Os temas profundos por trás de O Homem-Cão em mamãe e os ventos uivantes

19/10/2022

Músicas e rimas sobre cocô, chulé e pum, lado a lado com assuntos como morte, maternidade e pertencimento. Estas palavras parecem estar em extremos opostos, mas Dav Pilkey consegue juntá-las com maestria, naturalidade e de uma forma engajadora para pequenos e jovens leitores no 10º volume da série do Homem-Cão, que é O Homem-Cão em mamãe dos ventos uivantes (Companhia das Letrinhas, 2022). As referências culturais, como a que salta aos olhos já no título, com o O morro dos ventos uivantes, clássico de Emily Brontë, e os papos sérios, aparecem não só neste, como em todos os outros títulos da divertida coleção. 

O Homem-Cão: Mamãe dos ventos uivantes

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“Em toda a série do Homem-Cão, o Dav Pilkey faz esse trabalho lindamente de tratar, dentro do universo infantil, de questões que são consideradas, muitas vezes, tabu, polêmicas e coisas que não podem ser ditas para as crianças, com muita leveza, com muito humor e com muita emoção, honestidade, sinceridade”, diz Gabriela Tonelli, editora da versão em português dos livros. “Isso tudo, respeitando os personagens e respeitando também a capacidade que a criança tem de entrar em contato com esses temas. A importância de a criança ter acesso a esses temas na literatura, até como um apoio para a vida real, é um afago, um aconchego. Não quero instrumentalizar o livro, acho que não é essa a proposta da série, mas essa característica cria uma ligação muito forte entre leitor e personagem, que acaba acolhendo os sentimentos das crianças também nesse processo”, aponta.

Pepê, o abandono e a paternidade

Homem Cão em Mamãe dos Ventos Uivantes

Para Gabriela, vários assuntos muito profundos são abordados por meio da construção dos personagens que compõem a história. O Pepê é um deles. O gato é um ex-vilão e toda a sua trajetória, desde os dias de maldade até a decisão de tentar se tornar uma “pessoa” melhor, é contada na saga. Sua história de vida e acontecimentos-chave explicam esses comportamentos. Eles não acontecem do nada. “Nos primeiros volumes, ele, como um gato, odeia cães, está sempre fugindo da prisão dos gatos…Então, acaba tendo um filho, que é o clone dele. Ele cria essa relação de paternidade com o Pepezinho e a história mostra como essa paternidade o transforma, faz com que ele pense sobre outras questões e volte a acolher o Pepê que ele foi na infância e entender tudo que ele passou”, lembra a editora.

É muito importante porque ele fala de uma temática muito presente na realidade das crianças, infelizmente, que é o abandono paternal (Gabriela Tonelli, editora)

“Vivemos em um país com um alto índice de crianças que não têm contato com seus pais e acho muito importante isso ser tratado num livro que aprofunda a história e mostra como isso foi para o Pepê, como reflete na vida adulta, como foi durante a infância, a adolescência e a vida adulta. A história mostra como isso respinga nele e que só com ajuda do Pepezinho, o filho, ele vai, aos poucos, ressignificando esses sentimentos”, diz Gabriela.

Pepê teve uma infância difícil, já que o pai dele, o vovô, abandonou a ele e a mãe, quando ela estava doente - e a morte e saudade da mãe também são lembrados neste volume 10, aprofundando outros assuntos como o luto e a ressignificação desse luto no amor eterno, que sobrevive nos filhos. São temas aparentemente ultracomplexos, mas que alcançam as crianças na forma como Dav os coloca na vivência dos personagens. 

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Amor, I love you

Um outro tema abordado em O Homem-Cão e mamãe dos ventos uivantes é o amor romântico, na história entre o chefe e a enfermeira. Ele tenta conquistá-la e declara seu amor de várias formas, até que ela entenda. “Pode parecer meio brega, meio ‘eca, que nojinho’ para as crianças, mas também é uma coisa legal, bonita e respeitosa”, afirma a editora.

