Arte, informação e apreço pelo texto na multiplicidade de Silvana Salerno

05/12/2023

Silvana Salerno é uma dessas pessoas múltiplas. Tem formação em jornalismo e dança, mas também desenha. Transita com intimidade por obras e autores clássicos - de Homero a Balzac - e também se aventura nos rincões do Brasil e da América Latina, colecionando personagens e contos populares. Traz em suas obras a leveza da arte e a profundidade da informação, costurados com esmero em textos fluidos e consistentes. Mas é acima de tudo uma autora que consegue transpor em sua obra um pouco de todos os elementos que fazem parte dela mesma e que refletem sua relação tão estreita com o texto. Uma ligação de longa data.

Ilustração de Viagem ao Brasil em 52 histórias, de Silvana Salerno

Ilustração de Viagem ao Brasil em 52 histórias, de Silvana Salerno com ilustrações de Cárcamo 

 

Silvana já foi revisora, preparadora de textos, tradutora, entrevistadora, repórter e redatora antes de se tornar escritora. Entre suas obras mais emblemáticas  Viagem ao Brasil em 52 histórias (Companhia das Letrinhas, 2006), Qual é o seu norte? (Companhia das Letrinhas, 2012), São Paulo - A aldeia que virou metrópole (Escarlate, 2021) e o mais recente: Viagem pelas histórias da América Latina (Companhia das Letrinhas, 2022). Em comum, todas apresentam histórias e lugares, colocando personagens e contos locais em foco, reunindo histórias conhecidas a preciosas descobertas desveladas. Todos resultados de um trabalho consistente de pesquisa e apuração da informação, mas que não se limita a ela.

Quando perguntada pelo Blog da Letrinhas sobre o processo de elaboração de seus livros informativos, a autora foi precisa na correção: “ Não escrevo livros puramente informativos. Escrevo literatura com almanaques ou apêndices que contextualizam a obra”. Ela citou São Paulo: A aldeia que virou metrópole, como o mais informativo de seus trabalhos. No livro, personagens foram criados para narrar a história da maior cidade do Brasil, em relatos envolventes.

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Embora não considere seus livros puramente informativos, mergulhar na pesquisa, com apurações longas e consistentes faz parte do fazer literário da autora. Foram três anos até Viagem pelo Brasil em 52 histórias ficar pronto.  “Além das viagens, mergulhei nas bibliotecas, selecionei 200 histórias e reescrevi 100, para ficar com 52. Depois da pesquisa, a criação do texto, sua reelaboração e seu apuro tomam muito mais tempo que a pesquisa”, conta Silvana. O livro foi publicado em 2006 e recebeu o prêmio Figueiredo Pimentel da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Desde então vendeu 150 mil exemplares, e a nova edição está atualizada com dados e mapas recentes.

O zelo pelo texto, em um refinamento minuncioso, também faz parte do processo da autora. “Faço inúmeras leituras. Leio o texto em voz alta na minha cabeça para sentir se o ritmo e a musicalidade estão de acordo”. Em entrevista ao Blog da Letrinhas, Silvana compartilhou seus múltiplos interesses e compartilhou seus processos criativos. 

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Ilustração de Viagem pelo Brasil, de Silvana Salerno

Ilustração de Viagem ao Brasil em 52 histórias, de Silvana Salerno com ilustrações de Cárcamo e Sirio Cançado

Confira a entrevista completa com Silvana Salerno:

Blog da Letrinhas - Como os caminhos levaram você à literatura infantil?

Silvana Salerno - Desde os 18 anos trabalho com o livro. Fui revisora, preparadora de textos, tradutora, entrevistadora, repórter, redatora. Trabalhei em editoras e jornais. Em 1992 montei com meu marido, o escritor e poeta Fernando Nuno, o Estúdio Sabiá, de serviços editoriais. Editamos centenas e centenas de livros para as principais editoras brasileiras. Quando surgiu o PNBE (Programa Nacional da Biblioteca Escolar) fiz a curadoria para algumas editoras. A partir daí, recebi convites para criar os meus próprios livros.

Você tem uma formação bastante diversificada, que mistura linguagem, arte, história e esse apreço pela informação, que vem do jornalismo. Como você enxerga as contribuições dessas diferentes áreas na sua produção literária?

