Plot twist: as reviravoltas que amamos

01/04/2024

Muitas histórias parecem previsíveis. É como naqueles filmes exibidos à exaustão na televisão aberta: se você assistir por menos de cinco minutos já sabe com quem a mocinha vai ficar no final e saca quem é o vilão - que acaba mal. Não é preciso ir até o fim para saber como a história vai acabar. Mas e quando você acha que já entendeu tudo e a narrativa tem uma grande reviravolta? Nada era como você pensou que fosse. O mocinho na verdade é o bandido. Ou a mocinha na verdade é uma ogra - soa familiar? Ou o protagonista morre subitamente - arruinando a previsível jornada do herói.


Estátua!, de Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

Essa estratégia de construir uma narrativa que apresenta uma grande reviravolta, conduzindo o leitor a desfechos imprevíveis, se chama plot twist. Ela não aparece apenas no cinema, mas também na literatura infantil - e quando bem executada, costuma exercer um efeito incrível nos pequenos leitores, despertando a paixão pelos livros a partir de grandes surpresas. “Plot twist significa uma reviravolta na trama; uma mudança radical na direção esperada ou prevista para o enredo de um livro, filme ou série, dentre outras linguagens”, explica a professora Giselle Vitor da Rocha, mestre em estudos literários e técnica de programas e projetos do Cenpec, uma ONG que desenvolve projetos com foco na melhoria da educação pública. “É uma estratégia narrativa muito praticada para manter o interesse do público em uma obra, com uma pitada de tempero: uma surpreendente mudança da rota da história, a tão aguardada ‘surpresa final’”, define.

Há vários livros para crianças que se tornaram notáveis por seus plot twist: o premiadíssimo Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013) é um ótimo exemplo. A história toda é ressignificada nas últimas páginas, quando (lá vem spoiler!) entendemos que o pequeno viking, que corajosamente enfrentou tantos perigos montado em seu cavalo branco, na verdade estava dando uma volta em um carrossel - de onde é tirado por seu pai aos prantos. Agora, o autor e ilustrador lança Estátua! (Companhia das Letrinhas, 2024), que também traz uma grande surpresa ou, como ele mesmo definiu, em entrevista ao Blog da Letrinhas, “o jogo de velar e revelar”. Habilmente, Moriconi só revela uma informação crucial sobre a personagem principal no final do livro - e, com isso, descortina uma nova dimensão para toda a narrativa. “Há nos meus livros a ruptura de uma lógica interna, que eu mesmo criei, e me contradigo, gerando um espanto risonho no leitor”, afirmou o autor.

Estátua!, Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

Moriconi define Estátua! como uma “antítese de Bárbaro”. “Estátua! e Bárbaro jogam esse jogo em comum, além de outras similaridades. Isso aconteceu sem querer. Quando percebi algumas semelhanças, resolvi frisá-las – como o nome da personagem principal, a Bárbara. Só descobri seu nome depois que me dei conta que um livro poderia dialogar com o outro”, explicou. “Estátua! acabou virando, por uma lógica interna da sua narrativa, uma antítese do Bárbaro, a começar pelo gênero do personagem principal, ou do gênero do adulto que o busca, além do formato da publicação – uma vertical, outra horizontal. E até mesmo pela conclusão, sendo que um é a revelação da realidade e o outro, da fantasia”, acrescenta.

Uma coisa é certa: em ambos os livros, os leitores certamente não conseguiram prever o que os aguardava quando começaram a virar as páginas - e a sensação de ser surpreendido é divertidíssima. 

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Bárbaro, Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

Nos livros ou no cinema: o fascínio da surpresa

Giselle lembra que, no cinema, um dos casos  que virou referência de plot twist é o Sexto sentido (1999). Você se lembra do filme em que o garotinho dizia ver gente morta o tempo todo? Mas também podemos citar Clube da Luta (1999), e mais recentemente os thrillers Garota exemplar (2014) e Uma garota de muita sorte (2022).

Embora todas essas produções tenham ficado marcadas como muito inovadoras por seus elementos-surpresa, o que muitas pessoas não sabem ou não reparam, segundo a especialista, é que o plot twist é um recurso muito antigo, utilizado desde a época das primeiras tragédias gregas. Um exemplo é o caso de Édipo Rei, tragédia de Sófocles. Em resumo, estamos falando da história de um homem que, sem saber, mata o pai e casa-se com a mãe, como previa uma profecia. "Na trama, quando fatos inesperados sobre o protagonista e sua família são revelados, a compreensão da história muda radicalmente”, lembra. Não é um “truque” novo, mas a criatividade na hora inventar uma forma de usá-lo ou apresentá-lo ao leitor faz toda a diferença no resultado final. 

