Boris Pasternak, um habitante dos céus

13/11/2017

Por Daniel Aarão Reis

A publicação da obra maior, em prosa, de Boris Pasternak, em novembro de 1957, suscitou, no contexto da Guerra Fria, um verdadeiro vendaval de polêmicas. Todos os contendores elaboraram recuperações distorcidas e histórias retrospectivas. Entretanto, a vida e a trajetória do autor russo foram mais complexas, permeadas de ambivalências e ambiguidades que nada o deslustram, mas que cumpre elucidar.

Pasternak nasceu em 10 de fevereiro de 1890, filho de uma pianista e de um pintor retratista, Rosa Kaufan e Leonid Pasternak.

Educado numa família culta, teve uma formação clássica: literatura, música e línguas estrangeiras. Embora a família se mantivesse distanciada da política, aos 15 anos, ainda adolescente, assistiu à revolução de 1905, quando levou uma chibatada numa manifestação.

Fez estudos universitários em Direito e Filosofia, destacando-se suas leituras de Bergson, Husserl, dos neo-kantianos, da Bíblia e do pensamento cristão.

Foi com essa bagagem que estreou como poeta, ganhando notoriedade antes mesmo da revolução, como poeta lírico simbolista, na linhagem de Alexandre Blok e de Andrei Biely.

Em 1917, no fragor do ano revolucionário, quando "o quotidiano se tornava história", empolgado pela efervescência ambiente, já que até "as árvores, os caminhos e as estrelas participavam dos comícios", escreveu Minha irmã, a vida, obra celebrada pelos contemporâneos. Marcado pelos valores da filosofia idealista e do cristianismo, Pasternak aproximava-se da revolução vendo-a como transição necessária, de "um mundo de tormentos" para um "mundo harmonioso", nas palavras de um estudioso de sua obra (M. Aucouturier). O "mundo novo" que se descortinava assinalaria o advento da Justiça, validando-se em seu nome os sacrifícios que fossem necessários e até mesmo eventuais crueldades. 

Sua família disso não estava convencida. Em 1921, como muitos outros intelectuais, os pais e duas filhas - irmãs de Pasternak - partiram para o exílio.

Ao longo dos anos 1920, no quadro da Nova Política Econômica/NEP, de relativa abertura no campo das artes e da cultura, o Poeta teria trajetória controvertida, celebrado e criticado por "brancos" e "vermelhos". Ao se referir às provações provocadas pela Revolução - "nós somos os filhos dos anos terríveis da Rússia" - emitia sinais que pareciam contraditórios aos radicais de ambos os lados. Em seu poema a Lênin, figurado como determinado a tudo para conseguir seus objetivos: "ele só tinha a história como amiga", alguns viram em supostos elogios notas críticas, dissonantes.

Em certos momentos, alguns de seus heróis pareciam deslocados, incapazes de se adaptarem ao mundo novo que emergia. Quanto aos revolucionários, assumiam, às vezes, características despóticas.

Entre 1925-1927, quando se comemoraram na União Soviética os 20 anos da revolução de 1905, dois poemas, "1905" e "O tenente da marinha Schmidt", mostraram um claro viés romântico revolucionário. Entretanto, os membros da Associação Russa de Escritores Proletários, a RAPP, entre outros, continuavam criticando Pasternak como "individualista burguês", incapaz de se situar - e de se integrar - numa sociedade proletária.

Como outros simpatizantes da revolução, como eram chamados os intelectuais não filiados ao partido comunista nem militantes políticos, o Poeta abordou os anos 1930 com uma visão cada vez mais crítica da revolução e do socialismo soviético. Defendia o primado da intuição e a independência da arte face ao poder: "a arte precisa de um salvo-conduto". Entretanto, a violência revolucionária parecia-lhe, e a muitos outros, como necessária para dar fim a um mundo injusto e cruel.

A revolução pelo alto, empreendida desde fins dos anos 1920, sob liderança de Stálin, representou para ele um desabamento de referências. É verdade que a dissolução das organizações de escritores "proletários" lhe daria uma trégua. Na nova União dos Escritores, fundada em 1934, chegou mesmo a assumir postos de direção, viajando ao exterior, em 1935, representando a cultura soviética. Por outro lado, chegou a interceder, mais de uma vez, diretamente junto a Stálin, para salvar dos campos de concentração intelectuais renomados, como foi o caso de O. Mandelstam e de N. Punin. Foi de Stálin, aliás, que ganharia o apelido de "habitante das nuvens", o que o salvou da prisão, solicitada pela polícia política.

