Trecho do livro A CIDADE DAS PALAVRAS

1. A voz de Cassandra Vain was the chief 's and sage's pride They had no Poet and they dyd! In vain they schem'd, in vain they bled They had no Poet and are dead! Horácio, Odes IV, 9, tradução de Alexander Pope (1733) A linguagem é nosso denominador comum. Alfred Döblin, um dos grandes romancistas do século XX, certa vez respondeu a um questionário em que se indagava a razão que o levava a escrever: ele declarou que essa era uma pergunta que ele preferia não se fazer. "Não me interessa o livro concluído", disse, apenas o livro em que estava trabalhando, "o livro por vir". Para Döblin, escrever era um processo que nos levava do presente ao futuro, um fluxo constante de linguagem que permitia que as palavras dessem forma e nome a uma realidade sempre em processo de formação. "Em arte, de nada serve o método, mais vale a loucura", escreveu numa carta ao poeta italiano T. F. Marinetti depois que este propusera, no Figaro parisiense de 20 de fevereiro de 1909, a adoção de um "método futurista" no ofício poético, um método que reunisse "a ação, a violência e a inovação industrial". "Cuide do seu futurismo", Döblin instruiu o efusivo colega, "eu vou cuidar do meu döblinismo."Mas em que consiste exatamente o "döblinismo"? Alfred Döblin servira como oficial médico na Primeira Guerra Mundial, antes de instalar seu consultório em meio aos cortiços do leste de Berlim, lugar cuja identidade singular ele retratou em seu romance mais famoso, Berlin Alexanderplatz, de 1929. Era homem de contradições agudas: um judeu prussiano que se converteu no fim da vida ao catolicismo, um socialista radical que se opôs aos princípios da Revolução Russa, um psiquiatra que admirava Freud mas duvidava dos dogmas da psicanálise, um autor exuberante, cujas obras muitas vezes violavam suas próprias regras,mas que buscava nos livros tradicionais da Bíblia a mitologia fundamental de sua ficção. Seu tema era a identidade em transformação do século XX, mas seu herói por excelência era o Jó do Velho Testamento, sofredor mas não submisso, veemente mas não ruidoso, o exemplo rematado da vítima inocente. Em 1933, ameaçado, como tantos outros intelectuais, pela ascensão do regime nazista, fugiu com a família para a França e, sete anos mais tarde, após a ocupação de Paris, buscou refúgio nos Estados Unidos por uma rota perigosa, via Espanha e Portugal. Nos Estados Unidos, teve vários empregos, inclusive o de roteirista em Hollywood: conta-se que várias cenas de Mrs.Miniver são de sua autoria.Mas Döblin sentia-se terrivelmente isolado no exílio, incapaz de encontrar uma linguagem em comum com seus anfitriões. Quando um escritor que permanecera na Alemanha durante os anos do nazismo acusou os que haviam partido de terem desfrutado "as poltronas e espreguiçadeiras" da emigração, Döblin respondeu: "Fugir de país em país, perder tudo que tinha, viver como um mendigo, estando no vigor da idade,mas estando no exílio - foi essa a minha 'poltrona', a minha 'espreguiçadeira'". E, contudo,mesmo no isolamento do exílio, Döblin continuou a ser, em suas próprias palavras, "tomado pelo instinto de escrever". Depois da guerra, entre 1947 e 1956, Döblin escreveu alguns de seus livros mais poderosos, livros em que a própria linguagem é a protagonista: na saga Novembro de 1918, o abuso de poder durante o Terceiro Reich é moldado pelos abusos semânticos da República de Weimar; na Trilogia do Amazonas, o vocabulário barroco do século XVII faz eco às ameaças contemporâneas do imperialismo; e, com Hamlet ou A longa noite não chega ao fim, imagina-se uma sociedade futura parcialmente curada de suas chagas graças à linguagem crítica da psicanálise. É pena que a obra de Döblin, com a possível exceção de Berlin Alexanderplatz, tenha sido tão larga e injustamente esquecida. Seja como for, sua concepção da linguagem que tanto dá forma à realidade como a torna inteligível me parece conservar toda a validade. Para Döblin, a linguagem é um ser vivo, que não "reconta",mas "representa" o nosso passado: a linguagem "força a realidade a se manifestar, ela escava suas profundezas e traz à tona as situações fundamentais da condição humana, sejam elas