André Gravatá: há arte na miudeza do chão, não apenas no museu

12/04/2018
André Gravatá é jornalista, artista, escritor. Mas é, talvez antes de tudo, poeta. Não aquela poesia das rimas e das métricas, mas a da vida, do dia a dia, dos cheiros e gostos e sentidos do que é extraordinariamente trivial, do que parece pequeno, mas, tão imenso que, de pouco em pouco, faz de nós quem somos. Poeta de botar reparo e palavra na vida, pra vida não escapar pelo vão dos dedos enquanto estamos muito ocupados com o resto. Com amigos, fundou a Virada Educação; é coautor do livro Volta ao Mundo em 13 Escolas e também do Mistérios da Educação, de contos e poemas; também integra a equipe do projeto Criativos na Escola, do Instituto Alana, para o qual editou dois livros, entre eles Livro dos Encontros, em parceria com a artista plástica Serena Labate. O Blog da Brinque, inclusive, resenhou essa obra neste post aqui. "É fundamental ressaltar que todos os projetos em que estou envolvido só existem porque são fruto do encontro entre várias pessoas, ou seja, não faço nada sozinho". Seu trabalho, também como educador ou com educação, parece ter sentido em um cotidiano que deslegitima a vida da maioria da população. E André é bem consciente disso: "Infelizmente nasci num mundo em que as pessoas que vêm das periferias são pisadas diariamente, são mutiladas sistematicamente pela desigualdade terrível do nosso país, e só depois de aprender a ler o mundo, de pelo menos aprender a ler o mundo um pouquinho, percebi que isso é uma violência inaceitável, que se alguém da periferia se destaca em algo o que existe é uma exceção, e o importante é que, com todas as nossas forças lutemos contra a desigualdade, para que não apenas um ou outro se destaque, mas sim para existirem oportunidades para todas e todos". Conversamos com ele sobre esse e outros temas e sobre a vida, a arte e o que as une. Que seja um belo encontro.

Blog da Brinque: Você pode contar, por favor, como surgiu a ideia, de onde veio a inspiração para o Livro dos Encontros?

[caption id="attachment_3920" align="aligncenter" width="467"] "Estela, fada da floresta" / Marie-Louise Gay (texto e ilustrações)[/caption]

André Gravatá: O Livro dos Encontros nasceu dentro do projeto Criativos da Escola, do Alana, para inspirar jovens e educadores brasileiros, também em parceria com Serena. Faço parte da equipe do projeto e anualmente acontece um encontro de imersão com jovens e educadores que desenvolvem ações de protagonismo em seus territórios. Em 2017, o mote da vivência com os grupos foi “encontros”; nos dedicamos a aprofundar coletivamente o tema, cujas raízes são a escuta e a sensibilidade. Nos perguntamos: o que acontece em um encontro que faz sentido pra nós, que nos nutre? Daí surgiu a ideia, a partir de conversas que tive com a Serena, de criarmos uma publicação para entregar aos participantes da vivência, um material para relembrar todos nós sobre a força dos encontros que acontecem diariamente. Assim nasceram páginas repletas de proposições, que são como exercícios para realizar na vida cotidiana, e belas ilustrações desenhadas calorosamente pela Serena, linhas que formam mãos que se encontram, em contato vivo.

BB: A escola -e a vida como a vivemos hoje- nos organizam para saberes e realizações que estão, na maior parte do tempo, fora de nós, fora do nosso tempo (é algo que fazemos para o futuro, para grandes conquistas, não para a vida aqui e agora). Paramos de perceber a grandeza das pequenas coisas do agora?