No contexto do acirramento dos expurgos, na segunda metade dos anos 1930, refugiou-se nas traduções, tornando-se um conhecido - e celebrado - tradutor de Shakespeare e de Goethe. Permaneciam, porém, ambivalências, quanto ao fato de ter elogiado a Constituição de 1936 e assinado – contra sua vontade - um manifesto em apoio ao assassinato de M. Tukhatchevski e I. Iakir, oficiais generais do Exército Vermelho.

A explosão da Segunda Guerra Mundial foi, para ele, como para muitos outros, uma libertação, ensejando a possibilidade de trabalhar para a "pátria socialista em perigo".    

Foi depois do fim da guerra, em 1946, que se lançou na elaboração de Doutor Jivago. Sob crescentes ataques, insultado como "reacionário", como "emigrado interior" e "homem atrasado", mesmo entrevendo o retorno de tempos sombrios, o Poeta manteve-se sereno, dedicado à obra de sua vida - uma autobiografia romanceada. 

Documentos posteriormente publicados evidenciam que chegaram a ser cogitadas contra ele medidas extremas, como a privação da cidadania soviética e o exílio. Salvaram-no duas mortes naturais: a de A. Jdanov, ideólogo e chefe dos comunistas, em agosto de 1948; e a do próprio tirano, Stálin, em março de 1953. 

No quadro do "degelo" que se seguiu, o Poeta sentiu-se em condições de propor a publicação de sua obra em começos de 1956. Mas em longa carta a ele dirigida, uma comissão de escritores o fez ver que era tarefa impossível, pois o romance questionava valores considerados essenciais pela Ordem vigente. Segundo eles, não se tratava de propor emendas. Em seu conjunto, Pasternak punha em questão a própria revolução, seus paradigmas e  objetivos, as referências básicas da militância comunista. Enquanto a revolução era apresentada como feita por "fanáticos" insensíveis, Jivago, o herói principal, metáfora do próprio Pasternak, aparecia como um homem pronto ao sacrífico, ao dever. Condenado como "orgulhoso e egocêntrico", "satanicamente arrogante", a recusa inapelável condenava o autor ao silêncio. 

Não contavam com a decisão do Poeta - inaudita então - de contrabandear a obra para o exterior, onde foi entregue ao editor comunista italiano G. Feltrinelli. Todas as pressões do mundo, acionadas, não foram capazes de impedir a publicação do romance, primeiro na Itália, em novembro de 1957. Pouco depois, em Paris, Londres e Nova York. 

Armou-se o escândalo internacional. Instrumentalizaram-se as consciências em toda a parte. O livro tornou-se rapidamente uma arma na Guerra Fria. No meio do redemoinho, em outubro de 1958, Pasternak foi agraciado com o Prêmio Nobel. Na União Soviética, cobriam-no de insultos. Na Europa ocidental e nos Eestados Unidos, era celebrado como vítima heróica. O Poeta, acusado de "porco",  "fascista" e de "emigrado interno branco", acabou sendo excluído da União dos Escritores. 

Pressionado e humilhado, foi salvo por um câncer no pulmão que o matou em 30 de maio de 1960. 

Uma primeira edição de suas Obras Completas apareceu nos Estados Unidos no ano seguinte. Mas o romance só seria publicado na União Soviética em 1988. Foi preciso esperar seu centenário, em 1990, para que suas obras, em cinco volumes, fossem publicadas na terra onde nascera. 

Numa longa trajetória, Pasternak terá ido da aceitação, ora eufórica, ora reservada, da revolução,  a uma rejeição definida, embora não sectária, dos ideais revolucionários. Fixou-se, no entanto, na memória das gentes, como personificação da luta multissecular do artista contra o Estado. 

Nas palavras de sua amiga, crítica e admiradora, Jacqueline de Proyart, "onde suas palavras chegaram, germinaram no coração dos homens, tornando-se para todos, lugar de esperança, nó de memória e novo dever".  

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Daniel Aarão Reis é professor de história contemporânea da UFF e pesquisador do CNPq. Especialista em história das revoluções socialistas no século XX e das esquerdas no Brasil, é autor de diversos livros e artigos de referência, entre os quais Ditadura militar, esquerdas e sociedade (2000) e a coletânea A ditadura que mudou o Brasil (2014). Pela Companhia das Letras, lançou a biografia Luís Carlos Prestes: Um revolucionário entre dois mundos (2014), Manifestos vermelhos e outros textos históricos da Revolução Russa (2017) e A revolução que mudou o mundo (2017).

 

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