Trecho do livro DESESPERADOS

UM Senhor e senhora Otto Bentwood puxaram suas cadeiras ao mesmo tempo. Ao se sentar, Otto olhou o cesto que continha fatias de pão francês, uma caçarola de cerâmica cheia de fígados de galinha sautés, tomates descascados em fatias numa travessa de porcelana com desenhos azuis que Sophie encontrara numa loja de antiguidades de Brooklyn Heights e risoto milanês numa tigela de cerâmica verde. Uma luz forte, um tanto abrandada pelo vidro trabalhado de uma cúpula Tiffany, caía sobre o repasto. Uns metros além da mesa de jantar, branca e retangular, o reflexo de uma lâmpada fluorescente acima de uma pia de aço inoxidável batia no chão em frente à entrada da cozinha. As velhas portas de correr que um dia haviam separado as duas salas do primeiro andar tinham sido removidas havia muito, de modo que bastava aos Bentwood se virarem ligeiramente para que pudessem ver toda a sala de estar onde, a esta hora, estava sempre aceso um abajur de coluna com uma cúpula que era uma meia esfera branca; podiam, se quisessem, enxergar as tábuas de carvalho antigo do piso, uma estante que continha, entre outros volumes, as obras completas de Goethe e duas prateleiras de poetas franceses, e o canto muito polido de uma escrivaninha vitoriana. Otto desdobrou com determinação o grande guardanapo de linho. "O gato voltou", disse Sophie. "Você ficou surpresa?", Otto perguntou. "O que você queria?" Sophie olhou por cima do ombro de Otto, para a porta de vidro que dava para uma pequena sacada de madeira, suspensa acima do quintal como um ninho de corvo. O gato estava esfregando com suave insistência o corpo surrado, meio esfaimado, contra a base da porta. O pêlo cinzento, do cinza de fungo das árvores, era ligeiramente listrado. A cabeça era grande, uma abóbora, bochechuda, sem vergonha e grotesca. "Pare de olhar", Otto disse. "Para começar, você não devia ter dado comida a ele." "Pode ser." "Vamos ter de chamar a Associação Protetora dos Animais." "Coitadinho." "Ele se vira bem. Esses gatos todos sabem se virar." "Talvez a sobrevivência dele dependa de gente como eu." "Este fígado está bom", disse ele. "Não vejo qual a importância de ele sobreviver ou não." O gato se atirava contra a porta. "Ignore", disse Otto. "Quer que todos os gatos de rua do Brooklyn venham vigiar a comida na nossa varanda? Imagine o que eles fariam com o jardim! Outro dia, vi um deles caçar um passarinho. Não são gatinhos, sabe? São matadores." "Olhe como está anoitecendo tarde agora!" "Os dias estão ficando mais longos. Espero que os nativos não comecem a tocar os seus benditos bongôs. Talvez chova como choveu na primavera passada." "Vai querer café?" "Chá. A chuva não deixa eles saírem." "A chuva não está do seu lado, Otto!" Ele sorriu. "Está, sim." Ela não sorriu de volta. Quando foi para a cozinha, Otto rapidamente virou-se para a porta. O gato, naquele instante, bateu a cabeça no vidro. "É feio o filho-da-mãe!", Otto resmungou. O gato olhou para ele, e seus olhos se desviaram. A casa lhe parecia poderosamente sólida; a sensação dessa solidez era como uma mão colocada com firmeza em suas costas. Do outro lado do quintal, além dos movimentos agitados do gato, via as janelas dos fundos das casas da rua de cortiços. Algumas janelas tinham trapos presos na frente, outras, folhas de plástico transparente. No peitoril de uma delas, pendia um cobertor azul. Havia um rasgo comprido no meio dele, que deixava ver o pálido tijolo avermelhado da parede. A barra desfiada do cobertor tocava o alto da moldura de uma porta que, quando Otto estava para se virar, abriu-se. Uma gorda de meia-idade, de roupão, saiu para o quintal e esvaziou um grande saco de papel no chão. Ficou olhando o lixo um momento, depois