Como ler em voz alta para uma criança?

26/02/2018

 

Quando fecha os olhos, a espanhola Lara Meana tem como primeira lembrança literária a voz de sua avó, que todas as sextas-feiras a levava para a sua casa, em uma pequena aldeia do país. O percurso era longo, mas acompanhado sempre de histórias sobre lobos e raposas, fantasmas e heróis. A memória ficou tão forte que Lara decidiu proporcionar esse contato com a palavra para outras crianças. Depois de trabalhar durante seis anos na Biblioteca Municipal de Santa Eulalia de Oscos, decidiu abrir a sua própria livraria em 2007, na cidade de Gijón, na Espanha. Intitulada El Bosque de la Maga Colibrí, é especializada em literatura infantil e juvenil.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Hoje, Lara coordena projetos de promoção da leitura e de formação de mediadores pela equipe TresBrujas, desenvolvendo materiais como o guia Rutas de Lectura. Com o incentivo à leitura, surgiu a vontade de escrever e, em 2013, chegou a publicar o livro-álbum Maya e Selou (editora SM Brasil). Acredita com veemência no poder da palavra escrita -- e falada.

“Essa voz, que nos envolve com cantos e contos, que nos narra, que nos lê, é a que nos conduz logo aos livros, que nos conquista, que nos engancha nas histórias, que nos faz leitores. Nos proporciona o caminho e a companhia durante o caminho”, diz Lara, que falará mais desse tema na oficina Eu leio, você lê, nós lemos, no dia 13 de março, durante o Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura na Primeira Infância, realizado no Sesc Pinheiros, com curadoria do Instituto Emília e da Comunidade Educativa Cedac.

A leitura compartilhada "é um ato de amor", ela define. "Rompe essa desigualdade adulto-criança que está instaurada e nos permite nos comunicar de outra forma." Ela vê a sociedade atual pouco interessada em uma "comunicação real", que requer tempo, pausa, escuta. A comunicação que se sobrepõe é a funcional: "Faça isso, termine aquilo, temos que ir ali, não se comporte assim". "Há pouco espaço para contarmos o que temos feito, como temos nos sentido, para analisar o que aconteceu ao nosso redor. A literatura nos oferece esse tempo e esse espaço. Um momento para compartilhar sem que tenha que servir para nada."

E é isso que ela recomenda a pais e professores: momentos de leitura em voz alta que vão além do funcional, sem tarefas posteriores. Segundo a especialista, essas situações devem ocorrer durante todas as etapas educativas, não apenas nas iniciais. "Assim, atuaremos como modelos, e eles aprenderão e ler em voz alta nos imitando, de forma natural e voluntária, sem forçar." O maior dos conselhos aos adultos, entretanto, é bastante simples e poderoso: sugere que escutem as crianças, “pois logo se darão conta de que, em muitas ocasiões, são capazes de ler de uma forma mais rica do que nós, adultos".

Leia abaixo a conversa que tivemos com a livreira e formadora de mediadores de leitura Lara Meana.

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Na descrição do seu curso, está escrito que "escutar desperta nosso desejo de sermos capazes de aceder aos livros por nós mesmos". Qual é a magia da leitura em voz alta? Pela sua experiência, o que ela é capaz de proporcionar na criança?
 

Lara Meana – Se fecho meus olhos e tento voltar à minha primeira lembrança literária, não encontro um livro, mas a voz da minha avó. Todas as sextas-feiras ela vinha nos buscar na cidade, eu e o meu irmão, para nos levar até a aldeia onde ela morava. Depois de uma pequena viagem de ônibus, caminhávamos na escuridão, às vezes debaixo de frio e de chuva, o que parecia para nós um trajeto interminável. No entanto, a lembrança mais forte que tenho é da sua voz acompanhando os nossos passos, nos contando histórias de lobos e raposas, de fantasmas, de pequenos heróis que ela inventava ou que se lembrava, que a mãe dela lhe contava quando criança. Essa voz, que nos envolve com cantos e contos, que nos narra, que nos lê, é a que nos conduz logo aos livros, que nos conquista, que nos engancha nas histórias, que nos faz leitores. Nos proporciona o caminho e a companhia durante o caminho. Da leitura compartilhada surge também a cumplicidade: esses pequenos códigos comuns que só entendem aqueles que conhecem o conto.
 

Na fase inicial da vida, a linguagem oral é muito mais difundida no cotidiano do que a escrita. Será por isso que por ela é mais fácil alcançar uma eficiente comunicação, no sentido original da palavra, de algo em comum que passa a ser compartilhado?
 

Lara Meana – Somos seres humanos e precisamos nomear o mundo para explicá-lo, para compreendê-lo, para compartilhá-lo. A linguagem é fundamental para nós como espécie, não só para uma comunicação funcional, mas também para a comunicação emocional e literária. Recebemos os bebês com palavras quando eles nascem, mas também com poemas, com canções de ninar, com músicas que aprendemos na nossa infância e que se transmitem de geração a geração e com outras que inventamos para os nossos filhos. O literário está aí, nos habita desde o começo, e é o que buscamos mais adiante nos livros, na escrita, nas imagens, que são outros veículos de expressão e de comunicação.

E o que há para ser compartilhado na leitura literária?
 

Lara Meana – Há ritmo, rima e beleza. Há histórias de seres malvados e terríveis, mas também de heróis e heroínas que parecem insignificantes e têm todos os recursos para sobreviver. Há humor e risadas. Aventuras e desventuras. Amor, inveja, ganância, alegria e tristeza, medo e valentia, vida e morte. Há modelos, mas também de transgressão. Mas sobretudo há uma oportunidade de compartilhar todas essas vivências, de conversar, de tentar responder as grandes perguntas que propõe a literatura, que finalmente se parecem muito com as que propõe a vida.