Gravatá: Há uma história vivenciada por mim, que nunca me esqueci e talvez seja uma resposta para a sua pergunta: um dia estava andando na rua, voltando para casa, passando em frente a um hotel que tinha como decoração na entrada um tanque de carpas vivas. Toda vez que passava por lá, olhava para aquelas carpas com espanto, impressionado com aquela espécie de aquário a céu aberto. E nesse dia que comecei a narrar aqui, enquanto estava passando bem perto do tanque de carpas, uma delas pulou bem na minha frente. E não sabia como reagir. Nossa. Uma cena praticamente impossível. Tão inusitado e tão palpável ao mesmo tempo. E peguei a carpa, vibrante, colorida, para devolvê-la à água. Em seguida o segurança do prédio veio até mim e disse: “Essa carpa está impossível hoje, não é a primeira vez que salta pra fora!”. Desde aquele dia não me abandonou mais a imagem da carpa que salta na nossa frente todo dia, toda hora, todo segundo. O presente salta. E se eu estivesse distraído naquele instante da carpa saltando na minha frente, talvez eu tivesse pisado nela, talvez tivesse ignorado a carpa e toda a cena completamente. Paramos de perceber miudezas porque aprendemos ao longo dos anos a domesticar nosso olhar, a olhar o mundo por meio de lentes que não incluem o que é menor, feio, inesperado, incômodo. Por isso gosto tanto desta imagem: carpas saltam à nossa frente a todo instante. E essas carpas são os encontros que não planejamos, que "desautomatizam" nosso olhar.

BB: As crianças têm um olhar apurado para o agora e uma facilidade de ver o novo onde quer que seja, mesmo num lugar conhecido, há sempre um novo olhar, que encontra o inusitado, aquilo que surpreende e apaixona. Como é que o adulto se prepara para apoiar a criança nessa investigação afetiva, dentro e fora da escola?

[caption id="attachment_4098" align="aligncenter" width="415"] "O lenço" / Patricia Auerbach (ilustrações)[/caption]

Gravatá: O adulto apoia a criança ao possibilitar um terreno fértil para que ela exista. E um terreno fértil é um terreno permeável, sensível, maleável, vivo. Lembro de um dos trechos do Livro dos Encontros, em que uma história do escritor Eduardo Galeano é citada para mostrar o contrário, quando os adultos criam terrenos áridos para si e para os outros, o que é absurdamente comum. Galeano nos conta de um quartel onde soldados sempre se organizavam para se sentar ao lado de um banquinho ao longo de horas, montando uma espécie de guarda pra esse objeto. E repetiam esse ato sem questioná-lo, como se fosse sagrado, uma ordem necessária. Até que alguém se perguntou o porquê de fazerem aquilo. E depois de muito investigar, essa pessoa descobriu que um dia, décadas atrás, pintaram um banquinho e, como a tinta estava fresca, combinaram que alguém ficaria ao lado do tal banco, montando guarda, para que ninguém se sentasse nele. Anos e anos e a ordem foi seguida sem que ninguém mais encontrasse nela algum sentido. E assim os adultos geralmente vivem, afirmando ordens e maneiras de se organizar que foram determinadas no passado, que nada mais têm a ver com o hoje. E o pior que pode acontecer a uma criança é conviver com adultos que apenas repetem atos sem sentido e sem sensibilidade.

BB: Na escola, a arte tem um lugar bem definido, controlado, pouco artístico, superficial. Queria que você falasse um pouco sobre como as experiências que você propõe colocam a arte em um outro lugar. 

Gravatá: Há muitas definições para a arte. E há também muitas maneiras de se educar alguém artisticamente. O que o Livro dos Encontros convida a gente a lembrar é que há também uma maneira de ver a arte bem próxima da vida. Que a arte não está apenas no museu. Apenas na música, nos quadros, nos filmes. Pois há arte quando alguém percebe uma miudeza no chão. Pois há arte quando alguém brinca. Pois há arte quando alguém viveu um dia cansativo, tenso, e então se senta no quintal de casa e começa a escrever como uma cascata de água caindo, para desaguar palavras no papel, como na proposição presente no Livro dos Encontros inspirada numa passagem do livro Quarto de Despejo, da escritora Carolina Maria de Jesus. Ainda temos muito o que aprender sobre a relação entre arte e vida.

no fim o caroço sozinho bala solta na língua vagaroso, perdendo a dureza até que uma mordida abriu a carapaça quem diria: os dentes esbarraram num caroço no interior do caroço o dentro do dentro revelado sobressalto no corpo

 

BB: No livro, você pergunta se há matéria prima para a arte em todos os momentos. Há?

Gravatá: Também me faço estas perguntas: Quando abrimos uma janela é possível ver poesia no horizonte? É possível ver poesia no chão de uma rua? É possível perceber a poesia mesmo nestes dias em que extensa é a barbárie? Se não mantermos nossa percepção bem nutrida, presente, a indiferença se instala no olhar, a poesia desaparece. E não é fácil nutrirmos nosso olhar nos dias de hoje, com tanta dor, retrocesso, racismo, machismo, violências mil. E não há uma fórmula única que sirva para todas e todos e que resolva essa necessidade de alimentar nossa percepção para que ela continue viva e aberta — cada pessoa vai descobrindo suas maneiras de cultivar a fertilidade do próprio olhar, e isso é um ato de resistência.

