Na infância, contemplar é aprender sobre si mesmo e sobre o mundo

27/05/2022

A contemplação é uma maneira de estar e sentir que acontece de forma muito natural para as crianças. Com facilidade, elas se envolvem com uma fila de formigas no chão, com as cores do entardecer, com um graveto para riscar a terra, com uma brincadeira. A pressa, os horários, os compromissos e a necessidade de ser funcional dos adultos não combinam com esse ritmo tão bonito da infância.

Fundamental para a saúde e o desenvolvimento integral dos pequenos, a contemplação põe a criança em contato profundo consigo mesma e com algum elemento do mundo.

Mas o que é a contemplação e por que ela é tão importante para a vida das crianças?

Ilustração do livro infantil A árvore em mim

Uma criança percebe a natureza dentro dela em A árvore em mim, livro da autora Corinna Luyken

 

Movimento e pensar devagar

A pedagoga, psicomotricista e coordenadora do projeto Ser criança é natural, Ana Carolina Thomé, esclarece que, para os adultos, a contemplação parece estar muito associada a uma ação estática. “O que vem à nossa cabeça quando pensamos em contemplação é esse parar e observar; esse estado do corpo sem movimento. Mas, para a criança, a contemplação pode acontecer em movimento. A contemplação da criança também acontece no movimento e é expressa por ele.”

Imagem do livro A árvore em mim, da Pequena Zahar

A criança conectada com a natureza em A árvore em mim

Ela propõe uma ampliação do conceito de contemplação, que envolva todos os sentidos e não apenas o olhar. “Como é que você pode contemplar o vento tocando a sua pele? Como é que você pode contemplar o calor do sol chegando para você, por exemplo, nesses dias frios?", pergunta a educadora.

A contemplação pode ser considerada como esse lugar do encantamento das nossas percepções. É ter o nosso corpo encantado pelo que ele está sentindo

Ana Carol Thomé 

 

Taís Romero, que é pedagoga, especialista em coordenação pedagógica pela Reggio Children (Itália) e fundadora da consultoria Pedagogia Subjetividade, entende que contemplar é pensar devagar. “É olhar devagar, sentir devagar, escutar devagar. Se demorar nos detalhes, perceber as sutilezas escondidas na rotina, nos afazeres das coisas rotineiras. Entretanto, o que passa na maioria das escolas, das casas e na vida das crianças é a correria para chegar, para sair, para comer, para crescer, para avançar. Cada vez mais cedo, as crianças aprendem que viver é ter pressa.”

Ela defende que o contrário desses dias apressados, de interesses instantâneos e relações líquidas, é a desaceleração, a vagareza e o estado de contemplação.

Nós temos urgência dos processos. Criança tem urgência de infância. Pés descalços, natureza, barro, quintal, pedrinhas, formigas, cheiro de chuva, fruta do pé. Tempo. Tempo de espera.

Tais Romero

 

Contemplar é estar presente

Taís conta que conhece um grupo de crianças de 4 anos que, às sextas-feiras, se reúne para ver o pôr do sol. “E sabe o que elas aprendem? A esperar, admirar, olhar, silenciar, escutar, sentir e exercitar a humanidade. Do que precisa o mundo senão de pessoas que saibam mais de humanidade do que de velocidade?”, questiona.

Ana Carol relaciona ainda outras habilidades que são aguçadas quando a criança contempla: presença, curiosidade, sensibilidade, análise, pesquisa, seleção, classificação. “Muitas coisas podem estar acontecendo ali naquele momento. A criança vai conhecendo mais sobre ela mesma e sobre o mundo. Vai percebendo como o mundo a atravessa. Vai conhecendo a natureza do entorno; essa vida que está pulsando perto dela. E como cada criança é única, podemos olhar para essa individualidade também, porque tudo isso é vivido a partir do ponto de vista dela, do seu estar na Terra e do que vai interessar para ela naquele momento”, comenta.