entrou de volta arrastando os pés. Sophie voltou com xícaras e pires. "Encontrei Bullin na rua", disse Otto. "Ele me contou que venderam mais duas casas por aqui." Fez um gesto de mão na direção da janela dos fundos. Pelo canto dos olhos, viu o gato pular como se ele tivesse oferecido alguma coisa. "O que acontece com as pessoas que moram nas casas quando elas são compradas? Para onde elas vão? Sempre me pergunto isso." "Não sei. Tem gente demais por toda parte." "Quem comprou as casas?" "Um valente pioneiro de Wall Street. E a outra, acho, um pintor que foi despejado do loft dele na Lower Broadway." "Não é preciso coragem. É preciso dinheiro." "O arroz está maravilhoso, Sophie!" "Olhe! Ele se enrolou todo naquela beiradinha. Como é que eles se encaixam em lugares tão pequenos?" "São como cobras." "Otto, vou dar um pouquinho de leite para ele. Sei que não devia ter dado nada. Mas ele agora está aí. Nós vamos para Flynders em junho, afinal. Quando a gente voltar, ele já terá arrumado alguma outra pessoa." "Por que você insiste? Essa auto-indulgência. Olhe! Você não dá a mínima, contanto que não tenha de ver o gato com cara de fome. Aquela maldita mulher acaba de jogar o lixo da noite lá. Por que o gato não vai lá comer?" "Não importa por que eu faço isso", disse Sophie. "A questão é que eu estou vendo que ele está morto de fome." "Que horas temos de estar nos Holstein?" "Umas nove", disse ela, a caminho da porta com um pires de leite. Estendeu a mão e enfiou na fechadura uma chavinha que ficava num travessão acima da moldura da porta. Depois, girou a maçaneta de latão. O gato gritou imediatamente e começou a lamber o leite. Das outras casas, vinha um tênue bater de pratos e panelas, o murmúrio de televisões e rádios ligados - mas a simples multiplicidade de barulhos tornava difícil identificar ruídos individuais. A cabeça grande do gato estava em cima do pequeno pires Meissen. Sophie se abaixou e passou a mão pelas costas dele, que estremeceu debaixo de seus dedos. "Volte para dentro e feche essa porta!", Otto reclamou. "Está esfriando aqui." O ganido angustiado de um cachorro soou de repente acima da superfície do rumor vespertino. "Meu Deus!", Otto exclamou. "O que estão fazendo com esse animal!" "Católicos acham que animais não têm alma", disse Sophie. "Essa gente não é católica. Do que você está falando! Vão todos à iglesia pentecostal no fim da rua." O gato tinha começado a limpar os bigodes. Sophie acariciou-o de novo, deslizando os dedos por ele até encontrar a curva peluda onde o rabo virava para cima. As costas do gato subiram, convulsas, para pressionar sua mão. Ela sorriu, imaginando se alguma vez antes o gato teria recebido um toque humano amigável, e ainda estava sorrindo quando o gato empinou nas pernas traseiras, ainda sorria quando ele atacou com as garras de fora, sorrindo até o segundo em que ele afundou os dentes nas costas de sua mão esquerda e se pendurou em sua carne de tal forma que ela quase caiu para a frente, surpresa e horrorizada, mas consciente da presença de Otto a ponto de abafar o grito que lhe subiu pela garganta ao arrancar a mão daquele círculo de arame farpado. Ela empurrou com a outra mão, e com suor porejando na testa, com a carne arranhada e apertada, disse ao gato: "Não, não, pare com isso!", como se ele não estivesse fazendo nada além de pedir comida, e no meio da dor e do desânimo ficou perplexa de ouvir como sua voz estava calma. Depois, de repente, as garras se soltaram e recuaram para dar outro golpe, mas aí o gato virou - ao que parece, em pleno ar - e saiu correndo da varanda, desaparecendo no quintal escuro lá embaixo. "Sophie? O que aconteceu?" "Nada", ela disse. "Vou buscar o chá agora." Fechou a porta e foi depressa para