BB: Li, certa vez, que você gostava de mandar cartas a desconhecidos quando pequeno. Com que idade fazia isso?  Gravatá: Enviar cartas a desconhecidos era a minha maneira de viajar pelo mundo que são outras pessoas. Sem dúvidas, o que faço hoje tem uma relação direta com a minha vontade insaciável de me comunicar com os desconhecidos, descobrir os limites do mundo. A cada vez que escrevo poesia hoje em dia, a cada vez que defendo uma educação em que as escolas realmente façam sentido para jovens e educadores, o que estou fazendo é me perguntando: quais os limites do mundo? O que ainda somos capazes de inventar e perceber juntos? BB: Essa iniciativa me parece quase uma manifestação artística. É de uma poesia... Como você "relê" essa ação do André criança hoje? Gravatá: Essa ação do envio de cartas era um ato poético que eu fazia sem nem refletir muito sobre isso. Era pura poesia: imagina se não é um mistério marcar um papel com tinta de caneta, enviá-lo para outro ponto do país e aguardar que um desconhecido, cujo endereço muitas vezes eu encontrava em revistas quaisquer, respondesse seja lá o que for. Entrar em contato com esse inesperado do mundo, com esse desconhecido imenso, é espantoso. Então me nutri com muito espanto na infância. Um espanto bom, que aproxima, que me ajuda a ver o mundo de uma forma mais esticada até hoje. BB: O que essa trajetória te mostra/ ensina? No que foi te transformando? Gravatá: O que minha trajetória me ensina e a pessoa que ela me torna são melhor traduzíveis em poesia. Porque o que tenho aprendido é a importância da sensibilidade, de não nos habituarmos com o que existe, de inventarmos outras maneiras de nos relacionar com as pessoas, com as palavras, com tudo que nos rodeia. Deixo alguns versos meus para responder a essa pergunta: a poesia me achou em casa na mesa numa ameixa suculenta no fim o caroço sozinho bala solta na língua vagaroso, perdendo a dureza até que uma mordida abriu a carapaça quem diria: os dentes esbarraram num caroço no interior do caroço o dentro do dentro revelado sobressalto no corpo a poesia me achou não para me apegar ao poema mas para eu não desprezar a realidade a poesia me achou no hospital público na eternidade da saliva que pinga: o pai dá de comer ao filho velho tanta baba o pai enxuga gota a gota com amor lento BB: Queria que você falasse um pouco, por favor, sobre trabalhos seus em que foca o olhar, a perspectiva sobre o cotidiano, sobre o momento presente e formas de experimentá-lo. Gravatá: Para provocar quem está lendo estas palavras a se embrenhar nesses meus trabalhos que existem para esticar o olhar, falarei apenas o nome deles, abrindo a janela da curiosidade no pensamento. São publicações que não inventei sozinho, sempre em parceria, então são trabalhos meus e de outras várias pessoas queridas, como o Mapa de Visitação da Sua Casa, criado também em parceria com minha companheira, Serena Labate. Como o livro Mistérios da Educação, criado com amigos como expressão do projeto Virada Educação. Como o livro de poesias Inadiável, publicado pela editora 7 Letras. BB: O que nos escapa quando o presente vira rotina? Gravatá: Quando a rotina pisa nos detalhes, nos deixa exaustos e incapazes de ler o mundo, de sentir espanto, aí o que nos escapa é a própria vida. E a vida, sem dúvidas, é a maior relíquia em nós.

BB: A gente se separou da vida um pouco?

Gravatá: Esta é uma ótima pergunta e prefiro não respondê-la, pois sinto que seguir com essa questão pontuda nos acompanhando é mais vital do que já partir para uma resposta. O que sugiro é que continuemos nos perguntando interrogações assim. A gente se separou da vida? O que nutre minha percepção no dia a dia? Qual o significado que dou para a palavra vitalidade? E se seguirmos prestando atenção nessas perguntas, também seguiremos dando valor para as respostas que brotarem aos poucos, cada um com respostas à sua maneira.

 
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