Por que a escrita é a grande revolução da humanidade?

24/07/2023

Baleias que cantam no silêncio da água, abelhas que dançam quando encontram pólen, cachorros com seus rabos abanando, gatos de orelhas em pé. Quem disse que a comunicação é uma necessidade apenas humana? Bichos, plantas, flores, fungos: tudo o que é vivo se comunica. Das algas que mudam de cor na praia às laranjas que criaram bolor na fruteira, há um texto a ser lido em todo ser vivo. Mas é entre os humanos que uma forma singular de comunicação modificou a nossa forma de pensar e nos ajudou a chegar onde chegamos: a escrita, uma revolução em nossas vidas. 

Com leveza e dinamismo, os leitores podem conhecer a história do livro e da comunicação

Quem nos conta essa história é a dupla formada por Ruth Rocha, escritora veterana da literatura infantojuvenil brasileira, e o artista plástico e professor Otávio Roth (1952-1993), em dois lançamentos que nascem de um mesmo desejo, o de compartilhar a origem da palavra, tanto na comunicação quanto na escrita. O livro da história do livro e O livro da história da comunicação foram publicados originalmente nos anos 1990, em outra formatação, na coleção O Homem e a Comunicação. Eles nos ajudam a entender o impacto que a escrita teve em nossa história.

 

A importância da comunicação em dois livros que marcaram história

Marco do livro informativo no Brasil, as obras de Ruth e Otávio acabam de voltar às livrarias em nova edição pela Companhia das Letrinhas, que reuniu-os em apenas dois volumes. Com um moderno projeto gráfico do artista visual Raul Loureiro, de cores explosivas, padrões geométricos e mescla de técnicas diversas de ilustração, como colagens, iconografia e imagens de livros de História e ciência, o leitor é conduzido em um passeio pelo começo da palavra no mundo.

Em 1992, a coleção O Homem e a Comunicação foi agraciada com o Prêmio Jabuti como melhor obra em coleção e melhor produção editorial. No ano seguinte, recebeu o Prêmio Monteiro Lobato para literatura infantil. Os oito volumes originais tornaram-se referência para educadores interessados em apresentar a evolução da humanidade a partir de uma bem-humorada e abrangente história da comunicação, tendo como fio condutor o desenvolvimento de suportes e ferramentas — como o papel, o pincel e o livro — e linguagens — como gestos e símbolos, as línguas e a escrita.

A história da humanidade só pôde ser contada a partir da invenção da escrita (Ruth Rocha e Otávio Roth, em O livro da História do livro)

São obras para nutrir aquela fase comum à infância, quando as crianças estreiam suas perguntas fundantes. "Por que a palavra existe?", "Quando a poesia começou?". E também para o adulto que se diverte com a História das histórias. Ou, finalmente, para salvar quem não faz a menor ideia de como responder “como o papel foi inventado?”. Será que estamos usando bem essa ferramenta revolucionária que é a escrita?

 

Capa de O livro da história da comunicação, de Ruth Rocha e Otávio Roth

O livro da história da comunicação (Companhia das Letrinhas) conta a história de gestos, símbolos, línguas, letras e escrita

LEIA MAIS: Sofia Mariuti e Yara Kono poetizam a filosofia das perguntas das crianças 

Inspirados nesses dois livros, vamos falar desse tema que interessa a todos: a revolução da escrita. Conversamos com o especialista em evolução da escrita Paulo Chagas de Souza, professor do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP), e trouxemos alguns conceitos teóricos para discutir o assunto. Você pode conferir a entrevista de Paulo na íntegra no final deste texto.

Para avaliarmos a importância da escrita, basta tentarmos imaginar como seria a vida se nada do que temos por escrito hoje em dia existisse. (Paulo Chagas, professor)

O surgimento da escrita

A escrita como a conhecemos hoje, ou seja, o registro de enunciados linguísticos em suporte material, surgiu há pelo menos cinco mil anos e tem sua forma mais conhecida no alfabeto, esse método sagaz de reunir consoantes e vogais que varia entre línguas e culturas. 

Hoje, o livro de cabeceira, a apostila da escola, o post nas redes sociais, a mensagem para o amigo e até as tecnologias recentes de comunicação, como as inteligências artificiais, cada um a seu modo precisa da escrita verbal, amparada por mídias diversas, para existir. 

A escrita ampliou enormemente nosso potencial de comunicação. Deixamos de poder falar apenas com quem estivesse na nossa presença e passamos a poder nos comunicar com lugares e tempos por vezes muito distantes. (Paulo Chagas, professor)

No entanto, nem sempre foi assim. Por muitos milênios, a principal forma de transmissão de conhecimento foi pela linguagem oral, mas também por desenhos, gestos e expressões corporais. Contar histórias, por exemplo, é algo que o Homo sapiens faz já há 50 mil anos, muito antes de registrá-las de maneira codificada, como o filósofo Yuval Noah Harari conta em  Implacáveis: como nós conquistamos o mundo (Companhia das Letrinhas) - e as histórias foram um grande salto para o desenvolvimento da civilização. A transformação da comunicação em algo mais concreto e duradouro começou pelos desenhos, ou seja, com a pictografia, como vemos nas pinturas rupestres. Porém, não havia um sistema organizado para interpretação, e o signficado variava de pessoa para pessoa.

Até que entre os sumérios, povo que habitava a antiga Mesopotâmia (atual Iraque), surgiu uma forma de escrita na argila e no calcário, chamada de cuneiforme (termo que vem de "cunha"), sendo a primeira bem codificada - os registros mais antigos, ainda hoje preservados, datam de 3.200 a.C.. A intenção, ao que se sabe, era registrar informações sobre a produção agrícola e a criação de animais. Mais tarde, os egípcios inventaram os hieróglifos e os maias o seu complexo sistema de glifos. Nascia assim a escrita, diferente em cada parte do mundo, com nomes e aplicações diversas, mas de certa forma sempre igual em seus objetivos. 

O alfabeto como o conhecemos teve início há três mil anos com os fenícios (por volta de 1050 a.C.), com 22 letras. Ele foi herdado e modificado pelos gregos por volta de 400 a. C. - eles introduziram, por exemplo, as vogais - e, depois, pelos romanos. Sua origem está na tentativa de interpretar as palavras não por desenhos do objeto em si, mas pelos sons, numa representação fonética e não pictórica ou ideogramática.

Capa de O livro da história do livro, de Ruth Rocha e Otávio Roth

O livro da história do livro (Companhia das Letrinhas) explica a história das tintas, do lápis, do papel e, finalmente, do livro

 

A revolução da escrita para o pensamento humano

Quando se fala que o surgimento da escrita não foi apenas a aquisição de mais um modo de expressão, mas sim que a escrita foi uma revolução, é porque ela mudou toda uma forma de organizar os pensamentos. Na cultura oral, na qual as palavras são reduzidas a sons, a memória é que determina o conhecimento, portanto, só sabemos o que podemos recordar, como pontuou o filósofo e historiador cultural Walter Ong em Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra (Papirus, 1998).

Dessa forma, o pensamento foi moldado a partir da repetição oral, dos padrões rítmicos ou de alguma forma mnemônica, e de um ritmo mais lento na evolução dos acontecimentos. E, segundo Ong, tinha as seguintes características: era mais aditivo do que subordinativo, mais agregativo do que analítico, circular em vez de linear, redundante, menos abstrato, mais conservador e próximo ao cotidiano.

Quando o suporte sai do corpo da pessoa - que comunica por voz ou gestos, linguagem oral e corporal - e vai para a argila, a cerâmica, a pedra, mais tarde o pergaminho e o papel - e, portanto, suportes que criam a possibilidade de a pessoa retornar a leitura para relembrar ou refletir sobre um acontecimento - a própria elaboração do pensamento e a transmissão do conhecimento são afetadas. Para além disso, sendo a leitura em suporte escrito uma atividade individualizada, solitária na maioria das vezes, ela modifica a relação de comunicação que se tinha antes na cultura oral, na qual há unidade entre quem fala e quem ouve. O resultado disso teria sido tão impactante que Ong classifica a escrita como uma tecnologia ainda mais extrema que a impressão e os computadores, por exemplo.

“A escrita, a impressão e os computadores são todos meios de tecnologizar a palavra. (...) A escrita é, de certo modo, a mais drástica das três tecnologias. Ela iniciou o que a impressão e os computadores apenas continuam, a redução do som dinâmico a um espaço mudo, o afastamento da palavra em relação ao presente vivo, único lugar em que as palavras faladas podem existir. Ao contrário da linguagem natural, oral, a escrita é inteiramente artificial”, escreveu ele em Oralidade e cultura escrita: A tecnologização da palavra. 

***

Entrevista com Paulo Chagas de Souza: escrita, redes sociais, WhatsApp e IA

Blog da Letrinhas: Quais foram as principais alterações que o surgimento da escrita ocasionou para a humanidade? E por que você as considera como mais importantes?

Paulo Chagas de Souza: Pelo que se sabe, a escrita surgiu na Suméria, localizada no sul do Iraque atual, com a finalidade de registrar informações sobre produtos agrícolas e sobre criação de animais. Coisas como: quantos sacos de trigo alguém tinha? Quantas cabeças de gado?

Então, um dos primeiros benefícios da escrita foi possibilitar que administrássemos quantidades maiores. Além desses primeiros usos, passou a ser possível registrar quantas pessoas viviam numa cidade, por exemplo. Indo além desse momento inicial, uma das principais alterações foi possibilitar que nos comunicássemos com alguém à distância, inclusive distâncias muito grandes, com a transmissão de uma mensagem escrita, uma carta. A escrita possibilitou também que pudéssemos nos comunicar com pessoas de outras épocas. O que nós escrevemos hoje pode, quem sabe, vir a ser lido por alguém daqui a um ou dois séculos, ou até em períodos muito mais distantes.  

Temos o exemplo contrário. Livros como a Bíblia, ou as obras filosóficas da Grécia antiga, escritas há milhares de anos, ainda são conhecidas por nós. É como se pudéssemos conversar com os autores dessas obras ainda hoje: conhecer suas ideias, pensar a respeito, e assim elas passarem a fazer parte da nossa vida. 

Um outro grande benefício é que, à medida que escrevemos, examinamos o que foi escrito até aquele ponto, e podemos reformular o que estávamos escrevendo. Então, um texto escrito tem uma probabilidade maior de parecer um texto limpo, mais claro, se comparado à nossa fala, que apresenta hesitações e interrupções.

O fato de irmos refletindo a respeito do que escrevemos nos permitiu aumentar a complexidade do que expressamos.
(Paulo Chagas de Souza, professor)

 

Hoje, escrevemos o tempo todo: redes sociais, WhatsApp, e-mail... Eesse volume é proporcional à nossa capacidade de compreensão?

Paulo Chagas de Souza: Nas redes sociais, no WhatsApp e em e-mails, acabamos trocando mensagens normalmente curtas, muitas vezes sem nos preocuparmos com coisas como pontuação, e também fazendo uso de formas abreviadas, como “blz”, “hj” e assim por diante. É importante observarmos que a função da escrita num dado momento, ou seja, o objetivo de escrever pode alterar a forma como escrevemos. Se o objetivo é enviar rápido uma mensagem, podemos dispensar o uso de pontos, vírgulas e abreviar várias palavras. Contanto que o que escrevemos possa ser entendido.

Me parece importante que esse não seja o único modo de escrever que nós usemos no dia a dia. Outros tipos de situações exigem que nós escrevamos de outras formas. Sendo assim, é importante conhecer bem cada forma de escrever. Uma mensagem rápida pode ser escrita de uma forma simplificada, um texto oficial, não. É importante que a frequência das mensagens rápidas não limite nossa capacidade de escrever a esse tipo de mensagens.

O projeto gráfico das duas obras é assinada pelo ilustrador Raul Loureiro

Com o tempo e a proliferação de formas de escrita cada vez mais virtuais, o ser humano pode perder habilidades evolutivas que a escrita convencional trouxe? Se sim, quais?

Paulo Chagas de Souza: Sim. A escrita foi criada sendo uma atividade que durante milênios era executada com movimentos manuais. Nas últimas décadas, isso tem sido substituído por teclas que pressionamos no celular ou no computador. Quase tudo tem vantagens e desvantagens.

Escrever teclando é bastante rápido, e possibilita correções em que se apaga algo que estava errado. No entanto, deixar de escrever à mão, com lápis, caneta ou pincel, ou escrever com muito pouca frequência, nos faz ir perdendo uma capacidade motora muito refinada, a de executar por escrito cada letra, cada palavra.  (Paulo Chagas, professor)

Um outro prejuízo é que ações como copiar à mão, por exemplo, auxiliam no processo de memorização, pois estamos memorizando de certa forma ao mesmo tempo com a mente e com o corpo. Aprender um alfabeto estrangeiro, por exemplo, é muito mais rápido, se escrevermos as letras à mão, do que se apenas digitarmos num computador.

 

Como você vê as inteligências artificiais na linha do tempo da evolução da escrita?

Paulo Chagas de Souza: É célebre a história de que Santos Dumont se entristeceu enormemente ao ver sua invenção, o avião, que nos traz tantos benefícios, sendo usado como arma de guerra. 

Na minha forma de ver, a inteligência artificial pode ser prejudicial se nos levar a pensar menos, indagar menos, a ser menos curiosos. Se supusermos que ela terá todas as respostas necessárias e executará todas as tarefas, nos tornaremos menos curiosos e, de certa forma, pessoas muito mais sem graça. (Paulo Chagas, professor)

Se, por outro lado, usarmos o que a inteligência artificial nos proporciona para ir mais além e instigar nossa curiosidade, ela pode ser muito benéfica. 

 

O que garante o contínuo interesse histórico e social pela escrita?

Paulo Chagas de Souza: A escrita, em suas diversas formas, sempre nos interessa, porque nos proporciona oportunidades muito variadas. Nos últimos anos cresceu muito a escrita rápida, por exemplo. Talvez as pessoas estejam escrevendo mais do que há algumas décadas atrás.

Um outro motivo é que a língua é nosso principal meio de comunicação. E para armazenamento e busca de informações ou de conversas registradas, ou mesmo de músicas, o meio mais eficiente até hoje em dia continua sendo a língua escrita. 

Se queremos ouvir uma música no celular, digitamos seu nome ou parte da letra. A escrita está presente por toda parte. Nos rótulos de alimentos que compramos, nas placas de trânsito que indicam o caminho para a cidade onde estamos indo, por toda parte enfim.

 

(Texto de Renata Penzani)

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