Livro-imagem: como ler as narrativas visuais?

21/10/2022

Um solitário guarda-chuva amarelo ganha a companhia de outros múltiplos guarda-chuvas, de diferentes cores e formas, cada um colorindo as ruas à sua maneira durante um dia chuvoso. Em uma pista de patinação no gelo, os traços deixados pelos rodopios graciosos do patins de uma criança narram a leveza de ser e estar. Essas pequenas sinopses resumem dois lançamentos incomuns por sua beleza, e pela proposta de aliar simplicidade visual e requinte subjetivo na construção da narrativa. Mas também pela ausência total de palavras, sendo ambos o que se convencionou chamar de livro-imagem.

 

Além das intensas e coloridas ilustrações, a história de Guarda-chuva amarelo vem acompanhada de uma playlist de músicas do compositor Shin Dong-il, elaboradas especialmente para a obra.

O primeiro é Guarda-chuva amarelo, traduzido no Brasil pelo ARA Cultural, coletivo de tradutores da USP. Eleito um dos mais belos livros ilustrados pelo New York Times, o livro é uma parceria do ilustrador Ryu Jae-soo (um dos mais premiados ilustradores contemporâneos) com o compositor Shin Dong-il, ambos sul-coreanos. Já o segundo é Linhas, o mais recente livro da premiada artista sul-coreana Suzy Lee - conhecida pela chamada Trilogia da Margem, que compreende as obras Onda (Nova Edição, 2017), Sombra (Nova Edição, 2018) e Espelho (Nova Edição, 2021). Ambos são publicados pela Companhia das Letrinhas.

LEIA MAIS: O fenômeno da cultura coreana na literatura infantil

A narrativa, em ambos, está apoiada nas imagens. Apesar de distintos em estilo, técnica e conteúdo, os livros abrem brechas para pensar sobre as narrativas visuais e a relevância artística e sensível do livros-imagem no repertório literário das crianças.

Como ler as narrativas visuais? Por que ainda tendemos a buscar narrativas apenas em palavras? Como ensinar as crianças a serem leitoras de ilustrações? Conversamos com os ilustradores Renato Moriconi e Irena Freitas, conhecidos por suas criações de livros-imagem, para ampliar essa conversa.

Narrativas estéticas: a imagem como idioma universal

Tudo é imagem. Até mesmo a palavra escrita é imagem. (Renato Moriconi, autor)

A afirmação do autor parece conter uma pergunta. Se tudo é imagem, já que até mesmo as narrativas estritamente verbais funcionam pela provocação de cenas na cabeça do leitor, por que os livros sem palavras constituem um gênero específico? Para Moriconi, autor do premiado Bárbaro (que acompanha a saga de um bravo guerreiro viking), o livro-imagem se associa mais ao campo das Artes Plásticas que da Literatura. “A ciência desenha a onda / a poesia enche-a de água”: esse verso de Teixeira Pascoaes diz muito sobre a capacidade que um texto tem de criar imagens.

LEIA MAIS: Um bravo guerreiro sem palavras

Ilustração do livro-imagem Linhas, de Suzy Lee. Na imagem, uma menina patina e cria linhas na neve

No mais recente livro de Suzy Lee, uma menina patina no gelo e vai deixando linhas nas páginas do livro

“Imagem é texto. A primeira forma que os humanos aprenderam a registrar suas vidas foi através de imagens, é uma linguagem universal que todos podemos ter acesso independente do idioma que falamos”, defende a artista visual Irena Freitas, autora de A floresta, um livro que conta somente em imagens a grave situação das queimadas na floresta amazônica.

Aprender a ler imagens é um exercício de imaginação. (Irena Freitas, autora)

Para o professor e premiado artista da linguagem verbal/visual Odilon Moraes, ilustradores são escritores de imagens. Imaginar um autor que escreve sem usar as palavras é um exercício poderoso para deslocar a noção sobre autoridade narrativa, e compreender como acontece a compreensão das narrativas visuais. Para Odilon, que falou ao Blog da Letrinhas sobre o tema em 2018, o livro ilustrado pode ser comparado a uma canção. “Nesse sentido, usar um texto de livro ilustrado com outra ilustração que não a original é como usar a letra de 'Garota de Ipanema' e encomendar a um músico uma nova melodia”, disse o autor.