Você também diz que a leitura compartilhada é um momento de afeto. Ele é essencial nesse momento? Como ele colabora para a construção de sentido daquele ato?

 

Lara Meana – A leitura compartilhada em si mesma é um ato de amor. Ler para o outro em voz alta, de forma gratuita – sem pedir nada em troca – é um presente e, portanto, um símbolo de afeto. Em família é mais evidente. Mas também a que é em aula ou em qualquer outro contexto educativo: rompe essa desigualdade adulto-criança que está instaurada e nos permite nos comunicar de outra forma. Há tantas interpretações como leitores, não é o adulto que sabe ler melhor necessariamente, e é um momento de grande riqueza para todos os envolvidos, porque estamos aprendendo a ler de novo, a olhar para a literatura de outro ponto de vista. Ao mesmo tempo, também cria vínculos afetivos, pois a criança se sente escutada e valorizada, tem algo a contribuir e isso lhe permite também ir construindo a sua identidade. E a nós, adultos, também a nossa.

 

A voz é um elemento essencial nesse momento de leitura e responsável por grande parte da expressividade do contador daquela história. Poderia explicar como os elementos de entonação, timbre e tonalidade colaboram para o sentido, ou até a comunicação efetiva de uma história?

 

Lara Meana – A voz é importante, claro, pois é junto com o corpo uma ferramenta de comunicação. Ambos vão se soltando com a prática. Devo reconhecer que, quando comecei a ler junto com as crianças na biblioteca em que trabalhava, eu me sentia tão nua que me escondia atrás do livro. Pouco a pouco fui perdendo o medo de me expor, e inclusive agora, às vezes, consigo vencer toda a minha timidez e me lançar corporalmente. Mas entendo que é um processo, o mesmo que aprender a modular a voz. Podem ser feitos exercícios, mas para mim o importante é tentar transmitir a emoção que a história tem para você, encontrar a sua maneira natural de ler ou de contar, que nem sempre precisa ser muito teatral. Acredito que as crianças detectam imediatamente a impostura, e por isso prefiro ser fiel a mim mesma e livrar as minhas batalhas contra a vergonha. Ler para os meus filhos também ajudou bastante. Para as crianças, os membros da família, a sua professora ou qualquer figura de afeto vai ser melhor contador de histórias que qualquer narrador oral profissional. Assim, mesmo que eu acredite que há ferramentas úteis para aprender a contar melhor as histórias, o fundamental é relaxar, se deixar levar e se lançar à leitura ou à narração.

No material Rutas de Lectura, que você ajudou a elaborar, há muito a menção à comunicação com a criança. Você acha que nós, adultos, temos nos comunicado bem com os pequenos? O que é necessário para estabelecer esse vínculo?
 

Lara Meana – Acredito que vivemos em uma sociedade vertiginosa que cada vez está menos interessada na comunicação real, que requer tempo, pausa, respeito, consciência e capacidade de escuta. Nós, adultos, corremos de um lado para o outro tentando completar tarefas que são urgentes e, às vezes, importantes, e cada vez será mais difícil encontrar um momento para sentar e conversar tranquilamente com as crianças. Nossa comunicação com elas está dirigida fundamentalmente ao funcional: faça isso, termine aquilo, temos que ir ali, não se comporte assim. Há pouco espaço para contarmos o que temos feito, como temos nos sentido, para analisar o que aconteceu ao nosso redor. A literatura nos oferece esse tempo e esse espaço. Um momento para compartilhar sem que tenha que servir para nada. E das histórias interessantes, ou dos dados, porque nem todos os livros são ficcionais, surge a comunicação espontânea, a análise, as anedotas vividas, as perguntas, as tentativas que encontrar respostas. Na escola, a comunicação principalmente se limita a quando o adulto pergunta algo que já sabe para comprovar se a criança adquiriu esse conhecimento ou habilidade. Para mim, o fundamental do Rutas de Lectura é a ruptura desse esquema para iniciar a busca da comunicação não apenas grupal, mas também individual, dando rédeas soltas à criatividade, à curiosidade, à expressão livre, sem respostas estereotipadas ou "corretas".

 

Por fim, que dicas daria a professores que desejam trabalhar questões como leitura compartilhada e em voz alta em sala de aula? E aos pais, o que diria sobre o ler junto com os filhos?
 

Lara Meana – Aos professores, eu diria que a educação leitora e literária dos nossos alunos vai muito além da leitura funcional. É necessário criar espaços de leitura compartilhada em que nós, docentes, lemos em voz alta de forma gratuita, ou seja, sem tarefas posteriores, durante todas as etapas educativas, não apenas nas iniciais. Assim, atuaremos como modelos, e eles aprenderão e ler em voz alta nos imitando, de forma natural e voluntária, sem forçar. Também sugiro que leiam não só narrativas por capítulo, mas também livros-álbum, que são leituras complexas, mas muito inclusivas, pois todos os leitores podem interpretá-los independentemente da maturidade da sua mecânica leitora. Animo-lhes também a escutar as crianças, pois logo darão conta de que, em muitas ocasiões, são capazes de ler de uma forma mais rica que nós, adultos. Às famílias, eu lhes aconselharia que continuem lendo para os seus filhos todo o tempo que possam, até que cheguem à adolescência e nos digam "não mais". Descobrirão que à medida em que crescem os espaços de comunicação são cada vez mais difíceis de se alcançar. Que ler juntos nos permite mantê-los, falar de temas que nos preocupam, de como funciona o mundo, daquilo que lhes interessa. E chegará o dia em que talvez sejam eles que comecem a ler em voz alta para nós.


 

 

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