Trecho do livro GLOBALIZAÇÃO

Introdução à edição brasileira É com grande prazer que vejo a publicação da edição brasileira de Globalização: como dar certo. O Brasil tem estado no centro de muitos dos mais importantes debates mundiais sobre globalização e vem desempenhando um papel fundamental na redefinição de seu funcionamento. O PAPEL DO BRASIL NA REDEFINIÇÃO DO REGIME DE COMÉRCIO MUNDIAL O papel do Brasil tem sido notável nas negociações da Rodada do Desenvolvimento das conversações sobre comércio que começou com tantas promessas em Doha, no Qatar, em novembro de 2001. As rodadas anteriores haviam liberalizado os mercados e diminuído as barreiras tarifárias, mas de um modo desvantajoso para os países em desenvolvimento. A Europa e os Estados Unidos se comprometeram a corrigir esses desequilíbrios, caso contrário outro acordo de comércio mundial seria muito provavelmente inaceitável para os habitantes dos países em desenvolvimento. A Rodada Doha, porém, chegou a um impasse, e embora ainda tenha de ser declarada oficialmente morta, as perspectivas são sombrias. Qualquer que seja a situação das conversações, a maioria dos países em desenvolvimento perdeu o interesse por elas porque percebeu que, mesmo que se chegue a um acordo, ele não lhe será muito benéfico. As conversações da Rodada do Desenvolvimento, no entanto, foram diferentes das rodadas anteriores de negociações comerciais. Antes, apenas os países industriais avançados sentaram-se realmente à mesa. Os acordos eram feitos entre as grandes potências comerciais, Europa, Estados Unidos e Japão; o resto do mundo era obrigado a acompanhar. Dessa vez, o Brasil e a Índia participaram da principal mesa de negociação juntamente com a União Européia e os Estados Unidos. O Brasil exigiu, com razão, que a União Européia e os Estados Unidos cumprissem as promessas de cortar os subsídios agrícolas. Os americanos fizeram uma oferta "generosa" de não aumentar seus subsídios em mais de 50% - de um patamar que já havia sido duplicado pelo governo Bush, e acusaram o Brasil de má-fé por não aceitar essa oferta. E acusaram de modo mais amplo a Índia e o Brasil de perseguir seus interesses próprios, às custas dos outros países em desenvolvimento. Mas a realidade é que são os Estados Unidos que estão agindo de má-fé. São os Estados Unidos e a Europa que quebraram as promessas feitas em Doha em novembro de 2001 de uma rodada que promoveria realmente o desenvolvimento dos países mais pobres. Essas promessas mal podem ser reconhecidas nas ofertas que os Estados Unidos e a União Européia colocaram sobre a mesa. Eles simplesmente puseram vinho velho em garrafas novas, na esperança de que os países em desenvolvimento caíssem na artimanha. O Brasil posicionou-se na vanguarda para que isso não acontecesse. O Brasil deu outra contribuição importante: contestou a legalidade dos subsídios agrícolas americanos na Organização Mundial do Comércio e ganhou. Se não tivesse prevalecido, isso sugeriria que o processo da OMC seria uma farsa. A Rodada Uruguai havia definido limites para "subsídios agrícolas que distorcem o comércio", mas os Estados Unidos alegaram que seus subsídios ao algodão não causavam essa distorção. Sem esses subsídios, porém, os Estados Unidos nem mesmo exportariam algodão; com eles, o país se tornou seu maior exportador mundial. Se isso não é distorção do comércio, então nada o é. Mesmo tendo perdido o caso na OMC, no momento em que escrevo este prefácio, os Estados Unidos estão renovando seus generosos programas de subsídios, apesar das receitas recordes da agricultura. Os interesses especiais que moldaram as políticas econômicas americanas, em especial no governo Bush, são tão fortes que o país parece disposto até a sacrificar seus interesses de segurança. Ouviu-se dizer que os Estados Unidos querem se livrar da dependência do petróleo estrangeiro, em parte porque sabem que o dinheiro gasto em petróleo sustenta ditadores e governos indesejáveis no Oriente Médio e outras regiões. O Brasil alcançou efetivamente a independência energética, em parte graças ao programa de pesquisa apoiado pelo governo de produção de etanol a partir da cana-de-açúcar. O etanol brasileiro é tão bem-sucedido que os Estados Unidos precisam tributá-lo em mais de 50 centavos de dólar o galão e aplicar um subsídio de igual valor no ineficiente etanol de milho americano para torná-lo competitivo. PROPRIEDADE INTELECTUAL O Brasil tem estado em primeiro plano também na área da contestação ao regime de propriedade intelectual, chamado TRIPS, da Rodada Uruguai. Ao dificultar a produção de medicamentos genéricos aos países em desenvolvimento, esse regime reduziu o acesso às drogas que salvam vidas para as pessoas mais pobres do planeta. Isso tem sido especialmente importante para os remédios contra aids: um ano de tratamento com medicamentos