LEIA MAIS: Ryu Jae-soo: "Guarda-chuva amarelo alcançou um nível universal de arte"

O ilustrador Ryu Jae-soo, autor de Guarda-chuva amarelo, compactua dessa visão sobre a especificidade do ato de narrar por imagens. No pequeno prólogo do livro, ele conta como vê esse processo. "Dediquei um bom tempo enxugando ideias racionais ou elementos muito narrativos, de modo a deixar mais transparente aquilo que eu queria mostrar, apenas com imagens visuais, como se fosse um processo de purificação. 

Quis mostrar a beleza plástica da pintura em si, deixando sobressair o valor próprio da arte, e a harmonia das cores vibrantes que irradiam do espírito da criança. (Ryu Jae-soo, autor)

Confira a entrevista completa com Renato Moriconi e Irena Freitas, e inspire-se para sua próxima leitura visual.

Historicamente, no Ocidente sobretudo, aprendemos a ler antes as palavras e depois as imagens, como se o texto verbal tivesse a “autoridade”. Nos livros-imagem, ao contrário, o domínio é o da ilustração. Como esse processo influencia nos múltiplos sentidos da leitura?

Renato Moriconi - Acredito que toda forma de comunicação seja viva e tenha potência ímpar naquilo que lhe é característico. A ideia de autoridade da palavra sobre a imagem tem mais a ver com a forma como nossa cultura enxerga o objeto livro do que com a potência real dessas duas linguagens. Por isso, quando falo do livro-imagem, prefiro localizá-lo no campo das Artes Plásticas e não da Literatura, pois dessa forma fica explícita a autonomia e a insubordinação da imagem. E dentro das Artes Plásticas, a meu ver, o livro-imagem se localiza no mundo da Arte Contemporânea, pois é uma obra criada na fronteira de linguagens, cujas imagens podem ativar outras formas de comunicação: capa, formato do livro, tipo de papel, título etc. O livro-imagem tende a ser uma obra que pede a leitura do todo. 

Capa do livro-imagem Guarda-chuva amarelo

 

Irena Freitas - É uma leitura que demanda mais atenção, já que o texto não está ali de apoio. Mas também dá mais autonomia para o leitor, porque não existem respostas certas e erradas ao interpretar uma imagem, depende muito de como aquilo ressoa com o leitor. A imagem te trouxe sentimentos negativos ou positivos? Você se lembrou de algum outro fato que você já presenciou? O papel do leitor não é apenas contemplativo, ele ajuda a criar a narrativa de acordo com sua leitura.

LEIA MAIS: Alargar o olhar: a função poética do livro ilustrado

Qual a importância das imagens na formação leitora da criança?

Renato Moriconi - Tudo é imagem. Até mesmo a palavra escrita é imagem. Os sonhos se revelam pra gente por meio de imagens. O mundo que nos cerca é imagem, portanto, ler imagens é parte do processo de ler o mundo. Imagens criadas - pinturas, desenhos, filmes – são mundos inventados. Por isso, ler imagens é estar atento e refletir sobre mundos, sobre o lado de fora e de dentro da gente. 

Meus escritores favoritos são grandes leitores de imagens. Veja este trecho do livro O filho de mil homens, do Valter Hugo Mãe: “Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e silêncios como os precipícios e poços profundos”. Que imagem linda! 

Irena Freitas - Imagem é texto. A primeira forma que os humanos aprenderam a registrar suas vidas foram através de imagens, é uma linguagem universal que todos podemos ter acesso independente do idioma que falamos. Nem tudo que comunicamos está em texto ou diálogo, essa habilidade de decodificar imagens seja em livros ou filmes é imprescindível no vocabulário da criança.

Capa do livro-imagem Linhas, da autora sul-coreana Suzy Lee

 

Que dicas você daria para esse momento da leitura compartilhada de uma história sem palavras?

