Beatrice Alemagna: "a filosofia também está escondida em histórias engraçadas"

15/02/2024

 


O dia em que fazemos coisas pela primeira vez é sempre um grande dia. Nos livros da ilustradora e escritora italiana Beatrice Alemagna, 51, a possibilidade de todos os dias serem esse tal “grande dia” – mesmo que os anos inevitavelmente nos transformem em adultos –, é oferecida como um presente: o de vivenciar a infância não como um período cronológico, mas um modo de se relacionar com a vida. 

O Blog Letrinhas entrevistou a artista, que vive hoje em Paris com as duas filhas, para falar sobre a estreia dela na Companhia das Letrinhas com o livro Nem sonhando! - é o quinto dela no Brasil -  e relembrar sua jornada de mais de vinte anos dedicados aos livros ilustrados (você confere a entrevista completa mais adiante). Beatrice é internacionalmente conhecida como uma das mais premiadas artistas da literatura ilustrada contemporânea, e recebeu o Hans Christian Andersen em 2022.

Na história, acompanhamos o primeiro dia de aula de uma morcega chamada Catarina. Diante da insistência dos pais em levá-la, Catarina é categórica: "Nem sonhando!", ela responde – e a frase vai parar no título da obra. A resistência é tanta que os berros da morceguinha fazem seus pais encolherem... até ficarem do tamanho de amendoins. E são eles, assim pequeninos, que acabam sendo carregados para a escola por Catarina - que perto deles se torna grande. Assim, todos os personagens podem experimentar o crescimento a partir da perspectiva da criança e dos seus próprios marcos de desenvolvimento, uma metáfora sensível da autora, que inverte papéis e constrói outras referências a partir de situações nunca vivenciadas.

Nem sonhando! ilustra bem uma das premissas de Beatrice:  "uma boa história para crianças é feita de irreverências e de inversões de situações", afirma a autora. A vivência da alteridade, a possibilidade de trocar de papéis entre crianças e adultos, e assim experimentar como é  "ser outro” é algo também recorrente nas narrativas da autora.

Ilustração de Nem sonhando!, de Beatrice Alemagna

Os pais de Catarina querem que ela vá para a escola. Mas ela não vai, não. Nem sonhando!

Uma próspera e reconhecida trajetória literária

O primeiro livro de Beatrice  chegou ao brasil em 2009, quando foi editado por aqui Meu amor (Escala Educacional, 2009), seguida dos conhecidos O que é uma criança (WMF Martins Fontes, 2010), Pequena coisa gigantesca (Pulo do Gato, 2014) e Os cinco esquisitos (WMF Martins Fontes, 2014). Sua produção já soma mais de 40 livros, entre histórias ilustradas e escritas por ela, e contos de outros autores que ela é convidada a ilustrar, como Gianni Rodari – Un e sept (2001), publicado na França, Coreia do Sul, nos Estados Unidos e na Espanha, e A sbagliare le storie (2020), editado na Itália, na Coreia do Sul e nos Estados Unidos. A autora ilustrou também histórias de Astrid Lindgren, Antoine de Saint-Exupéry e Nancy Lim.

Desde 2003, Beatrice tem tido seu trabalho exposto e homenageado em mostras pela Europa – especialmente na França e na Itália – e foi contemplada com alguns dos mais relevantes prêmios do segmento infantil, quatro vezes nomeada para o ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award) e cinco vezes selecionada para compor o catálogo White Ravens, da International Youth Library, na Alemanha. Em 2022, a artista recebeu o The Extraordinary Award for an Extraordinary Artist, na Feira do Livro de Bolonha, e em 2023 venceu o La Grande Ourse 2023, oferecido pelo Salon du Livre de Montreuil (França). Suas obras ganharam traduções em diversos países, como Japão, China, Espanha, Portugal, Polônia, Coreia do Sul, Suíça, dentre outros.

Beatrice tornou-se conhecida por histórias que articulam simplicidade narrativa com profundidade temática, como A pequena coisa gigantesca, que discute o que é a felicidade, e O que é uma criança?, em que a concepção de infância é perspectivada do ponto de vista cultural.

A tônica bem-humorada é outra característica que perpassa toda a obra da artista. Em Os cinco esquisitos, cinco criaturas de formas irreconhecíveis – Furado, Dobrado, Mole, Ponta-cabeça e Errado – são apresentadas cada qual em sua imperfeição. Desengonçados e desajustados, eles não conseguem fazer nada direito (será?). Ao acolher a estranheza dos personagens e suas identidades desviantes, a história instiga os leitores a pensar quem define o que é normalidade, deixando para o leitor uma fábula sobre valorização das diferenças. 