a cozinha, sempre de costas para Otto. O coração disparado. Tentou respirar fundo para controlar aquelas batidas fortes e pensou de relance na vergonha que sentia - como se tivesse sido surpreendida em algum ato censurável. Diante da pia da cozinha, apertando as mãos, disse a si mesma que não era nada. Um arranhão comprido na base do polegar sangrava devagar, mas da mordida jorrava sangue. Abriu a torneira. Suas mãos pareciam exaustas; as manchas parecidas com sardas que haviam começado a aparecer no inverno estavam lívidas. Curvou-se para a frente na pia, se perguntando se ia desmaiar. Depois, lavou as mãos com sabão de pia amarelo. Lambeu a pele, com gosto de sabão e de sangue, depois cobriu a mordida com um pedaço de toalha de papel. Quando voltou com o chá, Otto estava olhando uns documentos encadernados com capas azuis. Levantou os olhos e olhou para ele com aparente calma, pôs o chá na sua frente com a mão direita, mantendo a outra escondida do lado. Mesmo assim, ele pareceu ligeiramente intrigado, como se estivesse ouvindo um som que não conseguia identificar. Ela se adiantou a qualquer pergunta, indagando depressa se ele ia querer fruta. Ele disse que não e o momento passou. "Deixou a porta aberta. Tem de trancar, Sophie, senão abre sozinha." Ela fechou a porta de novo, trancou com a chave. Pelo vidro, viu o pires. Já havia algumas manchas de fuligem nele. Tinha parado de fumar no outono, mas não parecia ter feito muita diferença. Não posso destrancar a porta novamente, disse a si mesma. "Pronto", Otto disse. E suspirou. "Pronto, afinal." "O que está pronto?" "Surda Sophie. Você não ouve mais o que eu digo, mesmo. Charlie mudou hoje, para o escritório novo dele. Até hoje de manhã, ele não tinha me contado que arranjou mesmo um lugar. Disse que queria que a coisa toda fosse uma novidade total. 'Se eu precisar dos arquivos, posso entrar em contato com você?' Foi o que ele me pediu. Até nessa questão ele insinuou que eu talvez não seja razoável." Ela se sentou, com a mão esquerda no colo. "Você nunca falou muito disso comigo", disse ela. "Não tinha muita coisa a dizer. Nesse último ano nós não concordamos em nada, em nada. Se eu dizia que ia chover, Charlie esticava o lábio e dizia não, não vai chover, não. Tinha lido cuidadosamente a previsão do tempo e achava que ia ser um dia claro. Eu devia ter entendido há muito tempo que ninguém muda de caráter. Fiz todas as concessões superficiais possíveis." "Faz tempo que vocês estão juntos. Por que acabaram assim agora?" "Não gosto das pessoas novas com quem ele está andando, os clientes. Eu sei o que sempre aconteceu no escritório. Eu fazia o trabalho pesado enquanto Charlie botava seu chapéu engraçado e conquistava todo mundo com seu charme. O negócio de ele negar a lei não passa de uma piada irônica, e isso pega bem com uma porção de gente." "Vai ser difícil ver os Russel. Não acha? Ruth e eu nunca fomos muito amigas, mas a gente se virava. Como é que se pára de ver as pessoas? E o barco?" "Pára e pronto, é assim. O inverno foi tão ruim. Você nem imagina as pessoas na sala de espera, um exército de mendigos. Ele me disse hoje que alguns clientes dele ficavam intimidados com a grandiosidade do nosso escritório, que vão se sentir melhor no escritório novo. Depois, disse que eu vou acabar secando e sumindo se, nas palavras dele, eu não sintonizar com o mundo. Meu Deus! Você tinha de ouvir ele falando, como se tivesse virado santo! Um dos clientes dele acusou a recepcionista de racismo porque ela pediu para ele usar o cinzeiro em vez de apagar o cigarro no tapete. E hoje, dois homens que pareciam espiões de história em quadrinhos foram ajudar a carregar as benditas caixas de papelão dele. Não, não vamos encontrar com eles, e