Trecho do livro LINHA-D'ÁGUA

1 UMA GRANDE CANOA DE METAL Grandes canoas não se fazem mais. Não restaram no litoral as árvores para elas. Rocinhas, fogo e pastagens foram empurrando para longe da costa as grandes árvores. As grandes canoas desapareceram não por culpa delas, canoas, nem de seus mestres. Foi por culpa do trabalho de uma puxada de madeira morro acima, morro abaixo, pelo meio do mato, até chegar ao mar. Um trabalho, o da puxada do corte inacabado, que no caminho derruba muitas vezes mais madeira do que a da própria canoa. Por culpa também do pouco-caso econômico que o trabalho dessas canoas foi sofrendo, uma arte foi se perdendo. Canoas de voga e de vela, as antigas de cerco, as gigantes de carga, com dez palmos de boca ou mais, ou mesmo as do baixo São Francisco, de tolda, magníficas, com casaria e coberta: nenhuma delas, salvo raríssimas exceções, sobreviveu. No caso das de mar, no passado não existiam as tintas de proteção das obras vivas. Quando muito, banhos de casca de mangue vermelho para evitar cracas e gusanos, num processo que há muito se esqueceu. Obrigadas a ficar no mar, as grandes embarcações de madeira resistiam pouco tempo. E foi exatamente nas pequenas canoas, nas que sobreviveram puxadas em ranchos ou estivas, que os traços e detalhes de estilo se preservaram. Em cada prainha do litoral brasileiro, em cada pedaço de costa ou rio, um feitio próprio, um detalhe de arte única, que em silêncio se perde. De canoa em canoa, ano após ano, só depois de andar a torto e a direito em barcos maiores cheios de modernices é que descobri as qualidades da pequena e ágil Max. Santo Mané Santos! O corte de artista, a linha-d'água afiada, a obra viva de um verdadeiro mestre canoeiro. Quando parada, instável como uma diaba; andando, arisca, veloz, puro prazer. Canoinha leve, de cedro rosa, que pintei de azul-oceano, obra-prima de engenharia naval, foi minha primeira canoa. O veículo que me mostrou uma arte que eu não conhecia e uma atividade da qual não me livraria tão cedo: a de fazer barcos. Minúscula, frágil, esguia, sem que eu notasse me levou do mar confortável de casa - onde os destinos eram certos e os barcos estavam prontos - para o oceano aberto. Para um meio vasto, incerto, onde barcos têm que ser feitos com cuidado e conduzidos com respeito. O meio de que aprendi a gostar. Depois da Max vieram a Faísca, de goiti, a Rosa, imensa, de caubi, canoinhas várias, de madeiras ora leves ora pesadas. Samanta, Dita, Esperança, nomes que eu não quis trocar. Por culpa do amigo Caio, o primeiro veleirinho - aos dezessete anos -, um catamarã de fibra de catorze pés que, por falta de oponentes a quem desafiar em regatas, usei anos a fio para carregar cocos ou remar - feito canoa - quando faltava vento. Troquei-o depois por outro catamarã, este com dois pés e uma buja a mais, o Karnak, e na companhia do Hermann aconteceu a primeira viagem oceânica, de Salvador a Santos. Nos anos de estudos econômicos na universidade retornei aos remos, dessa vez em barcos olímpicos. Na raia da USP, remando bólidos esportivos de materiais avançados, compreendi o talento e a arte dos mestres canoeiros que faziam canoas para trabalho e pesca. Acabei construindo, no coração da Baixada Fluminense, o primeiro barco em que de fato naveguei. Lenta e intensamente, puxando remos e perseguindo correntes, uma experiência que me tornaria feliz no mar: cem dias e algumas horas entre a África e o Brasil, no inverno de 1984. Um barco incomum, o I.A.T., com nome de sigla, desprovido de velas, mastros ou motor, que me iniciou nas travessias oceânicas. De carona em veleiros franceses fui aprendendo, ainda ignorante em velas e estais, os detalhes ocultos de barcos maiores - ou pelo menos dos que faziam viagens maiores. Em 1986, a compra tumultuada do Rapa-Nui, o cancelamento da construção de um barco gêmeo - já iniciada, em Rio Grande da Serra - e o início da obra de um veleiro polar em