Perspectivas: ‘conviver com crianças é olhar para si o tempo todo’

27/11/2022

O que eu vejo não é o que você vê. E certamente será muito diferente de como uma criança enxerga. E todos esses olhares são importantes na perspectiva de um mundo plural. Contudo, enxergar com o olhar do outro também é fundamental, uma vez que a empatia é uma habilidade necessária para a vida social. Mas será que, enquanto adultos, precisamos mesmo guiar o olhar infantil e estimulá-lo para enxergar diferentes pontos de vista? Elas conseguem fazer isso por si próprias, naturalmente? Ou será que nós é que precisamos desse olhar das crianças para enxergar o que deixamos de ver na sociedade? Como estimular a ver as coisas de outro jeito? Vamos falar sobre perspectivas?

Saber lidar com a opinião do outro é uma habilidade necessária para a vida social, mas será que precisamos ensiná-la para crianças, ou elas já sabem disso naturalmente? Como estimular a ver as coisas de outro jeito? Com uma lista de livros sobre diferentes perspectivas, conversamos com Cássia Bittens e também com as psicanalistas Natalia Timerman e Isabel Tatit, autoras de Os óculos do Lucas

Ilustração do livro infantil Os óculos do Lucas, de Bel Tatit e Natália Timerman, que fala sobre o olhar das crianças

Ilustração do livro Os óculos do Lucas, que faz um convite para enxergar o mundo de outra forma

“O bebê é um dos maiores filósofos do mundo, porque concilia as atividades de poeta e de teórico (...) um historiador em busca desesperada de uma história.” Quando procuramos a pesquisadora do Literatura de Berço e psicoterapeuta Cássia Bittens para nos ajudar a responder a essas perguntas (e apoiar com seu olhar de especialista em primeira infância e desenvolvimento dos bebês), ela então citou essa frase, do psicanalista francês Bernard Golse. Ela dá conta de muito daquilo que buscamos refletir aqui: de que forma as crianças nos ajudam a redescobrir outras narrativas sobre o mundo e sobre nós mesmos?

Pesquisadora e psicoterapeuta Cássia Bittens, do Literatura de Berço

“É em cada relação, estabelecida através dos sentidos, que o bebê e a criança pequena apreendem a vida como uma experiência humana, incluindo os sentimentos, as emoções, a língua, a cultura e, principalmente, a capacidade de pensar de forma autônoma”, explica Cássia.  

Quando Golse afirma que o bebê concilia as atividades de poeta e teórico, ele quer dizer que, ao observar o humano, o bebê suscita hipóteses e vai a campo colher resultados, sem separar-se dos seus sentimentos e emoções. (Cássia Bittens, psicoterapeuta) 

Pequenino na cidade é um livro ilustrado que convida o leitor a enxergar como as coisas funionam (ou não funcionam) no espaço urbano, mas do ponto de vista infantil

 

A literatura recriando pontos de vista

Diversos livros lançados pelo grupo Companhia das Letras em 2022, como Clube do Pepezinho – Perspectivas, de Dav Pilkey, Óculos de cor, de Lilia Schwarcz, Os óculos do Lucas, de Natalia Timerman e Bel Tatit, Pequenino na cidade, de Sydney Smith, e Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, nos convidam a olhar as coisas sobre outros pontos de vista, seja na forma como encaramos um mesmo acontecimento ou como nos relacionamos. 

Quando observamos as famílias lendo livros literários com seus bebês, os adultos fruem tanto quanto – ou mais – que as crianças pequeninas. É cena uma que traz esperança de uma sociedade melhor, pois gera um círculo virtuoso. (Cássia Bittens, psicoterapeuta)

No livro Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, três gerações unidas pela vontade de trilhar caminhos para outras descobertas e uma mesma pergunta.

A primeira infância do olhar

Na primeira infância, qual a principal característica do olhar do bebê sobre o que ele observa ao redor? E como os aprendizados desse período impactam os anos seguintes? Para Bittens, um bom exemplo é a necessidade de se alimentar, pois rapidamente bebês equalizam o “choro de fome”. "Após experimentar um desconforto e perceber que ele desaparece após se alimentar, também percebe que quando emite um determinado tipo de som é atendido. Os desdobramentos na relação com a pessoa adulta no momento da alimentação trarão outras percepções que se juntarão a esta dinâmica", comenta a pesquisadora. Segundo ela, esse mesmo modelo de ação-reação, ilustrado pela alimentação, se repete na troca de fraldas, na saída de casa e também na leitura. 

