Uma mesma história, muitas formas de contá-la

12/04/2023

Talvez você já conheça João Pestana, o personagem que dá título ao livro infantil de Gregorio Duvivier (Companhia das Letrinhas, 2023). Ele é uma das muitas heranças culturais que nós, brasileiros, recebemos dos portugueses. João Pestana é um ser mitológico europeu, que representa a chegada do sono para as crianças. Ele tem algo em comum com Sandman - aquele que também inspirou a história em quadrinhos, que, por sua vez, virou uma série de sucesso na Netflix recentemente. E também ganha nomes e atributos diferentes em outros países. Fato é que os contos variam de acordo com a cultura, o tempo e o espaço, especialmente na tradição oral - e com o que faz sentido para o presente narrado.

Apresentar as diferentes versões e refletir com as crianças sobre elas pode ser bastante enriquecedor para pensar na passagem do tempo e nos papéis e costumes socialmente atribuídos em cada momento histórico. E para pensar até em como alguns contos poderiam ser melhor integrados em cada cultura ou época - não seria um ótimo exercício criativo imaginar as adaptações possíveis? (já pensou uma Cinderela amiga de botos amazônicos em vez de ratinhos?) Sendo assim, pais e educadores, é mais que bem-vinda não somente a apresentação de narrativas variadas, que mostra a riqueza na diversidade de cada cultura ou na imaginação de alguns autores para que as narrativas lhe façam sentido, mas também o questionamento sobre questões como o papel submisso das princesas, a realização pelo casamento e a cristalização de um modelo Disney sobre os contos de fadas. 

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Página do livro João Pestana, que mostra o personagem responsável por carregar o pó do peso do mundo

 

A história de João Pestana

O primeiro registro documentado sobre o mito de João Pestana, ou melhor, de Sandman, neste caso, data do século 18, de um dicionário alemão. A história, essencialmente, fala sobre um personagem que chega quando tudo está silencioso, joga um pouco de areia mágica sobre as pálpebras das crianças (ou sobre as “pestanas”, como se diz em Portugal, para designar os cílios), que logo ficam pesadas demais para continuarem abertas. Então, o sono vem, sem que os pequenos nem tenham tempo de ver quem deu aquela forcinha para o descanso. 

Como toda história, transmitida ao longo do tempo, em vários lugares diferentes, contada por diversas pessoas e para públicos distintos, o mito tem um eixo central - que é o personagem “responsável” pelo sono, nesse caso - e vai mudando, conforme o lugar e o momento no tempo. 

O próprio Gregório fala um pouco sobre a origem de João Pestana e suas várias versões, depois de contar a história, no livro. “O João Pestana faz parte da mitologia portuguesa e, claro, veio parar aqui no Brasil, mas ele também existe em outros países, com outros nomes e características. Na mitologia galega, ele é o Pedro Chosco: um velhinho barbudo que adormece as crianças com um carinho infalível. Na mitologia nórdica, ele é o Sandman, um serzinho que anda de meias pra não acordar ninguém e adormece as crianças com uma finíssima areia mágica. Na versão do dinamarquês Hans Christian Andersen, ele tem dois guarda-chuvas: um muito colorido, que faz as boas crianças sonharem com coisas lindas, e um guarda-chuva preto, que impede as crianças mal-comportadas de sonharem. Não gosto muito dessa parte, porque acredito que todas as crianças merecem sonhar, e gosto de guarda-chuvas pretos”, explica o autor. 

João Pestana, de Gregório Duvivier

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Mitos, contos de fadas e suas mil versões

O fato é que muitas histórias que nascem em algum local e momento específicos passam a alcançar novos lugares, novos públicos, novos tempos. Conforme a narrativa se espalha, ela vai ganhando novas cores, novas roupas, novos focos e, às vezes, até novos finais. Além do João Pestana, várias outras histórias conhecidas têm centenas ou mesmo milhares de versões pelo mundo, que se aproximam mais da realidade, da cultura, dos costumes e do período em que são contadas.

Cinderela, por exemplo, tem centenas de versões. Numa versão chinesa, uma menina maltratada pela madrasta se torna amiga de um peixe mágico. Ao perceber a felicidade da garota, a madrasta manda matar o animal e um velho barbudo (alô, fada madrinha!), que aparece nas margens do lago, conta à menina desolada que as espinhas do peixe podem conceder pedidos. Ela, então, aparece em um baile, perde o sapatinho na hora de ir embora e um monarca fica desesperado para encontrar a dona e, depois, casa-se com ela. Mesma essência, detalhes diferentes.

 

Quem conta um conto, aumenta (ou diminui) um ponto

Katia Canton, escritora, professora, jornalista e pesquisadora, autora dos livros A cozinha encantada dos contos de fadas e A cozinha curiosa das fábulas, ambos da Companhia das Letrinhas, explica que as histórias e narrativas surgiram junto das primeiras formas de comunicação, com o homo sapiens. “Elas foram criadas tanto para ações práticas, como avisar sobre perigos, a presença de animais selvagens, os locais onde era possível encontrar comida, mas também para conseguir a abstração, ou seja, simbolizar a realidade e fazer da existência algo mais suportável”, explica. 

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Ao longo dos séculos, a vida, a socialização, a alimentação, as atividades e, claro, a comunicação mudaram (quase) totalmente. Ainda assim, as histórias continuam não apenas existindo, como se transformando e se adaptando junto com o homem, acompanhando a evolução, a cultura, os costumes, a geografia - como aconteceu com João Pestana, Sandman ou Pedro Chosco, dependendo de onde você estiver ouvindo ou lendo sobre ele. Os contos podem ter muitas coincidências, já que os núcleos das histórias podem apresentar questões essenciais ao ser humano, mas que se adaptam, de acordo com a cultura, o espaço e o tempo.

Página do livro João Pestana, de Gregorio Duvivier

“Tem o ditado que diz que ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’! Mas vou além: quem conta um conto também pode diminuir algum ponto aqui, mudar um ponto lá e adaptar outro ponto acolá!”, ressalta Elvis Campello, docente do curso de Contador de História do Senac São Paulo. Ele lembra que uma das maneiras pelas quais as adaptações podem acontecer vem da observação de quem vai escutar a história. “Contação de histórias não é uma narrativa pura; é também (e muito!) ouvir”, afirma.

Katia lembra como isso acontecia, na tradição oral, antes mesmo de as histórias serem registradas. “Os camponeses se reuniam no fim de um dia de trabalho para contar as histórias, que sempre se modificavam, de um para o outro. Por isso, podemos pensar nas possibilidades de contar e recontar as histórias”, diz. 

 

Tradição oral e adaptações: algumas ideias

Elvis traz um exemplo bem brasileiro, de uma mudança pontual, mas que, para a pessoa que estava escutando, fazia toda a diferença - e esse exemplo também tem a ver com a Cinderela. Na época em que cursava a faculdade, ele tinha uma professora que era da região norte do país. “Ela conta que veio pequena para São Paulo e, muitas vezes, ouviu a história da Cinderela narrada por professoras. Já na pré-adolescência, quando teve acesso  pela primeira vez a um livro e pode ver as ilustrações, disse, indignada: ‘Oras! Por que nunca me disseram que a carruagem dela se transformava num jerimum?’ Pequena, não sabia o que era uma abóbora. Neste caso, se ao narrar essa parte alguma professora tivesse tido a sensibilidade de dizer que abóbora é o mesmo que jerimum ou moranga, dependendo da região do Brasil, a história teria ficado mais clara para ela”, diz. 

Nesse caso, a adaptação seria pontual, de vocabulário. O enredo continua o mesmo, assim como os acontecimentos e os personagens. A Cinderela do norte bem que poderia ser amiga de um boto cor de rosa, em vez de conversar com ratos ou passarinhos. Quem sabe a "fada madrinha" não fosse um ser mitológico indígena? Algumas histórias sofrem mudanças maiores, na própria narrativa, no final, no jeito em que as coisas acontecem. As adaptações transformam as narrativas para deixá-las mais próximas das questões culturais de cada região. “São questões como costumes, folclore, hábitos alimentares, regionalismo linguístico e outros”, enumera Campello. 

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O papel das mulheres nas histórias e nos contos

A evolução da sociedade também é contada por meio das histórias, que, como destaca Katia Canton, são tradicionalmente baseadas no desejo e nas necessidades reais das pessoas. “Os camponeses, que contavam histórias oralmente, passavam a vida inteira sem nunca sentir a barriga cheia, a sensação de saciedade. Por isso, a comida era tão presente nas histórias”, lembra ela, que falou sobre isso em A cozinha encantada dos contos de fada. “A partir do momento em que as pessoas aprendem a plantar e a comida fica mais abundante, ela fica menos presente e passam a existir outras demandas simbólicas”, explica.

Na ilustração, João Pestana chega próximo ao objetivo final: os olhos da criança

Um exemplo bem mais recente disso é o papel das mulheres nas histórias e nos contos - algo bem perceptível para as gerações mais atuais. “Os próprios estúdios da Disney estão fazendo protagonistas mais afirmativas, tentando fazer uma correção histórica, mas isso ainda é muito pouco, perto do que foi construído”, diz a pesquisadora. Hoje, pode ser até um pouco estranho pensar em um príncipe que organizou um baile para conhecer as mulheres do reino e escolher aquela com que ia se casar. “Muitas histórias são mudadas para que façam sentido no contexto atual”, diz Katia.

As transformações, nesse sentido, ainda pegando como exemplo as histórias da Disney, começaram há pouquíssimo tempo, agora, nos anos 2000. Embora tenha mudado bastante e sensivelmente, a questão ainda está engatinhando, porque os contos refletem a sociedade patriarcal há milênios. Mas a tendência é continuar acompanhando e mostrando que o mundo é diferente agora, que temos mais vozes e maior pluralidade. 

“As histórias são elásticas, são plásticas”, lembra Katia. As narrativas caminham pelo mundo, como João Pestana caminha, buscando o silêncio e procurando os olhos das crianças, para ajudá-las a dormir.

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