grandiosas ou mesquinhas". A linguagem nos dá a ver por que, afinal, vivemos juntos. A maioria de nossas funções humanas é singular: não precisamos de ninguém para respirar, andar, comer ou dormir. Mas precisamos dos outros para falar, para que nos devolvam o que dissemos. A linguagem, declarou Döblin, é um modo de amar os outros. Quando surgiu em nossa pré-história remota, há cerca de 50 mil anos, a linguagem era um método de comunicação concebido como um instrumento baseado numa representação convencional do mundo capaz de garantir a um grupo de homens e mulheres a convicção, por incerta que fosse, de que seus pontos de referência eram os mesmos e de que suas expressões traduziam uma realidade percebida de modo semelhante. Segundo os paleontologistas, essa realidade do mundo evocada por meio da linguagem apresentava-se à nossa consciência como algo magicamente material: em nossos primórdios, as palavras localizavam-se tanto no tempo como no espaço, à maneira da água e das nuvens. O psicólogo americano Julian Jaynes certa vez sugeriu que, muito depois da emergência da linguagem, quando a escrita foi inventada, cerca de 5 mil anos atrás, a deci- fração de signos escritos produziu no cérebro humano uma percepção auditiva do texto, de tal modo que as palavras lidas ingressavam em nossa consciência como presenças físicas. Segundo Jaynes, "é possível que, no terceiro milênio a.C., a leitura tenha consistido em ouvir a escrita cuneiforme, isto é, antes numa audição alucinatória diante dos ideogramas, do que numa leitura visual de sílabas, à nossa maneira". A linguagem, como um dia soubemos, não se limita a nomear, ela também confere existência à realidade: ela é um ato de evocação por meio de palavras e por meio daquelas versões dos acontecimentos reais que chamamos de histórias. Para Döblin, as histórias eram um modo de registrar nossa experiência do mundo, de nós mesmos, dos outros. Quando Jó, em meio a seu sofrimento, recorda os dias em que a luz divina ainda brilhava sobre ele e declara que, com toda a sua bondade, "era olhos para o cego, era pés para o coxo", a memória recontada não lhe basta: Jó gostaria de registrar suas experiências na forma de uma história, de um testemunho de sua fé. "Oxalá minhas palavras fossem escritas", ele se lamenta, "e fossem gravadas num livro." Como Jó e o autor do Livro de Jó bem sabiam, as histórias concentram nosso saber e lhe dão forma narrativa, de modo que, por obra das nuanças do tom, do estilo e da peripécia, tentemos não esquecer o que aprendemos. As histórias são nossa memória, as bibliotecas são os depósitos dessa memória, e a leitura é o ofício por meio do qual podemos recriar essa memória, recitando-a e glosando-a, traduzindo-a para nossa própria experiência, permitindo-nos construir sobre os alicerces do que as gerações passadas quiseram preservar. Em meados do século XVIII,o rabino Uri de Strelisk indagou-se: "Davi era um homem de muitos dotes, capaz de compor salmos. E eu? O que eu sei fazer?"; e respondeu assim: "Posso lê-los". Ler é uma operação da memória por meio da qual as histórias nos permitem desfrutar da experiência passada e alheia como se fosse a nossa própria. Sob certas condições, as histórias podem vir em nosso socorro. Elas podem curar, iluminar, indicar o caminho. Sobretudo, podem nos recordar nossa condição, romper a aparência superficial das coisas, dar a ver as correntezas e abismos subjacentes. As histórias podem alimentar nossa mente, levando-nos talvez não ao conhecimento de quem somos, mas ao menos à consciência de que existimos - uma consciência essencial, que se desenvolve pelo confronto com a voz alheia. Se ser é ser percebido, como notou o bispo Berkeley, ilustre contemporâneo do rabino Uri, então saber que existimos supõe o reconhecimento dos outros que percebemos e que nos percebem. Poucos métodos são mais adequados a essa tarefa de percepção mútua do que a narração de histórias. Sonhar histórias, contar histórias, redigir histórias, ler histórias são artes complementares que dão voz a nossa percepção da realidade e podem nos servir como conhecimento vicário, transmissão de memórias, instrução ou advertência. Na antiga língua