Trecho do livro DIÁRIO DE UM ANO RUIM

1: OPINIÕES FORTES 12 de setembro de 2005 - 31 de maio de 2006 01. Da origem do Estado Todo relato sobre as origens do Estado parte da premissa de que "nós" - não nós leitores, mas algum nós genérico, tão amplo a ponto de não excluir ninguém - participamos de seu nascimento. Mas o fato é que o único "nós" que nós conhecemos - nós mesmos e as pessoas próximas a nós - nascem dentro do Estado; e nossos antepassados também nasceram dentro do Estado até onde possamos situar. O Estado existe sempre antes de nós. (Até onde no passado conseguimos situar? No pensamento africano, o consenso é que depois de sete gerações não conseguimos mais distinguir entre história e mito.) Se, apesar das provas dos nossos sentidos, aceitamos a premissa de que nós ou nossos antepassados criaram o Estado, então temos de aceitar também suas implicações: que nós ou nossos antepassados poderíamos ter criado o Estado de alguma outra forma, se tivéssemos escolhido; e também, que poderíamos transformá-lo se assim decidíssemos coletivamente. Mas o fato é que, mesmo coletivamente, aqueles que estão "sob" o Estado, que "pertencem" ao Estado, acharão muito difícil mesmo mudar sua forma; eles - nós - são com certeza impotentes para aboli-lo. Meu primeiro vislumbre dela foi na lavanderia. Era o meio da manhã de um dia calmo de primavera e eu estava sentado, olhando a roupa girar, quando essa mulher jovem tão surpreendente entrou. Surpreendente porque a última coisa que eu esperava era uma aparição dessas; e também porque o vestido soltinho vermelho-tomate que ela usava era de uma surpreendente brevidade. Dificilmente estará em nosso poder mudar a forma do Estado e é impossível aboli-lo porque, diante dele, nós somos, precisamente, impotentes. No mito da fundação do Estado, conforme estabelecido por Thomas Hobbes, nossa descida à impotência foi voluntária: a fim de escapar da violência da guerra mutuamente mortal e sem fim (represália sobre represália, vingança sobre vingança, a vendetta), nós individualmente e separadamente cedemos ao Estado o direito de usar força física (direito é força, força é direito), conseqüentemente entrando no reino (na proteção) da lei. Aqueles que escolheram e escolhem ficar fora do bloco são foras-da-lei. A lei protege o cidadão respeitador das leis. Chega a proteger, até certo ponto, o cidadão que, sem negar a força da lei, mesmo assim usa a força contra o concidadão: a punição prescrita para o criminoso deve ser condigna do crime. Nem mesmo o soldado inimigo, na medida em que é representante de um Estado rival, deve ser morto se capturado. Mas não existe lei para proteger o fora-da-lei, o homem que pega em armas contra seu próprio Estado, isto é, o Estado que o considera como seu. O espetáculo de minha pessoa pode tê-la surpreendido também: um velho amassado num canto, que, à primeira vista, podia parecer um vagabundo de rua. Olá, ela disse, fria, e começou a cuidar de seus afazeres, que era esvaziar duas sacolas de lona branca numa máquina de carregar por cima, sacolas em que a roupa de baixo masculina parecia predominar. Fora do Estado (da comunidade, do statum civitatis), diz Hobbes, o indivíduo pode sentir que goza de perfeita liberdade, mas essa liberdade não lhe faz nenhum bem. Dentro do Estado, por outro lado, "é conservada por todo súdito tanta liberdade quanto lhe seja suficiente para viver bem e de maneira tranqüila e é tirado dos outros aquilo que é preciso para perdermos o medo deles... Fora [do governo civil] assistiremos ao domínio das paixões, da guerra, do medo, da miséria, da imundície, da solidão, da barbárie, da ignorância e da crueldade; nele, ao domínio da razão, da paz da segurança, das riquezas, da decência, da sociedade, da elegância, das ciências e da benevolência". O que o mito hobbesiano das origens não menciona é que a entrega de poder ao Estado é irreversível. Não está aberta a opção de mudarmos de idéia, de decidirmos que o monopólio do exercício da força mantido pelo Estado, codificado pela lei, não é o que queríamos afinal de contas, que preferiríamos retornar ao estado natural. Lindo dia, disse eu. É, disse ela, de costas para mim. Você é nova?, eu perguntei, querendo dizer nova nas Torres Sydenham, embora outros sentidos também fossem possíveis, É nova nesta terra?, por exemplo. Não, disse ela. Que problema, puxar conversa. Eu moro no térreo, eu disse. Eu posso fazer abordagens assim, que elas são tomadas por loquacidade. Um velho tão falante, ela dirá ao dono da camisa rosa com colarinho branco, foi difícil me livrar dele, a gente não quer ser rude. Eu moro no térreo desde 1995 e ainda não conheço todos os meus vizinhos. É, disse ela, e mais nada, querendo dizer É, estou ouvindo o que você diz e concordo, é uma tragédia não saber quem são seus vizinhos, mas é assim que é na cidade grande, e tenho mais o que fazer agora, então podemos deixar esta troca de gentilezas morrer de morte natural? Nascemos sujeitos. Desde o momento de nosso nascimento somos sujeitos. Uma marca dessa sujeição é a certidão de nascimento. O Estado aperfeiçoado detém e mantém o monopólio de certificar o nascimento. Ou você recebe (e leva consigo) uma certidão do Estado, adquirindo assim uma identidade que no curso da vida permite que o Estado o identifique e localize (vá em seu encalço), ou você segue em frente sem uma identidade e se condena a viver fora do Estado como um animal (animais não têm documentos de identificação). Não apenas lhe é vedado entrar no Estado sem identificação: aos olhos do Estado, você não morre enquanto não tiver uma certidão de óbito; e a certidão de óbito só lhe pode ser dada por um funcionário que possua ele (ela) próprio (a) uma certidão do Estado. O Estado procede com extremo rigor na certificação da morte - veja-se o envio de uma horda de cientistas forenses e burocratas para esquadrinhar, fotografar, cutucar e espetar a montanha de corpos humanos deixada pelo grande tsunami de dezembro de 2004 a fim de determinar suas identidades. Não se poupam despesas para garantir que o censo de sujeitos esteja completo e acurado. Se o cidadão vive ou morre não é preocupação do Estado. O que importa para o Estado e seus registros é se o cidadão está vivo ou morto.