genéricos custa hoje em torno de 160 dólares, em contraste com os 10 mil dólares cobrados pelos grandes laboratórios. Sem acesso aos medicamentos genéricos, milhares de pessoas são desnecessariamente condenadas à morte. Para o Brasil, que está decidido a fazer com que isso não aconteça, o impacto orçamentário de pagar o preço dos laboratórios significaria simplesmente esgotar o dinheiro para as outras necessidades da saúde. Qualquer que seja a nossa posição política, a idéia de pessoas morrendo de doenças como a aids, quando há medicamentos disponíveis que poderiam curá-las, ou pelo menos prolongar suas vidas, é profundamente perturbadora. As maravilhas da medicina moderna são de fato espantosas, mas a defasagem entre o sucesso das ciências médicas na descoberta de curas e o fracasso das ciências sociais em encontrar maneiras de assegurar que os benefícios desse conhecimento estejam à disposição de todos é também espantosa. O ataque deste livro ao TRIPS provocou reações fortes: um alto funcionário da Organização Mundial do Comércio queixou-se de que eu estava sendo injusto. Ele disse que eu certamente conhecia as "flexibilidades" que estavam embutidas no acordo, as quais permitem que os países emitam licenças compulsórias. Se os países em desenvolvimento não fazem uso pleno dessas flexibilidades, a culpa não deveria ser atribuída à OMC, mas a esses países. Esse tipo de argumento é falso. Em primeiro lugar, se a intenção fosse preservar o acesso aos medicamentos genéricos, o acordo teria sido moldado de forma completamente distinta. Uma lista de medicamentos não vitais (como aqueles para o crescimento de cabelos) teria sido formulada e os países em desenvolvimento teriam então permissão para emitir licenças para todos os outros remédios. Mas os laboratórios queriam dificultar aos países a obtenção de licenças compulsórias. Alguns chegaram a argumentar que tais licenças deveriam ser emitidas somente quando um grande número de pessoas estivesse morrendo: se esse número fosse pequeno, estaríamos diante de um problema que caberia aos indivíduos resolver. O Brasil foi um dos poucos países dispostos a ameaçar usar as provisões que haviam sido incluídas no TRIPS para o licenciamento compulsório. O país sabia, é claro, que seria atacado pelos laboratórios e pelo governo americano por fazer aquilo que tinha todo o direito de fazer. E foi atacado. A postura firme funcionou para o Brasil: em vez de o país emitir licenças compulsórias, na maioria dos casos os laboratórios baixaram seus preços para o Brasil. Mas isso significou que países menores, sem capacidade de produzir medicamentos genéricos e sem meios de enfrentar os Estados Unidos e seus laboratórios, tiveram de continuar pagando preços muito mais altos - com a conseqüência inevitável de mortes devidas à falta de acesso a remédios e restrições orçamentárias no âmbito da saúde pública para outros propósitos. É necessária uma maior solidariedade entre os países em desenvolvimento. Na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em Genebra, em fevereiro de 2007, o Brasil uniu-se à Argentina e a outros países em desenvolvimento para exigir um regime de propriedade intelectual orientado para o desenvolvimento. Até agora, no entanto, essas demandas não foram ouvidas nos corredores da OMC nos quais a assim chamada Rodada do Desenvolvimento está sendo negociada, nem nos acordos bilaterais de comércio que a União Européia e os Estados Unidos apressam-se em assinar. Com efeito, esses acordos significam um passo atrás. Enquanto um dos pontos do acordo entre os líderes empresariais, acadêmicos, de trabalhadores, das ONGS e dos governos que constituíram a Comissão Mundial sobre as Dimensões Sociais da Globalização (criada pela Organização Internacional do Trabalho em fevereiro de 2002, com um relatório final em fevereiro de 2004) era que precisávamos modificar as provisões sobre propriedade intelectual da Rodada Uruguai para promover o desenvolvimento e assegurar o acesso a medicamentos vitais nos países mais pobres, os Estados Unidos vêm impondo exigências que reduziriam ainda mais o acesso a remédios genéricos. Novas tecnologias (tais como mecanismos de pesquisa aperfeiçoados) deixam em aberto a possibilidade de um acesso sem precedentes ao conhecimento em escala global, mas essas oportunidades correm o risco de serem tolhidas por um regime de propriedade intelectual desequilibrado. Uma batalha de gigantes se aproxima, entre aquelas empresas como Google e IBM, que vêem o mundo futuro baseado no acesso livre e acreditam que há amplas oportunidades para lucro nesse tipo de mundo, e aquelas como a Microsoft que, concentradas nas suas próprias oportunidades de lucrar, querem restringir esse futuro. O bem-estar dos consumidores e o ritmo futuro da inovação podem depender criticamente do resultado dessa