O Homem-Cão tem essa variação de público ampla, em termos de faixa etária, e conversa muito com o público mais jovem, a partir dos 6 anos, seja numa leitura independente ou mediada, dependendo da fluência leitora da criança, mas também agrada a muitos leitores mais velhos, já na pré-adolescência, que já se veem de frente com essas questões mais românticas, com essas crises existenciais em torno dos primeiros amores;. Ele traz, de uma maneira leve e divertida como isso faz parte da vida e que pode ter uma solução legal, sempre com o apoio dos amigos, que são a família que a gente escolhe (Gabriela Tonelli, editora).

Bullying e crise existencial

O Homem-Cão, personagem principal, também personifica duas temáticas sérias, tratadas de uma maneira que conversa facilmente com as crianças. Uma delas é o bullying. Em um momento da história, ele se machuca e precisa usar o “cone da vergonha” para se recuperar, sem lamber ou cutucar os ferimentos. Então, os outros personagens tiram sarro dele. Só que os amigos, Pepezinho e Formigão, juntos, pensam em uma solução para tornar aquele acessório algo poderoso e divertido, e não mais motivo de chacota.

“Não é porque a criança não passou por nenhuma situação de bullying, como o Homem-Cão passa com o cone da vergonha, que ela não vai identificar que essa situação acontece no dia a dia, na escola dela, nos espaços de vivência, sejam eles quais forem. Acaba criando essa conexão”, reflete Gabriela. A outra temática, apontada pela editora, que aparece no personagem central é a busca pelo pertencimento.

Ele é meio homem, meio cão e essa coisa absurda acaba servindo como metáfora perfeita para essa crise: onde ele se encaixa? Ele é um policial, mas faz coisas de cachorro. Os outros policiais humanos não aceitam o comportamento de cachorro dele. O chefe vai acolher, enfim, essas questões, mas como ele é visto pelos outros cães? E ele se encontra quando faz um grupo de amigos (Gabriela Tonelli, editora)

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Homem Cão em Mamãe dos Ventos Uivantes: os personagens

Esses e outros assuntos profundos que permeiam não só esse livro, como toda a série, podem ser difíceis, mas podem também ser tratados de maneira honesta, sincera, sem grandes lições de moral, e com um toque de humor, quando cabe, sem forçar. E é isso que Dav Pilkey faz, brilhantemente. Ele não subestima o leitor, só porque ele é pequeno ou jovem demais.

É importante não estigmatizar a criança como uma pessoa que ainda não consegue enxergar, acompanhar e sentir todas essas experiências. Se não for com ela, pode ser para ter essa explicação da empatia, de reflexão mesmo sobre a vida, sobre como as coisas acontecem (Gabriela Tonelli, editora)

“A literatura abre portas para vários lugares e, às vezes, esses lugares não são perfeitos. Eles trazem questões, problemas, como a gente tem na vida. Então, acho de uma delicadeza muito especial o jeito de a série abordar tantos temas da realidade de uma maneira que não é didatizante e não subestima a capacidade leitora da criança, não só de alfabetização, mas a leitura de mundo, dos sentimentos e da realidade”, aponta Gabriela. 

Porta de entrada para a cultura

Além dos assuntos sérios que permeiam as aventuras divertidas, Dav Pilkey também costuma usar referências de livros clássicos, músicas e outros títulos cult, o que, para Gabriela, tem dois reflexos positivos. Um deles é apresentar essas outras obras, como O morro dos ventos uivantes, que geralmente são vistas como leitura obrigatória, escolar, com estigma de “chatas” e “difíceis”, de uma outra maneira às crianças. “Isso pode gerar interesse e também trocas, diálogos com os adultos, ao perguntar sobre esses livros, essas músicas, esses filmes, etc”, diz. Outra sacada interessante é que essas referências também conquistam o público adulto, convidando para ler e entrar no universo da criança, interessando-se pela história.

 

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