Enreduana, a primeira poeta do mundo

06/11/2018

 

Enreduana era o nome dela. Sacerdotisa, poeta, filósofa, considerada a primeira escritora do mundo. Nasceu em 2.300 a.C, na Mesopotâmia. Foi expulsa de seu próprio reino pelo irmão, e era apaixonada pela deusa Inanna. Ela também dá nome ao mais recente livro de Roger Mello e Mariana Massarani, dupla premiadíssima por Inês. Em Enreduana, os dois autores narram com as cores do deserto e a matéria-prima da poesia a história de uma protagonista feminina invisibilizada pela falocracia.

 

 

Para falar sobre o lançamento, convidamos Mariana e Roger para uma conversa, em que um enviaria perguntas ao outro. O resultado é uma entrevista afetuosa, marcada pela cumplicidade entre ambos os artistas, amigos de longa data. O autor brasiliense, premiado pelo Hans Christian Andersen, inaugura a prosa perguntando: “Você e Enreduana são como forças espelhadas pra mim, você sabe dizer por quê?”. Já Mariana, conhecedora da relação do ilustrador com a natureza, questiona: “O cerrado brasileiro é a sua Mesopotâmia?”.

Em páginas marcadas pela intensidade de laranjas e rosas, Roger quis saber do protagonismo das cores. “Talvez mais do que personagens, essas cores dão o clima, as vibrações, as sensações da época e da história. O calor, o deserto, os reis, os soldados, a caça e os deuses, a alma cálida, feminina e criativa. Acho que essas cores parecem passar sensações e temperaturas ao leitor. Não? Pensando bem, sensação também pode ser personagem”, Mariana respondeu, também voltando a perguntar.

Ela provocou o amigo a falar da relação palavra e imagem, muito bem imbricadas na obra que criaram juntos. “Algumas pessoas acham que eu tenho problema de vista porque confundo imagens com palavras. Se brincar, pode ser verdade. O olhar do artista é um olhar do pensamento”, contou Roger, que não titubeou em questionar: “Um grão de arei faz diferença?”. Para saber a resposta, leia a deliciosa conversa a seguir.

 

 

***

Roger Mello – Você e Enreduana são como forças espelhadas pra mim, você sabe dizer por quê?

Mariana Massarani – Será porque gostamos de trabalhar juntos? E bolar coisas que não foram inventadas antes? Algo foi criado que ninguém antes criou, escreveu Enreduana. Nossa personagem é a mistura das mulheres todas que te cercam, Didi, Lina, Cantídia, Sandra, Ariadna, Luciana, Tatiana, Graça, Helen, Camila, Rosa, Grazi e eu? Adoro responder com outras perguntas.

 

Mariana Massarani – Sei que você escreve vários livros ao mesmo tempo. Atualmente, quantos rondam a sua cabeça?

Roger Mello – Verdade. Olha, são uns oito agora. Eles vêm e vão sem pressa, e conversam um com o outro. Os livros não publicados falam pelos cotovelos, como o grão da história. Mas são também puro silêncio. Você sabe que eu demoro cerca de sete anos para terminar a maioria dos livros. Faço os esboços na cabeça, viajo com eles daqui pra lá, mexo, esqueço, guardo. Deixo o tempo fazer a parte dele, depois o livro sai da gaveta, ou da mala. O Ziraldo uma vez disse que livro é para sempre, eu acreditei.  Mesmo que o livro pareça ser feito de maneira bem enxuta, com poucos elementos, é preciso esperar pra saber o que é ideia e o que não é. Penso sempre que é preciso fazer com muito cuidado, e refazer. Na verdade, um livro nunca fica pronto. O leitor refaz o livro sempre, e o livro gera sempre movimento na cabeça de quem o pensou.

 

Roger Mello – Por que Enreduana e outras mulheres pensadoras, escritoras e artistas foram apagadas da história que nos contam?

Mariana Massarani – A história do mundo é falocratinha da Silva… Enreduana era uma princesa e sacerdotisa, sabia escrever. Pode-se dizer que tinha um teto todo seu, assim como pensou Virginia Woolf. Teve o espaço e tempo para criar. Mesmo assim, não se estuda Enreduana no colégio, ela, a primeira pessoa na história da humanidade a assinar um texto.

 

Mariana Massarani – Tem coisas que você diz que são a felicidade suprema de um ilustrador, que desenhar é pensar com o traço e que imagem e texto são a mesma coisa. Fala mais disso!