batalha, mas para os países em desenvolvimento há ainda mais coisas em jogo, pois o que separa o mundo desenvolvido do em desenvolvimento não é apenas a disparidade de recursos, mas uma disparidade de conhecimento. O ritmo em que essa defasagem pode ser diminuída dependerá do acesso dos países em desenvolvimento ao conhecimento, e isso, por sua vez, dependerá de nosso avanço para um sistema mais livre ou mais restrito. Ironicamente, enquanto os Estados Unidos tentam forçar os outros a adotar seu regime de propriedade intelectual, o descontentamento com esse regime continua a crescer dentro do próprio país. A Microsoft, que tem sido uma das mais fortes defensoras e aparente beneficiária da "propriedade intelectual forte", foi forçada a pagar 1,52 bilhão de dólares numa ação judicial americana em que foi acusada de roubar propriedade intelectual essencial relacionada à execução de música digital. A propriedade intelectual tornou-se objeto de uma enorme quantidade de litígios caros, com desacordos tão complexos e contenciosos que as questões chegam à Suprema Corte. Em alguns desses casos, a própria Corte pareceu preocupada com o fato de o regime de propriedade intelectual impedir a inovação. POLÍTICAS INDUSTRIAIS O sucesso do Brasil em biocombustíveis, para além de seu sucesso mundial com os aviões da Embraer, mostrou que políticas industriais - apoio governamental a determinados setores industriais - podem funcionar. Ao fazê-lo, o Brasil segue as estratégias adotadas pelos países do milagre do Leste Asiático, mas vai fortemente contra as idéias propostas pelo Consenso de Washington. É evidente que se a Coréia do Sul tivesse seguido essas idéias, talvez estivesse hoje entre os países mais eficientes na plantação de arroz, mas ainda seria pobre, em vez de membro da OCDE, o clube dos países industriais avançados. As políticas ativistas do Brasil desempenharam um papel importante em sua rápida expansão das exportações, que mais do que dobraram em quatro anos. De algum modo, porém, não aconteceu o que deveria acontecer. No Leste Asiático, a expansão rápida das exportações levou a um maior crescimento econômico, o chamado crescimento liderado pelas exportações. O Brasil parece ter inventado um conceito novo: o não-crescimento liderado pelas exportações. Hoje, o país fica feliz quando seu crescimento "explode" para 3% (acima do anêmico 1% dos primeiros anos da última década) e parece esquecer que durante 75 anos, nos três quartos de século anteriores a 1980, cresceu a uma taxa média de 5,7%. Parece haver uma explicação simples para esse fracasso: política monetária excessivamente restritiva. Diante das altas taxas de juros reais (em certos momentos, essas taxas no Brasil eram 10% mais altas do que nos Estados Unidos), não surpreende que o crescimento foi engessado; nessas condições, teria estagnado mesmo em países industriais avançados em bom funcionamento. A contribuição mais importante do Brasil para o desenvolvimento em anos recentes talvez tenha sido suas inovações nos programas contra a pobreza. O mais notável é o programa Bolsa Escola, que condiciona os programas de ajuda à freqüência dos filhos à escola. Esses programas foram tão influentes que estão sendo imitados em todo o mundo - há inclusive um programa experimental nos Estados Unidos. Outra inovação, que também é amplamente reproduzida, são os orçamentos participativos, que fortalecem os processos democráticos, ao mesmo tempo em que levam a alocações de recursos que são mais eficientes e mais sensíveis às necessidades dos cidadãos. PERSPECTIVAS GLOBAIS Passou-se um ano desde a publicação deste livro nos Estados Unidos. Ao olhar para trás, as questões discutidas me parecem tão ou mais relevantes agora do que eram então. A Índia e a China continuam a crescer de forma extraordinária - a Índia com uma taxa anual de mais de 8% e a China superando os 10%. E houve efeitos indiretos globais desses sucessos. Os altos preços das commodities ajudaram a impulsionar o crescimento global para 5%, e até a África vem se saindo muito melhor do que no quarto de século anterior, que assistiu à diminuição das rendas per capita. Não surpreende que a persistência dos altos níveis de desigualdade de renda nos países em desenvolvimento tenha continuado a alimentar aqueles que defendem o protecionismo no comércio internacional. Com efeito, uma das "surpresas" do ano passado foi que até os defensores da globalização descobriram que pode haver uma conexão entre globalização e desigualdade. Eles estão agora dando tratos à bola para descobrir como é possível proteger sem protecionismo aqueles que são prejudicados. Essa não é a única área em que a globalização não andou bem e na qual os problemas que destaquei neste livro pioraram no último ano. O aquecimento global, os desequilíbrios comerciais e financeiros e a controvérsia