Por Mariana Desimone e Larissa Gandolfo
Em diferentes tempos o ser humano buscou, olhando para as estrelas ou para os efeitos da bomba atômica, uma definição para si mesmo. Quem somos nós? Essa seja talvez a pergunta que nos acompanha desde que a razão é uma realidade para nossa espécie. E na tentativa de responder essa pergunta, nós, humanos em construção, aprendemos a contar histórias.
E foi contando histórias que percebemos que aquilo que somos e aquilo que desejamos ser estão ligados por um laço constituído de milhares de narrativas que nos antecederam e, ao fazer nossa própria caminhada, tecemos nós também uma nova narrativa.
Contar histórias não é apenas um ato de entretenimento ou de afeto pelas novas gerações: é possibilitar a humanidade em cada criança, uma vez que a convidamos com nossas palavras ao convívio com o imaginário de nosso tempo, ao convívio com as virtudes que enaltecemos e com os estereótipos que aprovamos.
Ilustração Marcelo Tolentino
Dada a importância da narração de histórias para as crianças, precisamos agora refletir: o que contam nossas histórias? Quem são nossos personagens? Que vida construíram? Quais eram suas virtudes? Onde e como erraram? Como consertaram seus erros? Como enfrentaram os revezes da vida?
Essas e tantas outras questões nos ajudam a entender que tipo de história apresentamos e que tipo de arquétipos aprovamos e esperamos, para elas e para nós mesmos.
Contar uma história para uma criança é sempre um movimento dialético com nossa própria alma: somos nós aquilo que contamos? Somos um exemplo de herói, de heroína? Até que ponto assumimos nossa própria jornada na vida?
Ao refletirmos sobre os personagens e sobre como nos relacionamos com o imaginário de nossa época, não podemos ignorar o fato de que, apesar de toda nossa espécie aprender com as histórias que nos apresentam, as histórias não são as mesmas para toda a espécie.
O tempo e as circunstâncias nos dividiram, e agora, meninos e meninas, homens e mulheres, recebem diferentes histórias para sonhar, diferentes personagens para dialogar com nossas almas. E, assim, apresentamos dois modelos muito distintos de seres humanos e virtudes. O guerreiro e a princesa são as imagens mais recorrentes no universo das histórias apresentadas às crianças.
Às vezes, disfarçado de super-herói; às vezes, disfarçado de grande detetive, damos a violência, a força e a inteligência ao arquétipo masculino. E para as meninas? A delicadeza, a paciência e a passividade. A princesa dos contos de fada sabe sofrer e suportar os adágios da madrasta, sabe como realizar as tarefas domésticas, sabe esperar um grande amor que a salva de terríveis mazelas físicas e emocionais. Ela é o emblema da beleza e da virtude.
Uma vítima em potencial. Não só da vida, que é impiedosa com todos, mas principalmente daqueles que aprenderam que pela força e pela violência alcançamos os objetivos.
Está pronta a receita para um conto de fadas que termina assim:
- A cada onze minutos uma mulher sofre uma agressão sexual no Brasil (dado da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
- A média do primeiro assédio se dá entre meninas de 9 anos de idade. (levantamento da ONG Think Olga, fruto da campanha #Primeiroassédio)
- Violência e passividade fazem com que em média apenas 35% dos casos de estupro sejam notificados às autoridades (dado da ONG FBSP)
E todos e todas envolvidos nesse terrível quadro ouviram alguma história que os formou, que inconscientemente os colocaram na posição de agressores e agredidas. E por isso, mais do que nunca, precisamos pensar: que histórias estamos contando? De que personagens dispomos para mudar aquilo que apresentamos e esperamos da nossa espécie?
Uma reflexão superficial sobre os contos tradicionais de princesas pode nos levar à conclusão de que essa imagem não reflete mais a condição feminina em nosso tempo. E afirmar esse modelo é colocar nossas meninas em risco.
Não há príncipes para salvá-las. Nunca houve. É preciso que as meninas tomem em suas mãos sua própria vida e história para entenderem que a liberdade é uma condição da espécie - e não um privilégio natural dos que nasceram meninos.
Mas então, o que contar? Que personagens apresentar? Como construir estereótipos menos passivos e violentos? Procurar na literatura esses personagens é uma tarefa urgente daqueles que se empenham na educação de meninos e meninas.
Os personagens e suas histórias são, e sempre serão, em todos os tempos e culturas, as utopias de nossa personalidade. Mas, para além desses que colocamos à frente, como heróis e heroínas que abriram a trilha no desconhecido e se lançaram em busca da sua própria identidade, sejamos nós também exemplos de pessoas que se aventuraram na incrível jornada do autoconhecimento, que enfrentaram seus dragões e demônios e que, ainda que sofrendo, venceram batalhas, encontraram o amor e fizeram de si mesmo um projeto que servisse de exemplo aos que nos observam.
E ao final da história, quando fecharmos o livro de nossa vida, ao ouvir uma criança pedir “conta só mais uma” diremos: “Agora é a sua vez de contar”.
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A jornalista Mariana Desimone e a filósofa Larissa Gandolfo realizaram no ano passado diversas oficinas de Desprincesamento, inspirada na Escola de Desprincesamento, criada em Iquique, no Chile. Ofereceram a meninas de 9 a 15 anos aulas de feminismo e autodefesa e workshops sobre autoimagem e combate ao assédio.