A combinação das artes sempre me fascinou. Tenho formação em dança, literatura e desenho. Criei um curso de Escrita Criativa baseado na relação entre as artes. Quando escrevo, visualizo a cena, imagino o ambiente, crio as personagens com suas personalidades, suas cores, escolhas, vivências. Tudo bem plástico. Sinto os cheiros, os sentimentos, mergulho no texto de forma integral. Balzac e Aluísio Azevedo esculpiam em argila suas personagens. Eu esboço desenhos e faço listas com as características de cada um. 

Nas apresentações de seus livros, você cita muitos autores  – de Darcy Ribeiro a Mário de Andrade. Quais são as suas principais referências enquanto autora? 

Darcy Ribeiro e Mário de Andrade são autores que admiro muito. Minha lista de autores é enorme! Sou fã de Lygia Fagundes Telles e Maria Valéria Rezende! Gosto de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Milton Hatoum, Machado de Assis, Hugo Mãe, Conceição Evaristo, Afonso Cruz, Ngugi Wa Thiongo, Chimamanda Adichie, Mia Couto, Vargas Llosa, García Márquez, entre muitos outros. Adoro os clássicos: Homero, Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Balzac... Não tenho uma referência única como inspiração, minha fonte é múltipla.

E quando você era criança, o que lia? Quais eram suas histórias e autores mais queridos?

Na infância eu me apaixonei por Monteiro Lobato. Quando descobri o Sítio do Picapau-Amarelo, encontrei um refúgio para me abrigar quando a coisa esquentava pro meu lado. No fim da infância li, apaixonadamente, a obra completa de Alexandre Dumas, e na adolescência curti Hermann Hesse, James Baldwin, Erico Verissimo, Drummond, Cecília Meirelles, Vinicius de Moraes, Cortázar, Borges etc.

Como você organiza a parte de pesquisa, apuração, revisão dos seus livros? Conta com alguma ajuda? 

Eu faço a pesquisa sozinha. Fernando Nuno, meu parceiro em tudo, me ajuda um bocado. Lemos os textos um do outro para opinar, criticar, elogiar. Depois da pesquisa, a criação do texto, sua reelaboração e seu apuro tomam muito mais tempo que a pesquisa. Faço inúmeras leituras. Leio o texto em voz alta na minha cabeça para sentir o ritmo e a musicalidade.

Nos seus livros que combinam literatura e informação, como tornar a informação acessível e interessante? Quais são as preocupações na hora da escrita?

Quando escrevo, sou de novo aquela menininha que adorava ler, inventar, imaginar. As partes do texto que eu gostaria de conhecer melhor são as que eu seleciono para os rodabraços (notas nas laterais da página) e as contextualizações. Eu me coloco inteira na escrita e na leitura do que escrevo. Os meus livros podem ser lidos por qualquer idade; não são facilitados.  

Nesses processos de apuração de informações para a escrita dos livros, quais foram as suas descobertas mais bacanas falando de América Latina, de Brasil e de Amazônia?

Logo depois que me formei, viajamos pela América do Sul em trens de carga e de passageiros, com amigos da faculdade. Conhecemos muitas pessoas, fomos hospedados em repúblicas de estudantes que conhecemos na hora e também em casas de estudantes que moravam com a família. Aprendemos e trocamos muito! Depois, fomos para a América Central. No México tínhamos uma amiga fazendo pós-graduação. Lá, entrevistei Juan Rulfo, o autor de Pedro Páramo. Marquei encontro também com Octavio Paz, na gráfica do jornal em que ele trabalhava: um dia, ele não conseguiu chegar, o outro dia, fui eu que não consegui. O trânsito era terrível: uma única via ligava a cidade de norte a sul. Com a vivência e o amor pela América Latina, escrevi Viagem pelas histórias da América Latina. Como está na epígrafe do livro: Soy loca por ti, América! 

Fernando e eu rodamos muito pelo Brasil e pela Amazônia. Buscando conhecer a cultura local nas festas típicas, nos museus e principalmente com as pessoas.

Um de nossos grandes amigos é amapaense, vive em Belém e é guia; outro amigo era professor de literatura em Macapá e foi secretário da Educação do estado. Todas as pessoas que conheço acrescentam muito em meu trabalho. Quando estava finalizando a produção de Qual é o seu Norte?, viajamos para o Amazonas, o  Pará e o Amapá para tirar as fotos que faltavam. 