furiosa sobre o acesso a medicamentos - tão crítico na luta contra os riscos mundiais da saúde como a aids - continuam no centro dos debates globais. AQUECIMENTO GLOBAL O debate sobre o aquecimento global, embora ainda intenso, foi alterado fundamentalmente pelo relatório dos cientistas de fevereiro de 2007: há poucas dúvidas agora de que o mundo está se aquecendo e de que as emissões de gases de efeito estufa (como o dióxido de carbono resultante da queima de combustíveis fósseis) contribuem muito para isso. No entanto, essas conclusões por si mesmas não levaram a avanços na redução efetiva das emissões de carbono. O Protocolo de Quioto de 1997 deixou de fora a vasta maioria das fontes de poluição, inclusive aquelas originárias dos Estados Unidos e dos países em desenvolvimento. Apesar da crescente urgência de se fazer alguma coisa, há um impasse persistente: não parece haver nem mesmo um conjunto de princípios para estabelecer metas de redução de emissões que sejam aceitáveis tanto para os países em desenvolvimento como para os Estados Unidos e outras nações industrializadas. Existe, porém, uma abordagem distinta daquela assumida em Quioto - uma abordagem baseada no mercado em que todos recebem incentivos para reduzir as emissões, com a cobrança de impostos sobre elas. Faz muito mais sentido tributar as coisas ruins, como a poluição, do que as coisas boas, como o trabalho e a poupança. Ministrei palestras no mundo inteiro no último ano para apresentar esse argumento e sugerir que pode ser mais fácil chegar a um acordo sobre um conjunto de incentivos comuns e padrões básicos - com todos os países concordando, por exemplo, que deveriam impor tributos similares sobre as emissões de carbono - do que a um acordo sobre quanto cada país deveria reduzir em suas emissões. Essa análise encontrou eco em políticos e cidadãos de muitos lugares do mundo. Na meados de 2007, o primeiro-ministro britânico Gordon Brown e o presidente francês Nicolas Sarkozy se uniram àqueles que defendem tributos ecológicos. Enquanto crescia o reconhecimento de que alguma coisa precisa ser feita em relação ao aquecimento global, o mesmo aconteceu com os temores em relação à vantagem competitiva que firmas em países como os Estados Unidos, que se recusam a tomar alguma medida, terão em relação a empresas em países como os da Europa, que assumiram compromissos para reduzir as emissões de carbono. Se as empresas migrarem para países que não regulam as emissões, é até possível que as emissões globais aumentem. É por isso que a Europa e outros países que levam a sério sua responsabilidade para com as gerações futuras devem impor sanções comerciais, e estou contente que essa idéia também comece a ser discutida, não somente nos círculos empresariais, mas também por governos. Pouco antes do novo relatório científico, sir Nicholas Stern, que na época dirigia o Serviço de Economia do Governo (ele também foi meu sucessor no posto de economista-chefe do Banco Mundial, embora nossa amizade date de muitos antes, do período em que trabalhamos no Quênia, no final da década de 1960), publicou, em nome do governo britânico, um relatório sobre a economia do aquecimento global. Seu argumento concordava com uma idéia central deste livro: é simplesmente arriscado demais não fazer nada. Embora o relatório tenha sido amplamente elogiado (Stern foi escolhido "pessoa do ano" pela edição européia da revista Time em dezembro de 2006), alguns economistas levantaram uma questão técnica: Stern havia utilizado uma taxa de desconto baixa demais. As taxas de desconto são o modo pelo qual traduzimos os custos futuros para o presente; assim, em língua comum, o que esses economistas disseram foi que, uma vez que as calamidades provavelmente não ocorreriam nas próximas décadas, por que lhes dar atenção agora? Seria melhor pôr dinheiro numa "conta da calamidade do aquecimento global", deixar acumular juros e depois, quando a calamidade acontecer, teríamos dinheiro suficiente para consertar o dano. A questão que enfatizo - e os novos estudos reforçam - é que há uma enorme incerteza quanto ao que poderá acontecer: o aumento do dióxido de carbono aumentará a acidez dos oceanos, o que pode ter conseqüências dramáticas para toda a vida marinha, ou a corrente do Golfo pode mudar, ou desaparecer, levando partes da Europa a ficar muito mais frias, mesmo que boa parte do mundo enfrente um aquecimento. Com a intensificação do processo de desertificação, já vemos secas cada vez mais freqüentes, em especial na África - mesmo sendo poupada desse fenômeno, é uma região em que é prevista a duplicação dos números da pobreza. Novas doenças podem se disseminar: como vamos calcular o valor das vidas perdidas? Deixar de agir agora é uma aposta que não vale a pena - em especial quando podemos reduzir os riscos a um custo relativamente baixo.