“Essas reviravoltas podem aparecer de várias maneiras em uma narrativa, a exemplo da traição de uma pessoa amiga, da revelação de uma verdade inesperada envolvendo o passado de um personagem que vem à tona, da descoberta de um narrador não confiável a certa altura da história, com o poder de manipular o leitor e assim por diante. A grande estratégia, neste caso, é trazer para o enredo elementos-surpresa que mudam o curso da narrativa de forma inesperada”, resume a professora.

No caso dos livros infantis, há vários exemplos. Além de Bárbaro e Estátua! o próprio Renato Moriconi assina outras obras que empregam essa estratégia, como Uma planta muito faminta (Companhia das Letrinhas, 2021). Tem também E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas, (Companhia das Letrinhas, 2020), de Emicida, Olhe pela janela (Brinque-Book, 2022), de Katarina Gorelik, que traz não só uma, mas uma série de plot twists ora assustadores ora reconfortantes. E ainda Cachinhos dourados e um urso apenas (Brinque-Book, 2013), de Leigh Hodginkson, que brinca com personagens conhecidos em um reencontro inusitado, e o consagrado O Grúfalo (Brinque-Book, 1999), de Julia Donaldson, que cativa os leitores pela surpresa de encontrar - de verdade - um monstro que parecia ser inventado. Não faltam exemplos de obras que as crianças amam - e os adultos também!

Uma planta muito faminta, Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

“Essas reviravoltas inesperadas das narrativas fascinam tanto os pequenos leitores, sobretudo, pela possibilidade de serem surpreendidos, de poderem levar ‘um susto’. Em muitas situações, o riso pode ser o grande chamariz” Giselle Vitor da Rocha, mestre em estudos literários 

O plot twist e suas muitas possibilidades de formatos

Mas o que faz um bom plot twist? Em alguns casos, a história não dá nenhum indício de nada e a reviravolta chega de repente. Em outros, algumas pistas vão aparecendo ao longo da narrrativa para que a reviravolta faça sentido lá na frente - às vezes, o leitor percebe. Mas outras vezes, não. Quando ele descobre a surpresa, só quando lê novamente é que pensa: “Olha, tinha uma pista bem aqui e eu nem percebi!”.

“Estas pistas podem aparecer com mecanismos diferentes, por exemplo, na composição de uma narrativa não linear”, explica Giselle. E como se dá essa estratégia? “A ideia é ir revelando a trama e os conflitos dos personagens em uma ordem não-cronológica, o que demanda do leitor o exercício da junção de pedaços para a composição e compreensão da história”, acrescenta.

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Segundo ela, existem vários elementos para alcançar um bom plot twist. São eles:

●    A anagnórise, ou descoberta, que é o reconhecimento súbito do protagonista (ou de outro personagem) de sua própria identidade e natureza.  A obra mais famosa que representa esse recurso narrativo é Édipo Rei.

●   O flashback ou analepse, o recurso mais conhecido dos leitores. Se estrutura por uma interrupção súbita da sequência cronológica narrativa da história pela interpolação de eventos ocorridos anteriormente. É usado para surpreender o leitor com informações previamente desconhecidas, que fornecem a resposta para um determinado mistério, colocando certo personagem em uma visão diferente ou revelando a razão para uma ação anteriormente inexplicável.

●    A cronologia reversa, que tem como função revelar a narrativa em ordem inversa, ou seja, a partir do evento final para chegar no inicial.

●   O narrador não confiável. que distorce nuances da trama. Esse narrador é quase sempre revelado no final da narrativa, neste momento, se descobre que o mesmo havia manipulado ou inventado a história contada até então, forçando o leitor  a questionar suposições prévias sobre o texto. 

Surpresa que cativa - e ensina muito!

Além de representar um elemento extra de prazer pela leitura, os plot twists enriquecem as histórias, reforçando o tema e as mensagens, potencializando o engajamento do leitor. Essa surpresa ajuda a cativar, fisgar e despertar o interesse pela busca por novas histórias que causem sensações e estímulos parecidos. “Sabemos que a formação de um leitor começa na infância. A possibilidade de se vincular à leitura depende de uma boa mediação e das obras que perpassarão a formação desses pequenos. Por isso, obras literárias que estimulem a curiosidade sobre a história ou a vontade de ler mais obras sobre aquele mesmo personagem são essenciais para alcançar a fruição leitora”, completa Gisele.

Livros assim acabam sendo também ótimas ferramentas educacionais. A partir dessas leituras, as crianças se engajam e, conforme aumentam o repertório, começam a prestar atenção nas tais “pistas” que possam ser encontradas ao longo do texto, para tentar se antecipar a possíveis surpresas. Tudo isso amplia a atenção e a interpretação da obra. Assim o jogo do “velar e revelar”, como diz Moriconi, vai aparecendo em novas histórias e revelando novos - e apaixonados - leitores,

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