Roger Mello – Algumas pessoas acham que eu tenho problema de vista porque confundo imagens com palavras. Se brincar, pode ser verdade. O olhar do artista é um olhar do pensamento. Mas todo mundo é artista, ou não? A conversa da arte com a filosofia é como a conversa da palavra e da imagem. Achamos que sabemos dizer a diferença, mas existe tanta coisa em comum, por uma gerar e ser gerada pela outra, pela possibilidade de as duas contarem histórias ou serem mais expansão do pensamento, ou pelo aspecto gráfico. O desenho tem a mesma força da ideia porque faz simulações em que a ideia permite atingir outras formas. Toda arte visual conta coisas, umas têm a força dramática potente de uma discussão num campo de batalha, uma outra, a poesia branda e forte de uma lista poética nas compras da semana do mercado. Nossa sociedade se afastou muito da expressão visual, o que é uma pena. A palavra é a maior invenção da humanidade, mas a imagem é dada, é da natureza, precisamos das duas, em sua amplitude de discurso. Para ousarmos mais e entendermos que somos também semelhança e diferença.

 

Roger Mello – A Mesopotâmia é logo aqui? Ou foi preciso usar uma máquina do tempo?

Mariana Massarani – Sim, bem aqui! Os mesopotâmicos usavam um device (de barro) que cabia na palma da mão e por meio dele nos enviam mensagens de mais de 4.300 anos atrás. E como temos informações dessa época! Literatura, contratos de casamentos, divórcios, cartas, regras de jogo de tabuleiro, medicina, ciência, história etc… Sem falar de estátuas, pinturas, uma harpa toda decorada com desenhos maravilhosos, restos de palácios, barcos e selos. No Museu Britânico, em Londres, existe uma coleção enorme de textos, cerca de 130 mil placas de barro. Existe no YouTube vários vídeos imperdíveis de um grande especialista em escrita cuneiforme (a escrita inventada pelos sumérios), Dr. Irving Finkel. Vale a pena assistir. Ele também tem vários livros sobre o assunto. Agatha Christie escreveu contando de quando ela e seu marido arqueólogo participaram de escavações na antiga região da Mesopotâmia. Come, Tell Me How You Live: An Archaeological Memoir. Uma delícia. Quando fizemos o Inês foi muito, muito mais difícil de encontrar referências visuais de uma história que só tinha 1.300 anos de idade.

 

Mariana Massarani – O cerrado brasileiro é a sua Mesopotâmia?

Roger Mello – É sim. No cerrado, encontro formas experimentais, uma vegetação que tem raízes muito maiores do que as árvores e chegam no lençol de água lá no fundo. Muitas árvores do cerrado levam muitos anos pra atingir seu formato retorcido, expressivo, o tronco rugoso que ainda por cima floresce e dá frutos. Algumas frutas, tão grandes como o araticum, eram comidas por mamíferos pré-históricos. O cerrado é uma possibilidade de inspiração para jardins inventados, com pedras de cores diferentes, orquídeas terrestres que continuam a crescer mesmo depois de queimadas. Diferente do deserto e dos alagados onde cidades ancestrais de junco surgiram, entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia de Enreduana, no entanto, o cerrado tem uma riqueza infinita de espécies e formas. Mas o deserto sempre foi um terreno para a criação e o mergulho em si. A possibilidade da diversidade e a possibilidade da essência.

 

Roger Mello – Laranja, magenta, cobre, preto, cores são personagens?

Mariana Massarani – Talvez mais do que personagens, essas cores dão o clima, as vibrações, as sensações da época e da história. O calor, o deserto, os reis, os soldados, a caça e os deuses, a alma cálida, feminina e criativa. Acho que essas cores parecem passar sensações e temperaturas ao leitor. Não? Pensando bem, sensação também pode ser personagem.

 

Mariana Massarani – Você é a pessoa mais musical que conheço! Como imagina que era a trilha sonora dessa época?

Roger Mello - Teria um som de areia pisada, sons de bichos do deserto emergindo à noite, bebendo umidade com os olhos. Os sons misturados ao cheiro de oleiros e oleiras fabricando cerâmicas azul-verdes com o mesmo cuidado que se fabricavam as placas cuneiformes, num grito cifrado pro futuro. Um suspiro de camelo, um choro de criança, o rabo de um órix abanando a lua. Mas tudo isso marcado com uma batida contemporânea, igual ao seu rosa fluorescente surgindo do cobre.

 

Roger Mello – Um grão de areia faz a diferença?

Mariana Massarani – Ele é pequeno, insignificante, mas quando entra no olho da gente… É o anônimo, aquele que pode assistir à história sem ser notado e por isso não é censurado e cobrado. O grão de areia pode estar em todos os lugares. Um espião?

E como cantava Dalva de Oliveira:

Um pequenino grão de areia

Que era um pobre sonhador

Olhando o céu viu uma estrela

E imaginou coisas de amor….

 

 

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