ele pode ficar com o barco. Eu nunca liguei muito para aquilo. Realmente, era até um peso." Sophie estremeceu ao sentir uma pontada de dor aguda. Ele franziu a testa e ela viu que Otto pensou que ela não tinha gostado do que ele havia dito. Podia contar a ele agora, até podia. O incidente com o gato era uma bobagem. Meia hora depois, pensava no terror que sentira, e na vergonha. "O gato me arranhou", disse ela. Ele se levantou de imediato e deu a volta na mesa, até ela. "Deixe eu ver." Ela levantou a mão. Estava doendo. Ele a tocou com delicadeza e seu rosto mostrava solicitude. Passou-lhe pela cabeça que ele estava sendo atencioso porque o gato havia justificado a advertência que fizera. "Você lavou? Passou alguma coisa?" "Lavei, sim", ela respondeu impaciente, olhou o sangue molhando o papel e pensou consigo mesma que, se o sangramento parasse, estaria tudo bem. "Bom, sinto muito, querida. Mas não foi uma boa idéia dar leite para ele." "Não. Não foi." "Está doendo?" "Um pouco. Como uma picada de inseto." "Fique quietinha por um instante. Leia o jornal." Ele tirou a mesa, colocou os pratos na máquina de lavar louça, passou o resto de fígado para uma tigela e deixou a caçarola de molho. Enquanto trabalhava, dava umas olhadas para Sophie, sentada muito ereta com o jornal no colo. Ficou curiosamente tocado com a pouco característica imobilidade dela. Parecia estar ouvindo alguma coisa, à espera. Sophie estava sentada na sala de estar, olhando a primeira página do jornal. A mão começou a latejar. Era apenas a mão, disse para si mesma, mas o resto do corpo parecia envolvido de um jeito que não conseguia entender. Era como se tivesse sofrido um ferimento mortal. Otto entrou na sala. "O que você vai vestir?" "Aquele vestido Pucci", ela disse, "só que eu acho que engordei demais para ele." Ela se levantou. "Otto, por que ele me mordeu? Eu estava fazendo um carinho nele." "Achei que você disse que ele tinha arranhado." "Seja lá o que for... mas por que ele me atacou assim?" Subiram a escada. O corrimão de mogno brilhava na luz oleosa e macia do globo de vidro soprado que pendia do teto. Ela e Otto tinham trabalhado uma semana para remover a tinta preta velha do corrimão. Foi a primeira coisa que fizeram juntos depois de comprar a casa. "Porque ele é selvagem", disse ele. "Porque o que ele queria de você era só comida." Ao pôr o pé no primeiro degrau, disse, como se fosse para si mesmo, "Vou me dar melhor sozinho". "Você sempre teve seus próprios clientes", ela disse, irritada, abrindo e fechando a mão machucada. "Não entendo por que não podiam continuar juntos." "Aquele melodrama todo... Não consigo conviver com aquilo. E ele não conseguia parar. Se eu não estivesse a favor dele, estava contra. Não estou querendo dizer que não havia causa. Não estou querendo dizer que o mundo seja justo. Mas eu conheço o Charlie. Ele está usando essas pessoas e os casos delas. Ele só não quer ficar de fora. E eu quero ficar de fora. Ah... estava na hora de acabar. Nós dois nos usamos até onde deu. A verdade é que eu não gosto mais dele." "Me pergunto como ele deve estar se sentindo." "Como Paul Muni, defendendo os não-amáveis e não-amados. Nunca existiu advogado assim. Lembra? Aqueles filmes todos dos anos trinta? Os jovens médicos e advogados indo para o interior para edificar os caipiras." "Paul Muni! Charlie tem razão", disse ela. "Você não está no século certo." "É verdade." "Mas Charlie não éruim!", ela exclamou. "Eu não disse que ele é ruim. Ele é irresponsável, vaidoso, histérico. Não tem nada a ver com ruindade." "Irresponsável! O que você quer dizer com irresponsável?" "Fique quieta!", disse Otto. E passou os braços em torno de Sophie. "Cuidado!", disse ela. "Vai se sujar de sangue!"