguais e principalmente entre adultos e crianças”, comenta o autor. Segundo o dramaturgo, obra também pretende dar “esperanças de melhorar o mundo e alguns processos civilizatórios pelos quais temos responsabilidade de fazer funcionar com mais rapidez, antes que o planeta volte à barbárie”.

 

 

O texto de Romagnoli apresenta diversos elementos próprios da fábula, como os animais com características humanas e a representação dos costumes, mas também rompe com estrutura clássica fabular: é uma fábula sem moral. “Geralmente as fábulas apresentam uma lição conclusiva. Elagalinha tenta desconstruir esse conceito ao apresentar um argumento com muitas variáveis, considerando diversas razões para os atos de seus personagens. Assim, o vilão tem suas fraquezas, o herói seus medos, os críticos suas falhas etc. A conclusão nasce da cabeça de quem assiste e não vem imposta pela obra”, explica o autor.

A peça também traz outros elementos que subvertem essa linguagem. Possui apenas cinco personagens: Paigalo, pai solteiro da protagonista, Elagalinha, Elemonstro e dois críticos, que aparecem comentando as ações da narrativa “principal” de Elagalinha num enredo paralelo. Romagnoli explica que a função desses dois personagens é de potencializar o metateatro por meio de observações sobre a própria arte da representação, do ilusório e, paradoxalmente, do real.

Na peça, todos os personagens carregam metáforas e discussões sobre costumes e visões de mundo. Enquanto um dos críticos é um profissional experiente, mas cético e impaciente, o outro é um estagiário cheio de esperança e prazer. Ambos, ao assistirem e comentarem a apresentação, demonstram sua parcialidade, que sofre alterações durante o enredo. Paigalo, descreve o dramaturgo, “aprende a cada dia a cuidar da filha; tem sentimentos nobres, mas muito medo de agir”. Elagalinha, sua filha de seis anos de idade, alimenta esperanças de ser melhor, “ainda não foi doutrinada pelo mundo dos adultos”. E Elemonstro, o antagonista humano, condensa em si os piores aspectos da nossa sociedade. “Sob seu ponto de vista a vida se resume a uma grande oportunidade de lucro. Ele é o cidadão mediano, que luta para subir na escala social, que despreza a cultura e o espírito e só admira o poder e subsistência do corpo”, comenta.

 

 

O texto possui camadas de interpretação da história, que acaba por tocar o público de maneiras distintas. A criança pode se espelhar na protagonista e em sua aventura de superação, enfrentando os perigos da infância e a dureza dos adultos. Já os pais conseguem ponderar sobre a sociedade, a crise nas relações e a educação infantil, com uma crítica aberta à escola como sistema de reprodução de conhecimento: “Uma simples transmissão de informações, com o objetivo de criar pessoas que possam fazer a máquina da sociedade funcionar e quase nunca o desenvolvimento de uma inteligência voltada à evolução da raça”.

 

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Dramaturgias

Painel da dramaturgia brasileira contemporânea e suas inquietações, com apresentações como a peça Elagalinha, de Marcelo Romagnoli.

Onde: Sesc Ipiranga (r. Bom Pastor, 822, Ipiranga)

Quando: todo o mês de setembro

Quanto: informações de cada atividade no site

 

 

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