 Beatrice Alemagna em seu ateliê

Inspirada desde cedo por grandes clássicos da literatura, como Gianni Rodari e Astrid Lindgren, Beatrice Alemagna é uma das mais admiradas artistas contemporâneas da literatura ilustrada europeia

Uma infância marcada pela intimidade com a arte e a influência dos clássicos 


Autora de dezenas de livros que já nascem potencialmente clássicos, Beatrice nasceu em 1973, passou a infância e parte da juventude em Bolonha, cidade italiana conhecida por ser um polo cultural que atrai pessoas de todo mundo e é referenciada por abrigar o evento de literatura infantil mais famoso do mundo. 

Desde que decidiu se tornar escritora e ilustradora de livros infantis, aos 8 anos, Beatrice personifica a ideia de nos deixarmos levar pela criança que fomos, como dizia Saramago. Para ela, a literatura facilita e viabiliza essa conexão sempre possível. 

 


“Ler um livro cria um vínculo único”

Beatrice Alemagna 

 

E não são só as crianças que estão incluídas nessa possibilidade, mas todas as pessoas, em qualquer idade. Afinal, trata-se de apostar em uma inversão valiosa na percepção cultural dos leitores: enxergar a criança como um ser que já é um indivíduo, e o adulto como um sujeito em constante formação. Misturar esses dois caminhos e fluir entre eles é um fator determinante para ampliar repertórios, e um dos elementos que separa um mero “era uma vez” de uma história verdadeiramente atemporal.

Beatrice é fã confessa de grandes personagens da literatura europeia – como a heroína emancipada Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren, que abriu caminhos para a representação da criança independente na literatura infantil. E, especialmente, a italiana – como o sonhador Marcovaldo, personagem-alegoria de Ítalo Calvino, que passa os dias prestando atenção em buracos de cupim, fungos na calçada e pequenas folhas. 

Não por acaso, os personagens de Beatrice Alemagna também passam um bom tempo concentrados em detalhes invisíveis. Como se fossem eternos Marcovaldos mirins, as crianças e os bichos de seus livros vivem fazendo coisas inesperadas, existindo além de padrões estabelecidos, e vivendo suas vidas em estado de infância. Pode ser um porco com cabeça de cachorro, uma criatura esquisita que vive em um bando mais esquisito ainda, ou uma morcega psicanalítica que esconde os pais debaixo da asa: a chance de os leitores saírem com algo novo de suas histórias é enorme. Como uma criança curiosa que enfia as mãos em um buraco desconhecido e descobre nele um segredo da existência.

De Bolonha, onde vivenciou a infância e adolescência a Paris, para onde ela se mudou nos anos 1990, aos 26 anos, Beatrice teve o privilégio do acesso facilitado às mais diversas linguagens artísticas. Por dez anos, ela foi a artista responsável pelos pôsteres do Centre Pompidou, museu e centro cultural francês que abriga a mais importante coleção de arte moderna e contemporânea da Europa. Essa longa conexão com a arte, iniciada nos primeiros anos de vida, transparece em cada pincelada ou palavra.

 LEIA MAIS: Protagonismo  infantil: a vez e a voz das crianças

A intimidade com a arte e a influência dos clássicos 

Beatrice é fã confessa de grandes personagens da literatura europeia – como a heroína emancipada Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren, que abriu caminhos para a representação da criança independente na literatura infantil. E, especialmente, a italiana – como o sonhador Marcovaldo, personagem-alegoria de Ítalo Calvino, que passa os dias prestando atenção em buracos de cupim, fungos na calçada e pequenas folhas. 

Não por acaso, os personagens de Beatrice Alemagna também passam um bom tempo concentrados em detalhes invisíveis. Como se fossem eternos Marcovaldos mirins, as crianças e os bichos de seus livros vivem fazendo coisas inesperadas, existindo além de padrões estabelecidos, e vivendo suas vidas em estado de infância. Pode ser um porco com cabeça de cachorro, uma criatura esquisita que vive em um bando mais esquisito ainda, ou uma morcega psicanalítica que esconde os pais debaixo da asa: a chance de os leitores saírem com algo novo de suas histórias é enorme. Como uma criança curiosa que enfia as mãos em um buraco desconhecido e descobre nele um segredo da existência.