Imagem do livro A árvore em mim, lançado pela Pequena Zahar

Ilustração do livro A árvore em mim

Esse “estado de encantamento” está intimamente ligado a um estado de presença ao qual, como propõe Ana Carol, só é possível chegar se as percepções estiverem ativas, se houver atenção e sensibilidade para perceber esse atravessamento no corpo. Nas palavras de Taís, é quando a criança silencia, sai do estado de euforia para o estado de calma. De acordo com ela, essa é a calma que promove a criatividade e a relação profunda com o vivido - e que, apesar disso, parece estar ausente inclusive das escolas.

“Para que serve a escola para as crianças pequenas?”, questiona a pedagoga.

“Certamente não é para acelerar ou antecipar processos. A escola, para elas, é o espaço de transição entre a vida familiar e a vida pública. O lugar para aprender sobre civilidade, gentileza, delicadeza, sociabilidade e humanidade. Tudo isso parte de conhecer a si mesmo na relação com os outros”, ela argumenta.

E isso só se atinge com tempo de qualidade para ser criança. “Todas as escolas do mundo deveriam ter como projeto a lentidão. Não ganha quem chega primeiro, quem passa em primeiro, quem faz primeiro. Ganha quem aprende a viver. O tempo é um princípio inegociável.” Tais defende que é preciso devolver esse tempo roubado e acelerado às crianças.

 

Nutrir o interesse pelo mundo

Para possibilitar a contemplação, Ana sugere que a criança precisa ter boas oportunidades de conhecer o mundo. “Quando eu falo ‘com o mundo’, quero sempre dizer ‘com a natureza’, porque é na e com a natureza que nos relacionamos diretamente com a vida, que é esse original do mundo”, diz a pesquisadora. “O principal é colocar a criança em contato com a vida.”

É estar em parques, praças e mesmo em casa, tendo boas experiências com a vida: cozinhar juntos, cortar uma fruta juntos, plantar. Ela lembra que o plantio é um exercício de viver o tempo de espera, de entender que tudo tem seu tempo e de estabelecer uma relação de cuidado para perceber a vida surgindo. A partir dessas conexões e relações, é possível perceber o mundo vivo e criar uma conexão com o tempo da natureza.  

O adulto precisa entender que isso é uma nutrição do interesse da criança pelo mundo. Elas precisam se encantar pela vida e se conectar com a natureza. Isso também é preservar a nossa vida de seres humanos na Terra. 

Ana Carol Thomé

 

Longe das telas

As duas especialistas não hesitam em indicar a redução do tempo de exposição a telas para criar um ambiente favorável à contemplação. “Eu consigo perceber que as crianças que não são expostas ou quase nada exposta a telas elaboram percepções de mais qualidade. Elas estabelecem uma relação muito mais minuciosa, cheias de detalhes e profunda com o que interessa, por um tempo prolongado”, diz Ana Carol.

Ilustração do livro A árvore em mim, de Corinna Luyken

O encantamento da criança pela natureza em A árvore em mim

Nas telas, as crianças assistem a narrativas curtas com começo, meio e fim, o que gera uma noção de tempo e movimento muito rápidos. Para Ana Carol, no mundo, a relação com o tempo é outra - muito mais devagar. “É o tempo real. A criança muita exposta a telas desenvolve uma necessidade de o tempo ser mais rápido e das coisas acontecerem mais rápido. Nunca basta o que está acontecendo ali no momento; sempre precisa vir algo depois e depois e depois. Além da questão da luz e das cores, há um impacto grande na relação com o tempo”, ela explica.

Tais Romero conta que ouviu recentemente de um menino de 6 anos que preferia o tempo do Minecraft, porque o dia e a noite passam mais rápido. “Rápido para quê? Para onde? Por quê? Qual o sentido dessa velocidade sem direção, sem atenção, sem intenção? O uso excessivo das telas tem condicionado as crianças e adultos também à passividade e à ansiedade”, diz.

Uma forma de empregar a tecnologia de maneira ativa e educar as crianças para esse uso é pensar nela como ferramenta para ajudar a investigar o mundo. Para Ana Carol, a ideia é que as telas sejam recursos e não finalidade, que apenas mantêm a criança passiva. “Dá para usar o recurso de câmera ou lupa para ampliar algo que foi encontrado e ver com mais detalhes. Usar a lanterna para jogar luz contra uma folha e perceber as nervuras”, ela exemplifica.

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