anglo-saxã, o termo para "poeta" era maker, "fazedor" ou "artífice", palavra que reúne a acepção de entrelaçar palavras à de construir o mundo material. A definição tem raízes bíblicas. Conforme o segundo capítulo do Livro do Gênese, depois de criarAdão a partir do pó, Deus criou as aves do ar e os animais do campo e trouxe-os até Adão, para ver como ele os chamaria, e "cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse". O dom de nomear é ambíguo. Adão podia inventar os nomes que quisesse ou devia saber o nome de cada criatura e pronunciá-los alto e bom som, como uma criança chamando um cachorro ou um passarinho pela primeira vez? Mais tarde, os comentaristas talmúdicos fundiram as duas hipóteses numa única. Afirmavam que Adão foi o inventor da escrita e que, por meio dessa arte, inventou os nomes que proferiu, não segundo seu capricho, mas conforme a natureza de cada criatura, à maneira dos poetas, que encontram a palavra certa para o que desejam descrever. Segundo esses comentadores, tal era o dom divino da palavra, que Adão não apenas confirmou a existência dos animais ao nomeá-los como também foi o primeiro a dar nome às sociedades humanas. "Deus mostrou toda a terra a Adão", lê-se numa antiga glosa bíblica, "e Adão designou quais lugares seriam povoados mais tarde e quais lugares continuariam ermos." A essa antiga reflexão, Döblin acrescentou seu próprio comentário: "Adão é a soma de todos os seres humanos movendo-se e desdobrando-se no tempo". As palavras de Adão, nossas palavras, conferem-nos um lugar no tempo e no espaço. "Volta e meia", escreveu o poeta Eric Ormsby, "tenho a sensação de que as palavras levam uma vida toda sua, apartada da nossa, e que, quando falamos ou escrevemos, especialmente nas horas de emoção forte, fazemos pouco mais do que pegar carona numa sílaba obsequiosa ou numa expressão tolerante." As palavras não apenas nos conferem realidade; elas podem ainda defendê-la para nós. Na Idade Média, acreditava-se que os poetas irlandeses eram capazes de proteger os campos de trigo e cevada "rimando os ratos até a morte", isto é, recitando versos pelos campos em que havia ninhos de roedores. No século XVI, Tul-si Das, o maior poeta hindi, autor do célebre Ramacaritamanasa, versão do Ramayana que incluía a epopéia de Hanuman e seu exército de macacos, foi condenado pelo rei a ser trancafiado numa torre de pedra. Sozinho em sua cela, Tulsi Das recitou seu poema em voz alta, e a essa récita acudiram Hanuman e seu exército de macacos, para atacar a torre e libertar seu criador. Em 1940, dezesseis anos depois da morte de Kafka, Milena, a mulher que ele tanto amara, foi detida pelos nazistas e enviada a um campo de concentração. De repente, a vida parecia ter se convertido em seu contrário: não na morte, que é sua conclusão, mas num estado desvairado e absurdo de sofrimento brutal, que não parecia motivado por uma falha discernível nem justificado por uma meta visível. Para tentar sobreviver a esse pesadelo, uma amiga de Milena inventou um método: ela recorreria aos livros que lera muito tempo antes e que, inconscientemente, conservara na memória. Entre os textos memorizados, havia um de Maksim Górki: "Nasce um homem". A história conta como o narrador, um rapazola que certo dia passeava à beira do mar Negro, foi ao encontro de uma mulher que gritava de dor. A mulher está grávida; fugiu à fome de seu lugarejo natal e agora, sozinha e aterrorizada, está prestes a dar à luz. Apesar de seus protestos, o rapaz lhe presta auxílio: banha o recém-nascido nas águas do mar, acende uma fogueira e prepara um pouco de chá. No fim da história, o rapaz e a jovem mãe seguem um grupo de camponeses: com um dos braços, o rapaz sustenta a moça; com o outro, carrega o bebê. A história de Górki tornou-se um santuário para a amiga de Milena, um pequeno refúgio para o qual podia se retirar do horror cotidiano. A história não deu sentido a seu sofrimento, não o explicou nem justificou; nem sequer lhe inspirou esperanças futuras. A história simplesmente fazia as vezes de ponto de equilíbrio, levando-a a recordar a luz em tempos de catástrofe sombria, ajudando-a a sobreviver. Tal é, creio eu, o poder das histórias. [...]