Precisamos falar sobre branquitude com as crianças

03/11/2022

Por que usamos os termos “música negra”, “livros de autoria negra”, mas não dizemos “literatura branca” ou “arte branca”, por exemplo? Repensar essas questões passa por entender a palavra “branquitude”. À primeira vista ela pode intimidar, mas carrega uma pauta inadiável: a importância de exercitarmos deslocar o branco do lugar de centralidade da cultura e dos discursos sociais. Então, por que é importante falar do assunto com as crianças e jovens? De que formas o tema toca o desenvolvimento infantil? Hoje, falar de branquitude é estimular uma outra forma de estar no mundo. Essa é a proposta de Óculos de cor – Ver e não enxergar  (Companhia das Letrinhas, 2022), o novo livro da historiadora Lilia Moritz Schwarcz, que puxa uma reflexão sobre privilégios brancos, racismo, racialização, eurocentrismo e desigualdades.

Lilia Schwarcz se volta à literatura infantil para proporcionar reflexões aos jovens leitores sobre como a branquitude e o racismo estrutural atingem a todos no Brasil.

Para pensar sobre branquitude e como ela se aplica no dia a dia – e também na formação humana e política – das crianças, conversamos com a psicóloga, ativista e escritora Cida Bento, autora de O pacto da branquitude (Companhia das Letras, 2022), e eleita em 2015 pela The Economist uma das cinquenta pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade. Também convidamos para o debate a psicóloga e professora Lia Vainer Schucman, autora do livro Entre o encardido, o branco e o branquíssimo - Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo (Annablume, 2014), uma das pesquisadoras responsáveis por tornar o termo “branquitude” conhecido no Brasil.

Óculos de cor, novas lentes para enxergar o mundo

"A escravidão é um trauma histórico que não elaboramos o suficiente e tampouco superamos". A afirmação que está no prefácio de Óculos de cor, livro que se propõe a abrir um diálogo sobre branquitude por meio da literatura voltada ao público infantil e jovem, na qual o tema ainda aparece pouco. Mesmo sendo uma narrativa de aventuras e de personagens que apontam sempre para a esperança – diz Lilia –, "não se reflete sobre o racismo contemporâneo sem sentir muita vergonha e remorso". Por isso, a autora avisa: é um livro desconfortável. 

Considerando que qualquer linguagem artística pode ser uma forma de desacomodar-se do que está posto, o que temos aqui é uma obra de formação necessária, não só para crianças, mas também para quem lê com elas e para elas.

“Não nos interessa fazer uma criança branca se sentir mal por ser branca, e sim levá-la a ressignificar os aprendizados sobre cada grupo. O olhar crítico sobre o branco deve ser feito não para culpar ninguém, mas para responsabilizar a sociedade pela construção de um outro tipo de país.” (Cida Bento, psicóloga)

Racializar-se é tarefa dos brancos

Em Óculos de cor, Lilia define branquitude como um "sistema de privilégio dos brancos, construído nos tempos do sistema escravocrata, mas ainda vigente, que faz com que tomemos como 'naturais' uma série de diferenças na vida, no emprego, na saúde e na educação dos brasileiros”.

A grande falha do debate sobre relações raciais no Brasil, segundo pensadores sobre o tema, foi tratar a luta política contra o racismo como um problema exclusivamente dos negros. Porém, falar de discriminação racial não pode representar uma sobrecarga justamente para quem é alvo dela. 

“A herança do racismo é transmitida no que diz respeito aos brancos como mérito. Não é que o branco não tenha mérito, mas muitos meritosos negros não receberam privilégio nenhum.” (Cida Bento, psicóloga)

Daí a importância de os brancos se racializarem e tomarem seu lugar no pensamento crítico sobre privilégios sociais – uma postura que é necessariamente ativa. "A branquitude virou uma forma de estar no mundo, uma linguagem da diferença e ao mesmo tempo uma posição de conforto, na qual todos os que não são brancos são entendidos e representados a partir de uma mesma condição de inferioridade”, afirma Lilia, no texto de apresentação da obra.

"Não é hora de dizermos, apenas, que não somos racistas. Se não somos, precisamos então ser antirracistas, como afirma a ativista negra norte-americana Angela Davis e, no Brasil, Djamila Ribeiro, com nossos atos, nossas atitudes e a vontade de mudar.” 
(Lilia Schwarcz, historiadora)

As situações narradas no livro levam o leitor a pensar, por exemplo, por que somente algumas crianças têm mais oportunidades que outras? Por que algumas pessoas têm mais dinheiro? Por que a chance de ter muitos livros em casa não é para todo mundo?


“As palavras não são inocentes”

É o que diz Lilia Schwarcz no prefácio de Óculos de cor. Portanto, nomear as coisas de forma precisa também faz parte de uma tomada de consciência racial.


Óculos de cor traz no final um glossário que elucida questões abordadas ao longo da narrativa.