Renato Moriconi - Leia tudo. Cada detalhe conta, tudo é comunicação, até mesmo as partes vazias, sem imagens. Leia cada página isoladamente, mas lembre-se que ela faz parte de uma sequência de outras páginas, que contêm outras imagens, que vão ser somadas. Se questione sobre como a sequência de imagens se relaciona. Reflita sobre o formato do livro, pergunte-se sobre a importância dele para a narrativa, sobre como ele se relaciona com as imagens. Questione-se sobre outros elementos, como o título, sobre como ele se relaciona com o restante da obra. Daí, quando você tiver intimidade com a obra, creio que se sentirá bem seguro para mediar esse tipo livro, na forma como achar mais adequada. Já vi pessoas mediando livros-imagem usando palavras, outras com sons produzidos com a boca ou aparelhos sonoros, outras com performances e até mesmo apenas mostrando o livro, tentando ser o mais neutro possível.

Penso que tendo intimidade com a obra, fica mais fácil escolher a melhor forma de mediá-la. (Renato Moriconi, autor)

Irena Freitas - Eu sempre deixo a criança folhear o livro primeiro livremente. Geralmente a própria criança oferece explicações para a leitura, mas a partir daí cabe ao mediador perguntar ou sugerir outras interpretações para a história. Como eu disse, não acredito em respostas certas ou erradas, mas acho o debate da leitura de forma informal com os pequenos leitores muito benéfico. É um momento de interagir com a criança e ouvir a opinião dela. O que ela mais gostou do livro? Que animais ela identificou? Porque ela acha que o livro progressivamente fica mais verde?

LEIA MAIS: Qual o lugar do ilustrador brasileiro na cena internacional?

Pais e professores costumam ter "medo" de mediar o livro-imagem? Como romper com o limite de que ler histórias visuais é mais difícil?

Renato Moriconi - Não sei se minha leitura está correta, mas esse medo me parece estar intimamente ligado à falta do hábito de leitura de imagens. E creio que a ruptura com esse medo vem com a prática.  

Irena Freitas - Acho que ainda temos muito essa compreensão de que leitura só pode ser feita através de um texto escrito. E nem sempre é o caso, a alfabetização visual é muito importante também, mas é difícil quebrar esse preconceito que não existe uma forma única de leitura. Nem sempre os pais e professores têm essa compreensão.

Literatura pode vir em muitas formas: livro-imagem, livro-objeto, quadrinhos, assim como o texto escrito tradicional. (Irena Freitas, autora)

Vivemos em um mundo com cada vez mais estímulos visuais. Porém, nem sempre sabemos ler uma imagem. Como fazer para nos alfabetizarmos visualmente?

Renato Moriconi - Ao contrário da palavra escrita, não existe uma regra para a leitura de imagens. Não existe uma cartilha que me diga que eu tenho que ler da esquerda pra direita e de cima pra baixo. Muita gente escreveu sobre leitura de imagens – cito o Alberto Manguel, John Berger, Lucia Santaella, Anne Cauquelin –, mas nada que estabeleça uma regra gramatical a ser seguida, pois as imagens são fluidas, incapazes de serem controladas.

Estabelecer uma regra para sua leitura é estabelecer uma regra para leitura do mundo, pois o mundo é imagem. Acho que prestar atenção e refletir sobre o que se vê são excelentes exercícios para a boa leitura de imagens. (Renato Moriconi, autor)

Irena Freitas - Acho que tudo é prática. Eu aprendi muito lendo e relendo livros ilustrados. Tem tantos detalhes que não estão no texto que, às vezes, deixamos passar batido. Histórias em quadrinhos também são ótimas para aprendermos dicas visuais, no ritmo e na repetição de certos elementos. Apreciar obras de arte e pinturas, se perguntar o que passava na cabeça do artista quando ele criou aquela tela. No mais, aprender a ler imagens é um exercício de imaginação.

Quais são seus três livros-imagem preferidos?

Renato Moriconi - O cântico dos cânticos, de Angela Lago; Zoom, de Istvan Banyai; La piccola fugitiva, de Franco Matticchio

Irena Freitas - Os livros da Trilogia da Margem, da Suzy Lee, são clássicos! Recomendo todos. Bárbaro, do Renato Moriconi, é um livro que sempre releio, a reviravolta na história é maravilhosa. E A piscina, da Jihyeon Lee, sempre me faz viajar nas múltiplas interpretações.

 

(Texto de Renata Penzani)

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog