Ontem, hoje e amanhã: como desenvolver a noção de tempo das crianças?

17/11/2022

Dentro do amanhã vive uma escola cheia de possibilidades. Pelo menos é assim para a jovem protagonista de Amanhã, livro escrito e ilustrado por Lúcia Hiratsuka e publicado pela editora Pequena Zahar (2022). Na ansiedade do dia seguinte que nunca chega – e, com ele, a ida para a sala de aula -, a menina enfrenta a noite que “caminha na vagareza” enquanto ouve histórias de sua mãe e de sua avó, que estudaram em épocas e em situações muito diferentes da que ela vive.

Ilustração do livro infantil Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, pela Pequena Zahar

No livro Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, três gerações de sua família esperam pelo tão aguardado amanhã, o dia de ir para a escola

A ansiedade pelo futuro que nunca chega não é exclusividade da garota: quem nunca viajou com uma criança e se deparou com a ansiedade que aparece em uma quantidade enorme de perguntas, o famoso “estamos chegando”? Ou ainda se viu inventando jogos para que o tempo passasse mais rápido? Ou respondeu pela milésima vez quanto falta para o Natal chegar?

Capa do livro infantil Amanhã, de Lúcia Hiratsuka

Como se cria a noção de tempo

Isso acontece porque a noção temporal da criança não é a mesma dos adultos. A ideia que concebemos de tempo (ontem e amanhã, antes e depois) é cultural e a aprendemos ao longo da vida. Nos primeiros anos de desenvolvimento, a criança tem uma noção de tempo episódica, como explica Andrea Arruda, fonoaudióloga e diretora do Núcleo de Estudos e Terapias (Netaf). “É uma visão do momento daquilo que ela está vivendo. A criança menor tem uma necessidade de experiências mais concretas, ela vive em um mundo mais concreto”, explica.

Tanto que é apenas mais tarde, com a alfabetização e com o aprendizado da matemática, que os mais jovens começam a desenvolver a noção temporal que nós, adultos, temos. Afinal, “o número é um ritmo, tem um tempo, o que vem antes e o que vem depois”, explica a psicopedagoga e psicodramatista Claudia Feldman, fundadora do Netaf.

O brincar e a experiência corporal também são bastante valiosos nesse sentido. O subir e descer de um escorregador, o tempo certo de chutar uma bola ou até o ritmo de uma cantiga: tudo isso é aprendizado de conceitos abstratos, como trás e frente, longe e perto, que contribuem para essa relação com o tempo.

Lúcia Hiratsuka aborda o conceito abstrato do amanhã, a passagem do tempo e o que representa a escola para três diferentes gerações

Lúcia Hiratsuka aborda o conceito abstrato do amanhã, a passagem do tempo e o que representa a escola para três diferentes gerações no sensível livro Amanhã

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E é claro que aprendemos a lidar com o tempo durante toda a vida. Atire a primeira pedra o adulto que nunca se atrasou para um compromisso, ou ainda perdeu a noção do tempo enquanto fazia algo prazeroso. A questão é que, para as crianças, referências concretas trazidas pelos mais velhos fazem parte de uma “noção organizadora” que pode trazer segurança a elas, além de ser extremamente importante para o seu desenvolvimento.

Quando meus filhos eram menores, íamos viajar e eles ficavam: “já está chegando?” Então eu falava assim: “nossa viagem tem cinco fases”. Ia dando uma noção organizadora, que é essa referência. “Agora estamos na primeira fase.” E eles se acalmavam muito, porque isso dava um contorno e uma segurança. Quando damos vocabulário, damos uma experiência organizadora. (Claudia Feldman, psicopedagoga e psicodramatista)

Minha filha também, quando viajamos para a praia, falo para ela: quando você vir prédios, é porque já está chegando em casa. Quando você estiver vendo morro, paisagem, está longe. Não adianta perguntar se está chegando, porque você já vai saber. Você está dando uma noção de tempo e de espaço. Esses princípios são os princípios clássicos para linguagem de letras e de raciocínio aritmético, precisamos dessa noção de tempo e de espaço. (Andrea Arruda, fonoaudióloga)

Essa referência pode vir na forma de uma simples comunicação, como explica Arruda. Um simples “agora a mamãe está ocupada, depois da janta conversamos” fornece à criança um ponto concreto de quando a sua questão será discutida. Nomear manhã, tarde, noite, hora, dia, só um minutinho, tudo isso traz a concretude para alguns dos conceitos mais abstratos que inventamos enquanto sociedade.

 

4 modos de desenvolver a noção temporal com as crianças

Além do diálogo com a criança, há atividades simples, que podem ser feitas em família ou na escola, inseridas no cotidiano, e que podem contribuir para lidar com a noção de tempo e a espera. A psicopedagoga Claudia Feldman e a fonoaudióloga Andrea Arruda compartilharam algumas dicas.

 

1. Instigue o uso de objetos como calendário, agenda e relógio de ponteiro

A noção temporal está intimamente ligada à noção espacial. Por isso, o uso de calendários e agendas pode ser uma boa escolha para ajudar os mais jovens a visualizar o que vem antes e o que vem depois. Nesses objetos, o número um aparece antes do dois, que por sua vez aparece antes do três. Aqui, os números podem ser relacionados com as ideias de frente e trás, antes e depois, ontem e hoje.

O relógio de ponteiro, por sua vez, possibilita que a criança visualize a passagem do tempo com o movimento físico do ponteiro. Aqui também é possível estabelecer referências para crianças que já sabem os números, como lembra Claudia.

Segundo a psicopedagoga, é mais proveitoso ensinar a criança de que quando o ponteiro grande estiver no seis, está na hora de ir para a escola em vez apressá-la para o compromisso. Isso dá autonomia para que ela controle o tempo que tem. Dessa forma, ela consegue visualizar quanto tempo é dez minutos, quanto tempo é meia hora, e a entender a duração desse período.

 

2. Estabeleça uma rotina

Lidar com o tempo é um processo de aprendizagem para todos, inclusive para os adultos. Nesse sentido, a rotina funciona como organizadora do tempo da criança, e proporciona a ela segurança e estabilidade, o que é essencial no seu desenvolvimento. Por isso, busque determinar horários para as refeições, a realização de tarefas ou para dormir.

3. Conte histórias e leia junto

As narrativas são poderosas para o desenvolvimento saudável das crianças, e uma de suas características é que elas possuem começo, meio e fim. Por isso, leia com as crianças, converse com elas sobre a história que acabaram de ouvir, peça para que elas contem seus trechos favoritos. Narrar a ordem das ações é uma boa forma de compreender o que vem antes e o que vem depois; ou seja, de organizar o tempo.

É natural que, à medida em que a criança vai ganhando autonomia leitora, surjam mais momentos de leitura solitária. Mas é importante que também existam momentos de leitura compartilhada: “A escuta e a afetividade são muito importantes para a criança. A leitura é uma construção conjunta o tempo inteiro, o adulto direciona e faz uma mediação em busca da autonomia”, afirma Claudia Feldman.

4. Aposte nos jogos

Percursos, casas a avançar, peões a mover: jogos de tabuleiro são ótimas ferramentas para se divertir, mas também para desenvolver a noção espacial do que vem antes do que vem depois; de quem está chegando ao final e de quem ainda está longe. Junte a família num dia chuvoso e aproveite o momento com as crianças!

 

Livros que ajudam a lidar com a passagem do tempo

Além de Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, selecionamos alguns livros que podem ajudar a fornecer noção de tempo e espaço, como livros de contar e que falam sobre o passar dos dias e dos anos. E alguns que ajudam os adultos a pensar no tempo como pensam as crianças. 

Só mais cinco minutos, de Marta Altés (Brinque-Book, 2021)

Capa do livro infantil Só mais cinco minutos, de Marta Altés, sobre noção temporal das crianças

O tempo de mães e pais é bem diferente do tempo dos filhos. Enquanto os primeiros estão sempre atrasados e correndo pra chegar em algum lugar ou para fazer alguma coisa, as crianças vivem em outra realidade temporal. Ali sempre há tempo para brincar mais um pouquinho, para apreciar uma formiga no meio do passeio ou correr atrás de uma borboleta. O que esse tempo das crianças têm a nos ensinar?

 

Noite vira dia, de Richard McGuire (Companhia das Letrinhas, 2021)

Capa do livro infantil Noite vira dia, de Richard McGuire

Dia vira noite, noite vira dia. É dentro dessa passagem de tempo que acontece as nossas vidas - e que muitas coisas acontecem nelas. Com ilustrações vibrantes e poucas palavras, o ciclo da vida, dia após dia, é abordado pelo premiado artista Richard McGuire. 

 

A árvore generosa, de Shel Silverstein (Companhia das Letrinhas, 2017)

Capa do livro infantil A árvore generosa, de Shel Silverstein pela Companhia das Letrinhas

Aqui a passagem do tempo se dá na relação entre um menino e uma árvore. Dia após dia, o menino vai até a amiga buscar sombra, maçãs e brincadeira nos seus galhos. Mas o tempo vai passando e, no crescimento do menino, mudam os desejos e as demandas - somente a relação de amor permanece igual. Logo ele vai querer uma namorada, uma esposa, uma casa, dinheiro e, assim, ambos vão envelhecendo aos olhos do leitor. Um livro que fala sobre o tempo, mas principalmente sobre amor e doação. 

 

Uma raposa, de Kate Read (Companhia das Letrinhas, 2022)

Capa do livro infantil Uma raposa - um livro de contar (e de suspense), de Kate Read, publicado pela Companhia das Letrinhas

Uma raposa esfomeada, com dois olhos arregalados, está de olho em três galinhas gorduchas. Com muito humor e um final surpreendente, este livro de contar apresenta a sequência numérica às crianças de um modo muito divertido e que vai acabar em gargalhadas. Para as crianças pedirem " de novo!" e "de novo!". 

 

Um gorila - Para aprender a contar, de Anthony Browne (Pequena Zahar, 2021)

Capa do livro Um gorila, para aprender a contar, de Anthony Browne, pela Pequena Zahar

É um livro de contar até 10, mas de um jeito muito original e com ilustrações lindas e superdetalhistas. Neste livro, o aclamado Anthony Browne apresenta diferentes espécies de primatas, de gorilas a gibões, macacos e lêmures, agrupados em seus respectivos números. E nos coloca a todos em uma mesma e grande família. 

O livro laranja. de Richard McGuire (Companhia das Letrinhas, 2022)

Capa de O livro laranja, de Richard McGuire, pela Companhia das Letrinhas
 
Do mesmo autor de Aqui e Noite vira dia, este livro nos propõe acompanhar o destino de 14 laranjas. Ao mesmo tempo em que é um livro de contar (o chamado counting book), é também uma obra pra pensar na vida, no destino, nas possibilidades, em causa e efeito... Uma leitura que filosofa e ensina.
 
 

(Texto de Luísa Cortés)

 

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