O que é branquitude: entenda o conceito

O campo de estudos críticos da branquitude surgiu na década de 1990, nos Estados Unidos. Antes, porém, já havia estudos precursores do assunto, de autoria de pensadores como W.B. Du Bois e Frantz Fanon. No Brasil, o sociólogo Guerreiro Ramos foi um dos primeiros estudiosos das questões raciais, e, com pesquisas realizadas nos anos 50, utilizava o termo “branquidade”; nos anos 2000, o tema ressurge com maior dimensão, no contexto do levante dos movimentos negros e da luta antirracista. 

Nos estudos teóricos, o termo "branquitude" é usado para descrever como e por que, em uma sociedade que se apoia em sistemas racistas, pessoas brancas ocupam lugares de maior prestígio exclusivamente pela cor de sua pele. Ser branco vem sendo histórica e continuamente um lugar de poder. Assim, é preciso instigar o próprio branco a se perceber nesse lugar e abrir espaço para uma revisão crítica de seus privilégios.

“Branquitude é uma relação de dominação de brancos sobre negros, amparada na ideia de que negros são inferiores aos brancos, e também no fato de que a escravidão trouxe uma herança só para os negros escravizados”, explica Cida Bento, uma das principais vozes de projeção desse tema no Brasil. Para ela, esse é um tipo de herança que se revela até hoje nas estatísticas e nos comportamentos.

A pesquisadora e psicóloga Cida Bento, autora de O pacto da branquitude (Companhia das Letras, 2022). Crédito da foto: Divulgação

“Perpetua-se essa ideia de ‘nós e os outros’. O ‘nós’ é o branco, e todo o resto é étnico, exótico, é o ‘outro’. Como se o branco fosse o ser humano universal.” (Cida Bento, psicóloga)

Já Lia Vainer chama a atenção para um ponto crucial do debate: o entendimento de que branquitude é fruto de uma narrativa construída – histórica e culturalmente. “É uma posição em que sujeitos considerados brancos recebem benefícios simbólicos e materiais; benefícios esses que eles distribuem apenas entre si. O branco não existe, porque cada sociedade elege quem é o seu próprio branco – muitos brancos no Brasil não seriam considerados brancos na Europa, por exemplo”, pontua.

“A branquitude também é uma ideologia, uma construção discursiva que coloca o branco em uma posição de centralidade e superioridade.” (Lia Vainer, psicóloga social)

Como falar sobre branquitude com as crianças?

No enredo de Óculos de cor, livro ilustrado por Suzane Lopes, o menino Alvo, sua irmã Clara, a mãe Branca, o pai Neves e o cachorro Cândido vivem um cotidiano marcado por diferenças escondidas, notadas apenas quando as pessoas se dispõem a trocar de ponto de vista.

"Alvo não conseguia ver "em cores", só "em cor": a branca", diz o livro. "Talvez o que estivesse acontecendo na família do seu Neves é que os dois irmãos faziam questão de não ver o que preferiam deixar de enxergar. Afinal, a vida parecia muito boa exatamente assim como era (e como sempre havia sido)”. Quando as crianças não veem a diversidade na prática, o branco vira a norma. 

“Se uma pessoa branca só convive com negros em relações hierárquicas – ou seja, necessariamente escravocratas – ela vai se apropriando de um sentimento de superioridade. É por isso que o branco precisa se tirar desse lugar de centralidade.” (Lia Vainer, psicóloga social)

Na construção entre forma e conteúdo, nada aparece no livro por acaso. Os nomes das personagens, por exemplo, referem-se a cores e provocam a pensar sobre as camadas de privilégios que nos cercam. Fazendo isso, a história de Alvo e seus amigos nos remete ao modo como as crianças constroem sentidos.

Como perguntar para uma criança se ela é branca, parda ou indígena?, questiona Cida Bento. Para ela, isso não funciona por várias razões. “A criança associa o branco ao papel sulfite, por exemplo, e as pessoas brancas não são daquela cor. O que eu quero dizer? Quando a criança aprende 'branco' ligado a seres humanos, ela aprende uma outra coisa, é a ideia do branco a partir da voz das pessoas em que ela confia. E aquilo já vem com uma conotação de que brancos são superiores, e isso vai ser associado a toda experiência de mundo”, explica.

“A criança primeiro aprende a hierarquizar a ideia de brancos e negros, para depois se racializar.” (Cida Bento, psicóloga)

Em um raciocínio parecido, Lia Vainer nos leva a pensar sobre como a criança elabora as diferenças na prática. “A primeira coisa que a criança vê é a cor, que é uma característica física, assim como o tamanho do pé ou da mão. Então, como é que cor vira raça na cabeça da criança? Ela precisa aprender a observar as hierarquias sociais”, pondera.

“Há uma necessidade de reconstrução das narrativas históricas. Sabemos, por exemplo, que o macarrão veio da Itália, mas poucos sabem que a carne ensopada com legumes veio de Moçambique. Qualquer esforço de falar de branquitude na infância tem a ver com tirar os brancos do centro”, explica Lia.

“A criança ainda não construiu o racismo, ela só precisa ver o mundo de outra forma, e para isso é preciso que haja um equilíbrio das relações raciais.” (Lia Vainer, psicóloga social)

As ilustrações de Suzane Lopes em Óculos de cor, de Lilia Moritz Schwarcz.