A preocupação com o meio ambiente é bem marcante nas suas obras. Você tem observado mudanças nesse debate? Acha que as crianças e famílias estão mais envolvidas com esse tema? 

Sempre fui ligada na natureza, gosto muito de plantas e elas retribuem o meu amor. Tenho observado mudança, sim na preocupação com o meio ambiente. Vejo que não só professores e alunos estão envolvidos no tema, as famílias, também. Os alunos levam para casa o aprendizado da escola, e aos poucos vão conscientizando os pais. É importante fortalecer essa corrente. Acabo de voltar de uma Festa Literária em uma grande escola, com a presença de pais e familiares. Como sempre, abordei a questão climática e ambiental, e o tema foi bem recebido pelos ouvintes adultos e crianças. A propósito, o Fernando Nuno tem um belo livro sobre o assunto, que tem repercutido muito: O quintal da minha casa, publicado pela Companhia das Letrinhas e pelas Éditions Milan, na França.

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Ilustração de Bruna Assis Brazil para o livro São Paulo, aldeia que virou metrópole de Silvana Salerno

Ilustração de Bruna Assis Brazil para o livro São Paulo, aldeia que virou metrópole de Silvana Salerno

 

Você parece ter uma relação especial com o norte do país e, em especial, com a Amazônia. Ao mesmo tempo, é uma apaixonada por São Paulo - como você vê esse contraste? Qual é o melhor e o pior dos dois mundos?

Aos 8 anos, quando estava no segundo ano, ganhei como prêmio um livro chamado Região Norte. Ele mostrava o Amazonas e seus afluentes, os igarapés, a fauna e a flora, os costumes de origem indígena, os povos nativos e os ribeirinhos. Fiquei completamente apaixonada! Desde então, sonhava conhecer a Amazônia, e aos 20 anos concretizei esse sonho. A partir daí, voltamos diversas vezes. O livro Qual é o seu Norte?, com histórias da Amazônia, é minha declaração de amor a essa região querida. 

São Paulo e Amazônia, contrastes e semelhanças. São Paulo, hoje de concreto, era coberta pela mata Atlântica, cortada por três rios caudalosos. Desde a fundação da cidade, em 1554, quando chovia muito, os rios transbordavam. Conhecer a cidade e o país em que vivemos ajuda a compor a memória, e a memória nos dá consciência e autoestima.

Que histórias você ainda tem vontade de publicar?

Terminamos uma atualização de dados nos mapas e textos de Viagem pelo Brasil em 52 histórias. Este livro, assim como Qual é o seu Norte?, Viagem pelas histórias da América Latina e São Paulo: A aldeia que virou metrópole, me dá muita alegria. São trabalhados e recriados nas escolas com dedicação e amor. Algumas escolas públicas de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Amazonas já os adotaram do primeiro ano do Fundamental ao terceiro do Ensino Médio. Um grande orgulho eu tive ao receber elogios de professores de Manaus e de Belém ao falar de Qual é o seu Norte? Uma professora paraense escreveu que ele é o “único livro realmente bom escrito por autora que não é da região”. Ele recebeu o Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2013 e foi incluído na Seleção de Literatura de Temática Indígena para Crianças e Jovens por Maria Silvia Pires Oberg, em 2022.

Na (editora) Seguinte, Fernando Nuno e eu temos a Coleção Germinal, de clássicos adaptados para o público jovem: Germinal, A rainha Margot, Ilusões perdidas, Guerra e paz, O adolescente e Os miseráveis. Vários leitores adultos postaram no instagram que nunca tinham lido um clássico, e com os livros da Coleção Germinal romperam essa barreira. Traduzimos os textos e selecionando o que o clássico tem de melhor, que são a reflexão, a ironia, o humor, o mistério, procurando manter o estilo do autor.

Escrevo uma série de aventuras ligadas às mitologias do mundo: Ana e Artur descobrem a Grécia e Ana e Artur na fascinante Índia rendem papos incríveis com os leitores. Este ano, foi publicada a Odisseia em quadrinhos, com roteiro meu e ilustrações de Jefferson Costa. Novas histórias estão a caminho para a Companhia das Letrinhas... mas ainda... são um mistério.

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