Narizinho tem olhos de fazer chover; Emília faz desaguar riachos de malas. Já o Reino das Águas Claras traz um céu rosado povoado de peixes, onde Pedrinho e sua prima Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, equilibram-se em balões de ar. Como se não já bastassem os elementos fantasiosos criados pelo escritor paulista Monteiro Lobato (1882-1948), as histórias do Sítio do Picapau Amarelo têm agora uma marca ainda mais onírica a partir das ilustrações com pinceladas surrealistas da artista carioca Lole.
No ano em que a obra lobatiana entra em domínio público, as personagens mais emblemáticas da literatura infantil brasileira ganham cara nova numa edição integral caprichada de Reinações de Narizinho (1931), obra cuja primeira versão saiu com o título de A menina do narizinho arrebitado dez anos antes, em 1921. Durante anos, o autor fez várias alterações na narrativa. No primeiro texto publicado, por exemplo, Lúcia acordava de um sonho às margens do ribeirão do Reino das Águas Claras. Mas Lobato entendeu que aquela aventura não precisava ser um sonho, permitindo que a turma do Sítio vivesse peripécias que rompessem com os limites entre a realidade e o maravilhoso.
O livro é um divisor de águas da literatura infantil no país. Foi revolucionário ao disseminar ideias avançadas relativas à família, à escola, à leitura e à infância naquelas primeiras décadas do século passado. Entre diversos outros aspectos, vale destacar que Lobato rompeu com a ideia de que livro para criança funciona como instrumento de disciplina, sendo ferramenta libertadora, expandindo a imaginação do jovem leitor.
Com lançamento previsto para meados de fevereiro, esta edição capa dura de Reinações de Narizinho tem o cuidado de contextualizar a narrativa escrita há quase um século para as crianças dos dias de hoje. Notas de rodapé, no estilo de diálogos desenrolados num chat, trazem Emília e Narizinho comentando expressões antigas (chifre furado ou dar um quinau), costumes antigos e personalidades citadas, além de questões polêmicas relativas a gênero ou a raça, num tempo em que a sociedade pouco questionava vestígios da desigualdade entre homens e mulheres ou dos tempos da escravidão impregnados no discurso.
Em um texto introdutório da nova edição de Reinações, a professora de literatura brasileira e teoria literária Cilza Bignotto, conta que diversas passagens da obra “nos lembram o quanto o Brasil mudou; o quanto nós, leitores, somos diferentes dos leitores do passado; o quanto modificamos, com nossas leituras, as cenas que lemos”. Ela segue explicando às crianças de hoje: “Você vai se deparar com vários comportamentos hoje tidos como inadequados, mas vistos com naturalidade num tempo em que crianças viajavam sozinhas e brincavam com canivetes. Conhecer práticas antigas e pensar sobre elas, comparando-as com as atuais, será uma das grandes experiências em companhia das personagens do Sítio. Significará também prestar atenção no que mudou, e no que persiste, ainda nos dias de hoje, no país em que vivemos”. A edição integra uma coleção organizada por Marisa Lajolo.
Lole, pseudônimo da ilustradora Alessandra Lemos, é quem revisita na narrativa visual esse mundo criado pelo mais importante escritor da literatura infantojuvenil brasileira, com a missão de ajudar a criar pontes entre a obra e a infância de hoje. “Naquela época, o mundo era diferente, tinha um pensamento diferente. Hoje as coisas mudaram e os temas têm que ser debatidos, têm que ser conversados justamente para entendermos o que foi e o que não é mais”, contemporiza Lole, sobre os temas polêmicos dos livros de Lobato.
Recém-chegada ao mercado editorial, a artista iniciou sua carreira como ilustradora em 2012, depois de diversos anos dedicada aos trabalhos em agências de propaganda, atuando como diretora de arte. Fã confessa do surrealismo, ela tem apreço especial pela aquarela, técnica que define como “incontrolável”, o que é muito “libertador”. E liberdade de criação foi o que guiou os traços, as cores e as texturas de suas ilustrações.
A seguir, saiba mais como Lole recriou a turma do Sítio.
Eterna infância
A artista conta que seu trabalho sempre carrega um pouco de sua criança interior, a partir das memórias de infância. Para a artista, desenhar muito tem de brincadeira e, ainda que seja um trabalho, rememora seu tempo de menina. A infância das filhas, duas meninas, uma com 1 ano e outra com 4 anos, é também fonte de inspiração. Depois do nascimento delas, começou a consumir mais livros infantis e montou uma pequena biblioteca que alimenta as leituras em casa e também é acervo para consultar artistas que admira.
Ilustrar o sonho
Um dos aspectos que mais chamam a atenção nas ilustrações de Lole é a perspectiva onírica que apresentam. Algo que a artista acredita ter tido sempre consigo, mas, quando era mais nova, tinha certa insegurança em exteriorizar. Por volta dos 16 anos de idade, fez o desenho de um rapaz sentado, cuja cabeça era sugerida pelo vapor de uma xícara de café. Naquela criação, começava a despontar os primeiros sinais de seu estilo.
Profusão de cores
Lole, que conhecia a obra lobatiana a partir da série de TV, assim como diversas crianças de sua geração, costuma trabalhar os primeiros rafes de um projeto diretamente no tablete, suporte que permite desenvolver a ideia central do desenho de modo mais ágil. O passo seguinte é criar a arte em aquarela de grafite, que nada mais é do que uma tinta aquarela com cor e aspecto de grafite, um material que adquire em Portugal e o qual estoca em casa (por garantia, pois “vai que acaba!”). Depois, as ilustrações são escaneadas e coloridas digitalmente, no computador. A pintura é feita com um pincel simples, resultando numa cor chapada, sólida, escolhida de uma paleta que traz a marca da artista.
Clássico e o contemporâneo
Um dos maiores desafios era justamente dar cara nova a personagens lobatianas tão conhecidas de diferentes gerações de crianças, seja pelos livros, seja pela TV. Lole, que leu já adulta a obra, era por vezes remetida ao universo visual do Sítio do Picapau Amarelo criado pela versão televisiva durante o processo de criação. No caso da Emília, a boneca de pano tagarela, alter-ego de Lobato, isso aconteceu com ainda mais intensidade. “Não foi tarefa fácil criar a Emília, fiz vários testes até chegar na versão final”, conta.
O caminho foi trabalhar com o equilíbrio de aspectos contemporâneos e clássicos, o que resultou, por exemplo, numa Emília que tem cabelo volumoso roxo, digno de uma vocalista de banda de rock, e fios soltos pelas pernas de remendos, assim como numa boneca de pano tradicional. Já Narizinho traja vestidos que bem lembram o figurino de meninas do passado, mas tem um corte de cabelo com um repicado contemporâneo. As bochechas rosadas das duas já eram uma característica da obra da artista, que experimentou levar tal marca para outras personagens como Dona Aranha, o Príncipe Escamado, Visconde e até Rabicó. Repare que todos têm um pouquinho de blush!
Referências fantásticas
Entre as referências visuais de Lole, estão o surrealismo pop do americano Alex Gross, os enquadramentos inusitados da francesa Rebecca Dautremer, a narrativa visual nonsense do mestre americano Dr. Seuss, além das obras do alemão Olaf Hajek, da portuguesa Paula Rego e da italiana Beatrice Alemagna, outras fortes inspirações na tarefa de romper os limites entre realidade e fantasia tão presentes em suas criações – e também na obra infantil de Monteiro Lobato.