Dar voz às crianças: desafio e prioridade

06/08/2018
por Adriana Friedmann* - Texto originalmente publicado no site do Nepsid, em agosto de 2018 - [caption id="attachment_2686" align="aligncenter" width="415"] ("Pedro e Tina" / Texto e ilustrações: Stephen Michael King)[/caption]
Aos educadores e pais de todos os cantos, Gostaria de me manifestar aqui, como porta voz das crianças, para convidá-los a se deterem por alguns momentos e escutarem o que as crianças têm a dizer.
A maior parte de nós esqueceu que um dia já foi criança. Esqueceu o quanto adorava brincar, esconder-se, compartilhar e guardar segredos, brincar de super-herói, de casinha, de médico, de pega pega, de empinar pipa; de ficar à toa, rabiscar o mundo, sair disparados correndo ou dançando; o quanto cada um de nós curtia pintar, desenhar, sonhar.

A maior parte de nós esqueceu que um dia já foi criança

  Aprendemos muito com nossos pais e avós e, mais tarde, com nossos vizinhos, primos e amigos da escola. Sentíamos receio de não sermos aceitos, de sermos rejeitados pela nossa turma, de levar bronca dos nossos pais e professores. Detestávamos quando éramos pressionados ou quando descobriam nossos segredos e planos – e, pior, quando acabavam com eles. Claro que, como qualquer criança, sempre quisemos ser livres e fazer só aquilo de que gostávamos. Não sei se vocês se lembram que, antigamente, crianças tinham poucos direitos e muitas obrigações, raramente eram ouvidas ou podiam dar sua opinião ou mesmo dizer o que sentiam ou o que queriam. Quiçá, os que mais nos escutavam – e continuam a escutar as crianças – fossem os avós. 

Hoje parece que os relógios correm mais rápido, e que o dia nunca é suficiente para as crianças terem brechas para brincar

  Por outro lado, as crianças tinham muito tempo, brincavam e conviviam com outras de idades diferentes, tinham a rua e muitos espaços de natureza sempre perto para brincar.  Hoje parece que os relógios correm mais rápido, e que o dia nunca é suficiente para as crianças terem brechas para brincar. Hoje os tempos e corpos estão ‘tomados’ pelos celulares, videogames e conexões nas redes sociais. Hoje o mercado lhes oferece muitas promessas de que brinquedos e outros itens de consumo vão levar até elas ‘alegria’ ou ‘felicidade’; sendo que o que de verdade elas almejam – mesmo que não tenham essa consciência - é viver plenamente os seus tempos de infância, descobrir e aventurar-se em diversas experiências e, com seus corpos e suas essências, conhecer o mundo, as pessoas e os territórios à sua volta.  Por conta de todas essas percepções de como a infância costumava ser nem há tanto tempo – aqui no Brasil e mundo afora -, por perceber como a infância é hoje e pela oportunidade de muitos pesquisadores, ativistas, educadores e profissionais das mais diversas áreas de conhecimento estarem contribuindo com muitas novas descobertas, evidências e experiências sobre as realidades e universos infantis, estamos todos aprendendo o quanto é importante ouvir as crianças e dar-lhes espaço e tempo para que possam se expressar, brincar, conviver, descobrir e viverem infâncias plenas.
Temos observado que hoje o tempo livre das crianças está tomado de atividades: a pressão é muito grande por parte dos adultos, ansiosos que estamos para que elas aprendam logo e muito sobre este mundo! Ansiosos para que as crianças se preparem para o futuro e nem sempre percebendo a importância ‘do aqui e do agora’, do momento de vida presente de cada criança. Temos evidenciado que, apesar de tantas conquistas e consciência da importância de garantir espaços amigáveis para as crianças nas cidades, os espaços da rua e da natureza são raros. E muitos adultos se incomodam com a presença de crianças em determinados lugares. E elas têm ficado tristes, doentes, angustiadas, agressivas muitas vezes.  Mas muitos adultos – pais, professores, cuidadores, gestores – vêm descobrindo que as crianças possuem um repertório imenso de saberes, códigos, brincadeiras, narrativas e linguagens por eles desconhecidos.  Gostaria de motivar vocês, através desta carta - como aquelas que costumava- se escrever quando existia papel de carta, envelope, caneta e lápis e eram mandadas pelo correio - a ficarem mais perto das crianças à sua volta, a conhecerem e aprenderem com elas suas brincadeiras, a conversarem sobre as vidas delas, a construírem junto com elas os sonhos das cidades que todos queremos, a lerem e tentarem entender, junto com as crianças, o que ‘dizem’ seus desenhos e pinturas, o que elas querem dizer quando cantam, quando dançam, quando rabiscam e falam sozinhas. Será que podemos aprender através dos seus olhares, dos seus sentires e das suas vozes, quem elas são de verdade?

Com todos estes saberes infantis queremos contribuir para poder melhorar nossas cidades, nosso dia a dia, nossos espaços e enriquecer a educação e a cultura da vida de toda a sociedade

  Muitas vezes os adultos olhamos para as crianças e é como se estivéssemos na frente de um espelho que faz com que a gente se lembre que um dia também fomos crianças e que tínhamos sonhos, tempo e muito para conquistar. Mas não podemos esquecer que todos os adultos levamos vivas, dentro de nós, as nossas crianças e um baú repleto de memórias. As crianças nos evocam essas lembranças e a importância dessa fase da vida – a infância - cada vez que conseguimos nos conectar verdadeiramente com elas.  A proposta é caminhar para oferecer a elas mais tempo, espaços e ouvidos  atentos, olhos de ver e nossa inteira presença para, com muito vagar, elas nos guiarem pelos seus mundos e, a partir das suas vozes e expressões, nos darem a oportunidade de deixar-nos levar por elas para aprendermos o que cada uma têm a nos contar e a nos ensinar.
Nós adultos temos nossos saberes. Mas elas têm saberes que nós desconhecemos e tantos outros que esquecemos. E com todos estes saberes infantis queremos contribuir para poder melhorar nossas cidades, nosso dia a dia, nossos espaços e enriquecer a educação e a cultura da vida de toda a sociedade. Vamos juntos? Vamos pedir licença às crianças para olharmos pelas frestas das suas vidas e conhecermos mais sobre elas?
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Adriana Friedmann é uma das mais importantes pesquisadoras da infância e do brincar no Brasil. Pedagoga, mestre em Educação, doutora em Antropologia, é criadora e coordenadora do Mapa da Infância Brasileira e do Nepsid (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento). Dedica-se à pesquisa da brincadeira e à formação de adultos para a escuta das crianças. Autora de diversos livros, entre eles Quem está na escutaLinguagens e Culturas Infantis.
 
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