A arte de não se engajar -- ou no meio do caminho tem uma concessão

04/05/2016

Por Luiz Schwarcz

luiz16

Ilustração: Alceu Chiesorin Nunes

livre42Se o engajamento dos escritores transformando a literatura em instrumento político imediatista gera danos ao trabalho artístico -- como comentei em meu post chamado Literatura sem missão —, os editores que procuram usar suas editoras como partidos políticos causam efeito igualmente destrutivo sobre a linha editorial de suas empresas. Assim como a literatura sofre quando subjugada a um propósito de curto prazo, uma “casa de edições” que abrigue só uma opinião também tem sua linha empobrecida.

Pautar edições como uma linha monocórdica de argumentos faz com que as editoras se assemelhem a muitos compositores minimalistas contemporâneos -- que são minimalistas por terem pouco a dizer com sua música.

Houve um tempo em que as editoras que atuavam nas áreas de ciências sociais no Brasil constituíam um polo importante de luta pela liberdade de expressão -- naquela época, tal batalha confundia-se diretamente com a luta contra o regime militar. Nesse contexto, a atuação política direta se justificava, pois a literatura e a cultura precisam sempre de liberdade para existirem com plenitude.

A luta política era um imperativo para que o mercado editorial pudesse existir, e a luta campal na esfera das ideias se travava também no sentido de publicar o que desafiava a lei, já que os jornais trabalhavam com um censor dentro das redações, enquanto que as editoras não. Era preciso abrir o campo para o pensamento de esquerda, proscrito pelo regime.

esmo assim, no caso da literatura, os bons livros nunca surgem para atender a uma atitude política dos editores, não podem ser pensados como manifestos. A literatura não combina com os manuais, morre ao ser escrita com visão imediatista. Assim, as publicações de não ficção de editoras como Civilização Brasileira, Zahar, Brasiliense, Paz e Terra eram majoritariamente de esquerda, mas era lá que se encontrava boa parte do pensamento vivo brasileiro.

A Companhia das Letras nasceu em 1986, com o regime democrático brasileiro engatinhando e a presidência ocupada por um civil. O presidente em exercício era José Sarney, cujo destino de vice-presidente e representante das forças do passado, num governo ainda eleito indiretamente, foi transformado devido à doença fatal de Tancredo Neves, que morreu antes de assumir o posto. Nesse sentido, quando a Companhia surgiu, a luta pela liberdade de expressão estava parcialmente ganha e, com as portas já abertas pelos editores pioneiros acima citados, foi mais fácil à jovem editora se estabelecer, já num ambiente de liberdade civil e política asseguradas.

Assim, foi natural equilibrar as edições da Companhia das Letras, descolá-las de minhas opções políticas pessoais e me apresentar ideologicamente a favor dos direitos individuais quando necessário. Com a liberdade recém-conquistada, me senti à vontade para editar autores de todos os matizes ideológicos. Com grande gosto publiquei livros de pensadores chamados “liberais” e também dos considerados “conservadores”, o que não era tão comum na época. Parece uma estupidez, e talvez de fato tenha sido, mas poucos editavam o pensamento considerado de “direita” ou “não progressista”. O fato de esse tipo de consideração até soar estranho hoje em dia é tanto um bom sinal dos tempos em que vivemos como um reforço para minha argumentação.

O mercado de ideias tinha, então, sua principal influência na França -- no pensamento marxista nas ciências sociais, e nas ideias de Lacan e de psicólogos libertários na psicanálise. Com isso, também os livros de não ficção tinham a pior influência literária possível. Sem entrar no mérito do conteúdo exposto nesses trabalhos, eles eram, em minha opinião, insuportavelmente chatos e contraditórios em relação aos seus ideais. Advogavam uma posição política democrática, mas eram escritos por poucos e para poucos. Foi tranquila, portanto, a minha opção pela não ficção anglo-saxã, mais eclética politicamente e muito mais bem escrita. Para uma editora que se pretendia literária, até mesmo em livros de não ficção, afastar-se da França foi o caminho acertado para tornar a alta cultura mais acessível ao público leitor brasileiro. É claro que essas generalizações são complicadas e há sempre exceções, como alguns historiadores inovadores franceses que incluíram a narrativa cotidiana em seu repertório, ou mesmo filósofos como Michel Foucault, um estilista da língua, bastante repetitivo, até porque procurava reescrever seus exemplos, cada vez em formato literário mais elaborado e diverso. No entanto os pensadores anglo-saxões como, Edmund Wilson, Christopher Hill, George Steiner e Raymond Williams, entre tantos outros, em minha opinião, davam aulas de literatura ao escrever não ficção. Não foi uma escolha política -- e sim literária, ou até mercadológica —, mas de alguma forma até poderia ter sido. Pois a literatura bem exercida pode até democratizar a leitura e, na minha opinião, essa era uma boa lição para o pensamento libertário daqueles tempos: ao procurar expor ideias de forma mais clara e límpida, mais artística talvez, o escritor naturalmente consegue alcançar um maior número de leitores. Para os que me acusaram de elitista ao criar a Companhia -- e houve um importante editor que o fez —, eu respondi com livros bem escritos.

A luta mais certeira, da qual nós editores não podemos escapar, é a da liberdade de expressão, associada eventualmente à defesa da qualidade literária. Nossa causa maior e mais defensável é a de abrir nossas casas para todos os tipos de autores e promover um debate o mais amplo possível, para que a criação artística e o debate intelectual tenham liberdade e multiplicidade de opiniões. Mas se muitos pensam que a censura governamental ou o cerceamento da criatividade artística são típicos do Brasil, ou de países sem tradição democrática consolidada, é bom saber que a história do mundo editorial está muito mais recheada de atos de proibição -- e do consequente engajamento fundamental dos editores na luta pela liberdade artística e de pensamento -- do que imaginamos.

No post em que falei sobre Max Perkins mencionei o quanto esse editor trabalhou como negociador frente a seus autores, no sentido de evitar a censura interna da empresa onde trabalhava, ou o banimento moral e jurídico imposto a livros no começo do século XX. Teria Perkins cerceado a liberdade de Fitzgerald ou de Hemingway ao realizar tal negociação? A questão é cabeluda e pode gerar discussões extensas. Usando um exemplo paralelo, fora da esfera literária propriamente dita, as artimanhas de artistas como Dimitri Shostakovich frente à censura na União Soviética sempre foram mais complexas do que podem parecer à primeira vista. Há críticas violentas ao compositor, por ter se subjugado à pressão do estado soviético, mas poucos daqueles que o criticaram estiveram na pele de quem precisa criar e viver de sua arte. Muitos estudos apontam que Shostakovich, mesmo tendo publicamente representado o seu país, sido admoestado por isso e feito inúmeras e humilhantes autocríticas, inseriu em sua música, através de linguagem artística sofisticada, ironias e contestações ao realismo socialista. É fácil criar vilões ou heróis, mas o melhor mesmo é entender os caminhos possíveis de um artista, de um escritor, ou até mesmo de um editor, na luta pela liberdade de expressão. No meio do caminho tem uma concessão, tem uma concessão no meio do caminho.

P.s.: Voltarei ao tema desta coluna na próxima semana.

 

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Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Escreve pra o blog uma coluna semanal sobre livros e o trabalho editorial.

Luiz Schwarcz

Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.

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