Temas fraturantes e literatura para todes

05/05/2023

O segundo dia da Jornada Pedagógica 2023 trouxe para o debate questões fundamentais para se pensar uma literatura democrática e que faça parte de um projeto de educação libertadora.

A primeira mesa trouxe para o debate os temas fraturantes na literatura e formas de se trabalhar questões necessárias na escola. A mediadora, Diana Navas, doutora pela USP e pesquisadora na área de tendências da literatura infanto-juvenil contemporânea brasileira e portuguesa, iniciou a conversa com a pergunta: há temas inadequados a serem abordados pelas obras literárias?

Segundo dia da Jornada Pedagógica 2023 tratou dos temas fraturantes na literatura

A partir disso, expôs a necessidade de se colocar essas fraturas em discussão, lembrando que por muito tempo os jovens foram poupados de discussões de temas como a morte, a miséria, a sexualidade, a violência doméstica e tantos outros. “O texto literário, quando aborda temas tabus, permite que o sujeito, ainda que inconscientemente, elabore seus próprios sentimentos, compreenda situações que o envolvem no mundo real e faz isso por meio da imaginação. A literatura nos dá a oportunidade de ressignificar as experiências”.

Já o segundo encontro, que teve como tema “Literatura para todes: um direito, uma polêmica”, trouxe o debate sobre corpos invisibilizados pela história e a necessidade de se repensar a narrativa apresentada na escola sobre esses sujeitos. “O título dessa mesa é uma provocação. E nós sabíamos que a questão da linguagem não-binária seria um ponto de discussão muito bom. A gente faz um esforço no sentido de mostrar a necessidade de se fazer esse exercício, pois esse é um exercício de reconhecimento de mais pessoas, afinal, estamos falando de uma Jornada que propõe a literatura como um direito de toda a comunidade escolar”, reforçou a mediadora Rafaela Deiab, da Companhia na Educação.

Na segunda mesa do segundo dia da Jornada Pedagógica, o tema foi Literatura para todes

 

Temas fraturantes: literatura como cura

Para falar sobre experiências positivas na abordagem de temas fraturantes foram convidados três profissionais da Educação com diferentes projetos e ações que giram em torno desse assunto. Juliana Marques, que é especialista em clubes de leitura e que desenvolve projetos de leitura com adolescentes na rede pública, falou sobre sua experiência prática e sucessos das ações desenvolvidas.

Entre os pontos abordados, estão a necessidade de os mediadores de leitura estarem atentos àquilo que os alunos querem ou precisam ouvir e falar. “Um levantamento feito na escola mostrou que os quatro livros mais emprestados pelo 6º ano tratavam de temas estruturantes, sendo o primeiro deles Anne Frank. Ou seja, é preciso conhecer as turmas para saber as necessidades delas e então planejar as ações de leitura em cima disso”, disse ela. Ainda, a educadora lembrou da importância da existência e da luta por políticas públicas que garantam a existência de salas de leitura, formações de professores e acervo de qualidade.

É preciso fazer boas escolhas e fugir do utilitarismo. Embora estejamos falando de temas fraturantes, a gente não pode moralizar o instante. A literatura não tem esse papel. Ela serve pra organizar os sentimentos, os pensamentos, transformar em palavra que não está dita. (Juliana Marques, especialista em clubes de leitura)

 

O segundo convidado, Mari Costa, é mestrande pela USP e orienta salas de leitura na rede pública de São Paulo. Mari iniciou o debate questionando o próprio enunciado do tema fraturante: “para quem é fraturante?”. Mari relembra que muitas histórias ouvidas há até pouco tempo, como as de Monteiro Lobato e sua representação estereotipada e racista de corpos negros, fraturaram infâncias inteiras e o quanto essa violência foi naturalizada por meio da literatura.

Assim como acontece com a questão de gênero. “A fratura começa a ser problema quando desnaturaliza a violência”, reforçou ele. O educador também trouxe, em contraposição ao termo fraturante, o conceito de Conceição Evaristo de escrevivência. “Quando ela traz esse termo, ela está falando de uma ancestralidade que precisa ser olhada, recriada e redimensionada para que o nosso futuro possa ser mais justo”, disse ele. De forma positiva, Mari reforçou que hoje existe uma retomada dos sujeitos e de uma nova imaginação do passado.