De Bolonha, onde vivenciou a infância e adolescência a Paris, para onde ela se mudou nos anos 1990, aos 26 anos, Beatrice teve o privilégio do acesso facilitado às mais diversas linguagens artísticas. Por dez anos, ela foi a artista responsável pelos pôsteres do Centre Pompidou, museu e centro cultural francês que abriga a mais importante coleção de arte moderna e contemporânea da Europa. Essa longa conexão com a arte, iniciada nos primeiros anos de vida, transparece em cada pincelada ou palavra.


 Beatrice Alemagna ainda criança

Beatrice Alemagna em uma imagem de sua infância. (Crédito: https://www.beatricealemagna.com)

LEIA MAIS: Afinal, o que é arte?

A maternidade e a evolução como autora

Em 2011, a autora tornou-se mãe, com o nascimento de sua primeira filha, Mimosa, em quem ela se inspirou para criar a protagonista do novo livro, Nem sonhando! . Na entrevista ao Blog Letrinhas, Beatrice conta que a maternidade foi uma experiência que não só deu origem a personagens e histórias mais centradas nos rituais e descobertas da infância, mas que iniciou uma nova era de criação, depois de uma década escrevendo para crianças que ela conhecia apenas em hipótese. 

Ilustração de Nem sonhando!, de Beatrice Alemagna
 Não importa que todo mundo está indo para a escola: Catarina, protagonista de Nem sonhando!, não quer ir. Ao declarar sua opinião, a morceguinha grita tão alto que seus pais encolhem.

A maturidade artística de Beatrice vem se lapidando pelo princípio de nunca perder de vista aquela menina bolonhesa curiosa e fascinada pela arte que via em todo lugar. Acima de tudo, suas narrativas são construídas por uma singela humanidade, com a habilidade de transformar situações cotidianas em janelas de crescimento. Janelas por entre as quais crianças e adultos têm vontade de espiar. 

Quando perguntamos à autora o que mais a instiga a começar um novo livro, ela menciona a importância de reconhecer que somos pessoas em um eterno aprendizado. “Diversidade, busca e aceitação da própria identidade, por mais estranha ou complicada que seja. Este é um dos temas que mais me motiva e fascina nos livros que escrevo”, diz Beatrice.

“A criança está à procura de si mesma”

Beatrice Alemagna

 

Capa de Nem sonhando!, de Beatrice Alemagna

Capa de Nem sonhando!, o mais recente lançamento de Beatrice Alemagna no Brasil

Na entrevista abaixo, realizada por e-mail, conversamos sobre o livro novo, as suas referências artísticas, a influência de seus dois países de formação na literatura infantil, a ideia de infância que sua obra apresenta e as particularidades que atravessam seu processo de criação.

Confira a entrevista na íntegra com Beatrice Alemagna


Blog das Letrinhas: Você nasceu na Itália, na cidade de um dos festivais de literatura mais prestigiados do mundo, a Feira do Livro Infantil e Juvenil de Bolonha (Bologna Children’s Book Fair). A cidade de Bolonha é também palco de uma cultura muito rica, com expressões artísticas por toda parte, das mais históricas às mais prosaicas e contemporâneas. Esse museu a céu aberto te influenciou a criar? 


Beatrice Alemagna: Sim, foi uma influência enorme! Esse é um dos motivos pelos quais, aos oito anos, eu decidi que faria livros infantis.


Blog das Letrinhas: Grandes artistas da literatura infantil são italianos, como Gianni Rodari e Carlo Collodi. Que importância eles tiveram na sua formação subjetiva?


Beatrice Alemagna: Eles moldaram profundamente minha imaginação. Eu cresci com Fábulas por telefone [Gianni Rodari] e As aventuras de Pinóquio [Carlo Collodi]. Mas, sobretudo, com a ideia de que uma boa história para crianças é feita de irreverências e de inversões de situações.


Blog das Letrinhas: A mudança para Paris trouxe novos cenários, também de uma cidade profundamente conectada à arte. De que modo a cultura francesa passou a fazer parte da sua criação?


Beatrice Alemagna: Mais do que a cultura francesa, são os hábitos e comportamentos que me marcaram aqui. Como por exemplo as pessoas ficam irritadas quando esquecemos, mesmo em uma situação extrema, de cumprimentá-las antes de qualquer outra coisa. A atenção à etiqueta social é muito importante aqui. Mas, para além disso, especificamente no mundo dos livros, absorvi a ideia de que um livro infantil pode realmente falar sobre tudo, e com ironia.