alumínio. Em 1989, finalmente a conclusão do Paratii e a partida para 22 meses de andanças pelos extremos do Atlântico. Um inverno inteiro na Antártica, um verão no Ártico. Depos de 27 mil milhas, a volta, discreta, ao mesmo pedaço de areia de onde havia partido, a bordo de um barco competente que apresentou um único problema: o vermelho do casco queimado de sol e frio virou rosa. Eu tinha finalmente o barco com que sonhara. Foi-se um pouco da ignorância, ganhei experiência e passagens por lugares que poucos barcos freqüentam. Com as obras feitas e as milhas acumuladas, eu deveria ter acalmado o desejo de pensar em outro barco. Deveria comemorar feliz, na preguiça de Paraty, as latitudes cumpridas sem acidentes, os destinos alcançados. Aconteceu justamente o contrário. Ganhei uma espécie de curiosidade crônica nos olhos, uma certa fixação por idéias simples, por soluções que andavam no meu nariz e que antes eu era incapaz de ver. Minhas dúvidas sobre barcos, a vida em volta deles e os seus segredos multiplicaram-se feito larvas. A idéia de um barco novo - de colocar tudo o que havia aprendido numa folha em branco, de fazer um projeto ainda mais simples, de apagar erros só agora visíveis - veio junto com um interesse investigativo por barcos de todos os tipos, velhos, moribundos, regionais, úteis ou não. De carga, pesca ou transporte. Canoinhas pequenas bem pintadas, as gigantes de um pau só, as abandonadas, barcos viajantes que vinham dar na baía, outros menos interessantes ou tortos vindos de fora, e que procuravam abrigo na passagem pelo Brasil. Todos os que pude, investiguei. Mesmo navios velhos, barcaças, plataformas, bateiras, chatas ou balsas. E também os seus métodos - ainda que rudimentares - de ancoragem, manobras e manejo. Antes, por não ser engenheiro, membro de clube náutico ou mesmo velejador de mínima qualificação que fosse, tinha vergonha de fazer certas perguntas quando visitava um portinho ou estaleiro. A vergonha nunca me incomodou, e não a perdi, mas agora eu me deliciava fazendo perguntas que antes não ousava. - Por que veleiros de oceano têm formas tão horríveis e pouco marinheiras? - Por que tantas toneladas de chumbo? - Por que tantos cabos e pecinhas? Afinal de contas, por que é mesmo que eu levara mil quilos de chumbo inerte pra passear de graça por 27 mil milhas? Claro, a estabilidade, a segurança, as regras, regras e regras, como especialistas navais sempre insistiam. Não sou contra regras ou normas. Especialmente as de engenharia naval. Mas apenas seguir regras é pouco quando se deseja fazer um barco especial. Quase injusto, pensei, questionar um projeto tão bem-sucedido, um barco que me dera tantas alegrias. O barco vermelho, onde agora eu ia dormir nos fins de semana só pra matar a saudade dos dias de viagem, era de fato uma bíblia de ensinamentos, simplicidade, boas soluções. Finalmente ele tinha adquirido uma espécie de alma. Fez jus ao nome, e me fez compreender por que, ao contrário de todos os outros veículos concebidos pela mente humana, barcos têm nome próprio. O Paratii terminou sua missão intacto, no auge da sua forma técnica. Era hora de produzir um sucessor. E dessa vez eu não pensava mais num barco convencional, mas em outro completamente diferente de tudo o que já vira. Um barco simples como canoa e cargueiro como navio. Descobri navegando que o tempo gasto em pensar e projetar é o mais importante da vida de um barco. Mesmo uma mínima canoa de pescar lulas que não tenha um projeto escrito, foi projetada na cabeça de seu construtor, foi projetada no olhar afiado do tirador que estudou o corte na mata. Descobri também que esse tempo só tem algum significado quando um dia os planos deixam de ser planos e se transformam em trabalho e obras. E depois em milhas. Estava na hora de parar de envelhecer planos, juntar alumínio e soldadores e fazer um barco novo. Um barco diferente, maior do que o Paratii. Uma canoa gigante de metal.