Estamos falando também de um processo de cura. Não é cancelar Monteiro Lobato, é encher a sala de muitas referências e corpos, pra que a gente possa ler Monteiro Lobato e fazer as críticas necessárias. A literatura cura, e a gente só consegue a cura se fratura o preconceito. (Mari Costa, orientador de salas de leitura)

O último a trazer a discussão para a mesa foi Fábio Rodrigues, cientista social e coordenador nos colégios Sesi (RJ). Fábio reforçou o quanto os dias atuais trazem a problemática de espaços fraturantes em decorrência de fatores como a violência, as desigualdades sociais, a luta por reconhecimento de grupos invisibilizados e de ataques a professores com projetos reacionários que buscam “vigiar e punir” a escola. “A pandemia agravou essa situação, pois muitos pais passaram a acompanhar as aulas como forma de realizar uma patrulha ideológica”, contou ele.

Fábio trouxe um episódio ocorrido no Sesi de Volta Redonda (RJ), que suscitou ações para prevenir e assegurar que a escola tenha respaldo. “Houve um levante dos pais em 2018 quando utilizamos o livro Omo-Oba, de Kiusam de Oliveira, que fala sobre princesas negras. Pais conservadores questionaram o livro, pois trazia o nome de algumas divindades africanas. E esse episódio aconteceu justamente na semana do assassinato da Marielle. Então, estabeleceu-se um trauma na escola”, disse ele.

A partir de então a rede Sesi passou a pensar em ações preventivas, como a formação de professores e a instrumentalização dos educadores em questões ligadas à diversidade, citando como exemplo o projeto que a rede desenvolve em parceria com a Companhia das Letras de formação da diversidade. Ainda, falou da importância de a escola dar respaldo para que os professores se sintam seguros.

Literatura para todes!

“Invisibilizar corpos não vai apagar essa realidade”. Foi assim que Lucas Dantas, pesquisadore de gênero, sexualidade e diversidade na Educação trouxe o debate para a mesa da noite. Em sua fala, Lucas ressaltou o quanto a diversidade é uma realidade que deve estar presente na escola e que, antes mesmo de haver esse enunciado da diversidade ela já existe. “A linguagem, o enunciado, é uma forma de reconstituir uma reparação a todas as violências e invisibilidades”, disse.

 

Lucas também falou sobre o papel da arte e da cultura como uma forma de transver os mundos e o perigo do desamparo cultural, em que não há respaldo de produtos culturais como um todo que abordem a pluralidade do ser humano e o perigo de se universalizar qualquer história.

O desamparo cultural é essa ausência sobre nós. O que de uma certa forma não exclui a nossa existência, mas traz sérios problemas para toda uma comunidade que cresce se alimentando um modelo único de família, de gênero, de sexualidade, e várias outras opressões que não se separam pela interseccionalidade. (Lucas Dantas, pesquisadore de gênero, sexualidade e diversidade)

Além disso, Lucas lembrou o quanto esse desamparo cultural impossibilita a criação de diálogo com a sociedade e empatia. “Quando você cresce numa posição marginalizada, o silêncio é um grande convite colonial”, reforçou. E é aí que entra a literatura, como uma grande possibilidade de mostrar que as pessoas não são homogêneas e como forma de reconhecer a existência desses sujeitos. Ainda, Lucas trouxe algumas leituras possíveis no que se refere às questões de gênero, como a autobiografia de João Nery, Viagem solitária – memórias de um transexual 30 anos depois, Eu sou uma lésbica, de Cassandra Rios, e Meu corpo, minha prisão, de Loris Adreon.

A literatura pode ser um meio de transgressão a partir do momento que ela desloca posições marginalizadas e imagens estereotipadas e solidificadas com que a sociedade aprendeu a tratar diversas identidades e conceber conhecimento sobre ela. (Lucas Dantas, pesquisadore de gênero, sexualidade e diversidade)

Literatura engajada

Já Iracema Nascimento, doutora em Educação pela USP, começou sua reflexão trazendo recortes de notícias de casos de racismo sofridos por estudantes nas escolas e dados sobre discriminação com pessoas LGBTQIA+. Entre esses dados, a pesquisadora trouxe o número assustador de que 73% já foram agredidos verbalmente e 68% sofreram essas agressões dentro da escola. Ainda, outra pesquisa abordada e realizada pelo Grupo Dignidade, mostrou que entre os maiores violentadores estão profissionais da instituição escolar, sendo que 56% deles são os próprios professores. Partindo desse recorte, Iracema questiona: “E o que a literatura tem a ver com tudo isso? Tudo”.

O valor simbólico da literatura, segundo ela, é o grande diferencial, uma vez que é por meio dele que se constrói novas possibilidade e se torna possível entender quem são esses todes e quem tem o direito de existir integralmente. Ainda, segundo a professora, é necessário que esse enfrentamento deve estar presente no projeto político-pedagógico da escola, como forma de colocar em prática essa luta pro reconhecimento.

Toda literatura sempre foi engajada e política. (Iracema Nascimento, doutora em Educação)

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