Blog das Letrinhas: Alguns de seus livros mais conhecidos, como A pequena coisa gigantesca e O que é uma criança?, são filosóficos. Em Nem sonhando, você traz reflexões de outra forma, com mais humor e animais protagonistas, algo muito presente nos seus últimos livros. Como você articula os pensamentos mais complexos para conversar com a criança? 


Beatrice Alemagna: Para mim, é tudo uma questão de desejo e de tempo. Gosto de variar tanto a minha linguagem quanto minhas técnicas. Em todo caso, procuro sempre deixar escapar algo que é importante para mim, porque a filosofia e o humanismo também estão escondidos em histórias leves ou engraçadas.


Blog das Letrinhas: A morcega Pascalina, protagonista de Nem sonhando!, aqui no Brasil ganhou o nome de Catarina. Como surgiu a ideia dessa personagem e o que sua história diz às crianças?


Beatrice Alemagna: Pascalina (Catarina) é inspirada diretamente na minha filha Mimosa, com o seu caráter duro e rebelde, mas também com a sua grande fragilidade e ternura. Suas histórias falam sobre questões da infância que estão no meu coração, como a independência e a consciência sobre a importância do amor na nossa vida.


Blog das Letrinhas: A maternidade mudou sua forma de enxergar a infância e os livros dirigidos para crianças? 


Beatrice Alemagna: Completamente. Faço livros desde 1998, e só me tornei mãe em 2011. Então, fiquei mais de dez anos publicando sem ser mãe. Antes, os livros que eu escrevia eram mais voltados para a menininha que dormia dentro de mim, com meus próprios problemas e reflexões. 


"Ter filhos mudou meus desejos, minhas inspirações e, acima de tudo, minhas ideias."

Beatrice Alemagna


Blog das Letrinhas: Como você acha que os adultos, independente de serem pais ou não, podem se comunicar de uma forma mais honesta e livre com as crianças? Qual o papel da literatura nisso? 


Beatrice Alemagna: Um papel enorme: ler um livro cria um vínculo único que também pode ajudar a superar momentos dolorosos e a unir-se.


Blog das Letrinhas: Nem sonhando! narra algumas situações vividas por uma família de morcegos. A paleta de cores, marcado por um rosa fluorescente e tons em neon, contrasta com o senso-comum sobre esses bichos, tornando a representação visual do livro ainda mais instigante. Pode falar sobre isso?


Beatrice Alemagna: Os morcegos raramente são representados em livros infantis. Eu procurava um personagem que fosse original e de certa forma perturbador, no bom sentido da palavra. Minha paleta com rosa neon suaviza as imagens, as ilumina e cria esse contraste cromático que dialoga muito comigo, me fascina.


Blog das Letrinhas: É possível ler essa história de um ponto de vista psicanalítico – a segurança de manter quem amamos embaixo da asa, o apego nos laços afetivos, a inversão de papéis entre adultos e crianças e outros aspectos desse tipo. Você pensa nessas conexões ao criar seus livros?


Beatrice Alemagna: Sempre.


Blog das Letrinhas: Quem são suas principais referências literárias – atemporais e atuais – na criação dos seus livros? E quais outras linguagens artísticas te influenciam mais?


Beatrice Alemagna: A poesia simples de Jacques Prévert, tanto quanto a arte naïf, os pintores surrealistas e a arte bruta.


Blog das Letrinhas: Um de seus livros favoritos na infância era Marceline le monstre, da autora norte-americana Mary H. Lystad, ilustrado por Victoria Chess. A história traz o símbolo de uma criança que quer ser outra coisa daquilo que esperam dela. Isso de certa forma permeia suas histórias. Do seu primeiro livro até hoje, como você vê o conjunto de sua obra? Que elementos mais te interessam e te motivam a querer contar uma história?

Beatrice Alemagna: Diversidade, busca e aceitação da própria identidade, por mais estranha ou complicada que seja. Este é um dos temas que mais me motiva e fascina nos livros que escrevo porque penso que a criança está à procura de si mesma, sendo um ser em formação onde tudo sobre ela é desconhecido.

LEIA MAIS: Saramago, o menino

 

(Texto: Renata Penzani)

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog