Nas dobras do cordel

21/08/2023

Por Januária Cristina Alves

Agosto é o mês do folclore e não há como falar do folclore brasileiro sem falar dos cordéis. É nas dobras dos cordéis que povoam o imaginário do brasileiro até hoje que encontramos muitas lendas e personagens do nosso folclore. Os cordéis não apenas ajudaram a divulgá-las, a contá-las e recontá-las, como as imortalizaram em suas páginas amareladas pelo sol e pelo tempo, numa alegoria ao eterno, como essas narrativas.

Quando selecionei as histórias para o livro Heróis e heroínas do cordel pensei que, em tempos tão ligeiros e superficiais como esses em que vivemos, seria importante guardar esses tesouros para as gerações futuras. Se as folhas dos cordéis não garantem mais a boa leitura, um livro como esse, com ilustrações incríveis como as do Salmo Dansa, publicado por uma editora como a Companhia das Letrinhas, que chega aos leitores brasileiros do Oiapoque ao Chuí, com certeza garantiria um quê de imortalidade a esse personagens que guardam em si um pouco do tudo que conseguimos nos tornar.

Ilustração de Salmo Dansa para o livro Heróis e heroínas do cordel, de Januária Cristina Alves

O livro é fruto da minha paixão pelos cordéis, gênero literário que conheci por meio de uma coleção antiga de cordéis do meu pai e que até hoje me encantam pela força das histórias que contam, pelo ritmo, musicalidade, e pelas inúmeras possibilidades que trazem para aproximar as crianças e jovens da boa literatura.

Acredito que a leitura dos cordéis, pura e simplesmente, já seja a porta de entrada para a formação leitora de crianças e jovens porque a temática que eles trazem fala da vida cotidiana, e em especial o cordel brasileiro, que tem o pendor de contar histórias que são nossas, que povoam o nosso imaginário e por isso, nos parecem sempre tão familiares. Ler cordéis é uma oportunidade preciosa de lapidar o repertório leitor desses meninos e meninas que crescem embalados pelos enredos dos laptops e celulares, que interagem com as histórias com seus mouses e consoles de videogames, mas que, apesar de tanto movimento, ainda continuam ansiando por uma boa aventura para descobrir como lidar com os desafios e armadilhas que a vida nos prega.

Tenho me debruçado longamente sobre o fenômeno da desinformação, das famigeradas fake news, que tanto prejuízo têm causado à sociedade. E tenho sempre lembrado que os nossos cordelistas eram os jornalistas daquele tempo, eram eles que, com suas rimas ricas em música e movimento, contavam à população o que acontecia para além daquela feira. Diferentemente dessa mazela que nos assola, os cordelistas contavam um conto e aumentavam um ponto, mas todo mundo sabia disso. E não era mentira o que narravam, era a realidade recontada e reinterpretada. A cada leitor, as infinitas possibilidades de leitura, que é, ao fim e ao cabo, a razão de ser dessa prática, que nos faz conhecer outros modos de ser e viver.

Capa do livro Heróis e heroínas do cordel, de Januária Cristina Alves, com histórias do folclore brasileiro

Penso que tenhamos que retornar às raízes do cordel brasileiro para compreender melhor como ler o que nos acontece, para apreendermos os diferentes sentidos de tanta notícia, e assim, conseguirmos chegar a um consenso mínimo sobre a realidade. A junção perfeita entre o real e o imaginário presente nos cordéis serve para nos assegurar que a fantasia não é a negação da realidade, mas tão somente a ampliação da mesma. Guimarães Rosa dizia: “O mundo é mágico” e é por meio da literatura que descobrimos tal fato. Para sairmos dos esquadros que as telas digitais nos oferecem – ou das bolhas, para quem prefere outro formato – é preciso fazer de conta. A conta do contador, a conta que conta, que interessa a quem quer entender melhor as curvas do mundo. Eu acredito que as dobras do cordel podem ajudar nisso. E muito!

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Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 60 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira. É pesquisadora do folclore brasileiro e da cultura popular e autora do “Abecedário de personagens do Folclore Brasileiro”(Edições SESC/FTD Educação). Também realiza palestras e oficinas para educadores, crianças e jovens, sobre Educação Literária, Educação Midiática e Storytelling.  

 

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