Por uma escola racializada: a diferença entre preconceito e racismo

No dia seguinte em que sonha ter ganhado de presente um par de óculos mágico, capaz de fazer ver todas as cores, o garoto Alvo, protagonista de Óculos de cor, chega à escola e se depara com uma grande mudança na sala de aula. As carteiras agora tinham nomes marcados, e de alguns ele nunca tinha ouvido falar. Ebony, Ashanti, Bomani, Ynaiê. "Brancos de várias tonalidades, marrom-claro, marrom-escuro, peles negras de muitos tons, cor de jambo, cor de cuia, cor de pimenta e por aí vai. Eram tantas cores que ele mesmo parecia de todo estranho por lá. Sabia, entretanto, que era um estrangeiro em país próprio”, diz o texto do livro.

Essa cena, em que uma criança se depara com multiplicidades de raças, não acontece sempre. Sobretudo se considerarmos escolas em contextos de concentração de riqueza, em que há maior homogeneização de quem tem ou não acesso.

É por isso que é preciso, segundo as especialistas, antes de mais nada, diferenciar o que é preconceito e o que é racismo. Enquanto o primeiro se traduz em gestos e comportamentos cotidianos, o segundo diz respeito a sistemas que se mantêm e ditam as regras de funcionamento da sociedade. Para Lia, que é doutora em Psicologia Social, notar essa diferença e agir a partir dela é o que constrói de fato uma educação antirracista.

“O intuito da branquitude não é a subjetividade branca, sou muito crítica a isso. E sim entender como é que o racismo privilegia essas pessoas, e como elas se beneficiam desse sistema.” (Lia Vainer, psicóloga social)

Não existe prática antirracista individual

“Se todos os pais chegarem à escola e perguntarem: “vocês contratam professores negros? Qual a porcentagem?”, isso sim é uma prática antirracista. O antirracismo não está relacionado à representação, não existe antirracismo individual – por exemplo, ler um livro com personagens negros e sentir-se menos racista. É preciso uma recriação de normas coletivas em cada espaço. E isso tem a ver com divisão de poderes, de lucros. É preciso que cada pessoa pense ‘de quais instituições eu faço parte?’, e assim agir para mudar as estruturas que regem aqueles espaços”, explica Lia.

“Não adianta apenas mostrar desenhos de crianças negras, se a empregada da família trabalha aos domingos. Ou só ler livros sobre negros se eles não estão no dia a dia. Essas coisas não combatem o racismo, somente o preconceito. Só o racismo faz com que haja exclusivamente brancos em lugares de poder, em um país como o Brasil, onde os negros são a maioria.” (Lia Vainer, psicóloga social)

Cida Bento defende que é preciso desnaturalizar o que a criança aprende sobre cada grupo, o que hoje acontece em uma perspectiva eurocentrada – ou seja, uma História que é ensinada considerando apenas a visão dos europeus, em detrimento de outras narrativas, como a dos povos africanos. “Trazendo as muitas Histórias, a criança já vai aprender”, diz Cida. E isso é feito com a colaboração de toda a comunidade responsável pela infância: escola, família e sociedade em geral.

A psicóloga e professora Lia Vainer Schucman, autora do livro Entre o encardido, o branco e o branquíssimo - Branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo (Annablume, 2014), uma das pesquisadoras responsáveis por tornar o termo “branquitude” conhecido no Brasil.

O ato contínuo de rever o mundo

Na perspectiva de Cida Bento, Lia Vainer, Lilia Schwarcz e outros pensadores da branquitude, percebe-se uma urgência em reparar os vãos entre teoria e prática quando o assunto é formação racial das crianças. Para isso, rever os termos que usamos e os gestos que ensinamos é essencial. “Dizer para a criança que 'a coisa ficou preta' quando vivemos algo ruim é naturalizar na cabeça da criança de que o negro é ruim. Rever isso é alcançar outros patamares civilizatórios”, defende Cida. 

“A palavra cura, não é à toa que a oralidade, para as culturas africanas, é tão fundamental. Por isso chamamos nossos idosos de bibliotecas, porque eles guardam dentro deles os significados sobre cada coisa. As palavras podem ajudar a reconstruir nossos territórios de relações de maneira mais ética e amorosa.” (Cida Bento, psicóloga)

É preciso, como o personagem Alvo, mudar o comportamento para ver o mundo com outras lentes. Ver e querer enxergar todas as cores que compõem nossa sociedade, sob uma perspectiva também multicolor.

"O menino teve a nítida sensação de que aquele era um mundo novo que parecia estar escondido em algum lugar. Mas não estava; se encontrava bem na frente do seu nariz, ele é que não havia procurado conhecer." Afinal, "se havia gente que precisava usar óculos para ver de perto, outros para ver de longe, então faria bom uso de óculos que o ajudassem a ver em cores; muitas cores, e não uma só." (trecho do livro Óculos de cor)

 

(Texto de Renata Penzani)

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