Quando lemos com bebês ou contamos histórias, estamos nomeando cenas, situações e sentimentos do cotidiano. Essa experiência permite que o bebê entre em contato com a língua do relato, que é uma das primeiras experiências simbólicas que envolve o afeto pela palavra poética. (Cássia Bittens, psicoterapeuta)

Bittens chama atenção para a necessidade de o adulto permitir o desenvolvimento do bebê em seu tempo particular. “Precisamos nos relacionar com um bebê com um sujeito diferente de nós mesmos, com suas vontades, gostos e experiências e precisamos estar atentos para não impor o nosso ponto de vista como único frente a uma determinada experiência”, pontua.

 

Como as crianças nos desafiam a ver – e fazer – diferente?

Os adultos de referência da criança são seus principais mediadores de realidade, daí a importância daquilo que escolhemos apresentar a elas. Então, como ensinar os pequenos a olhar sob outras perspectivas, e por que isso é importante? 

Para a psicanalista Natalia Timerman, co-autora de Os óculos do Lucas, com a psicóloga e artista Bel Tatit, a chave está em oferecer a oferta mais variada possível de experiências. “Sem um esforço para oferecer mais diversidade, estaremos restringindo o olhar das crianças a uma lógica de poder bem estabelecida, mas muitas vezes invisível. Por isso é imprescindível apresentar a elas autorias diversas e desestabilizar o que é considerado ‘normal’”, defende a escritora.

As autoras Natalia Timerman e Bel Tatit, com o livro Os óculos do Lucas.

Porém, no dia a dia corrido com as crianças, nem sempre é simples se dispor a isso. Conseguir ver diversas perspectivas de uma mesma situação ou um mesmo problema tem a ver com modular bem as emoções. Como as crianças nos ajudam a rever nossa própria capacidade de regulação emocional? Para Bel Tatit, que atende crianças na clínica, é recorrente observar a dificuldade de os pais exercerem a função de pais para seus filhos, fundamentalmente porque não querem frustrá-los.

As emoções fazem parte da condição humana, mas, quando estamos culpados ou muito ocupados, fica difícil ativar ou criar repertório para lidar com os afetos. (Isabel Tatit, artista e psicóloga)

Diante disso, muitas famílias podem recorrer a respostas automáticas e descuidadas às necessidades emocionais da criança. É o que a psicóloga chama de “encurtar vocabulário afetivo”. “Quando uma criança sente raiva, tristeza, ou grande alegria é imprescindível que o seu entorno possa acolher, dar sentido e não tamponar rapidamente aquele afeto. Responder a uma birra com grito, ou a uma demanda insistente com um brinquedo, tem encurtado o vocabulário afetivo de crianças e adultos”, explica Isabel.

As crianças são muitas vezes nosso espelho. Já me vi dando bronca nos meus filhos a respeito de algo que eu mesma estava fazendo. Conviver com crianças também é olhar para si o tempo todo. (Natália Timerman, escritora)

De acordo com Tatit, as adultos são responsáveis por transmitir a cultura para as crianças, mostrando que elas são parte de algo maior e anterior a elas. “É comum nos dias de hoje, as crianças ficarem apartadas dos espaços públicos e a função de inseri-las num pacto social se restringir às figuras familiares", conta..

Principalmente nas classes sociais mais abastadas, os clubes, as escolas privadas e os condomínios criam um muro, dando ilusão de segurança às famílias, privando-as da relação com a alteridade. É muito importante ensinar às crianças que o outro, o diferente, o estrangeiro não são figuras ameaçadoras e, sim, diversas. (Bel Tatit, artista e psicóloga)

Clube do Pepezinho, perspectivas - livro infantil de Dav Pilkey

Em Clube do Pepezinho - Perspectivas, além de diferentes formas de fazer uma história em quadrinhos, os leitores vão ver o que significa perspectiva para além do desenho

Ver é um ato contínuo

"Alvo resolveu prestar atenção nesse verbo: "reparar". "O que seria reparar?", matutou ele. "Olhar bem? Parar para observar?" Alvo achou que era pouco. Foi assim que Alvo descobriu que o verbo "reparar tinha tudo a ver com "reparação". A habilidade de colocar as coisas em outro estado, consertar, restabelecer”. 

O trecho acima faz parte do livro Óculos de cor, lançamento infantojuvenil de autoria de Lilia Schwarcz. Uma obra que provoca leitores das mais diversas idades a trocar as ‘lentes”  de interpretar a realidade, ao refletir como os brancos têm se colocado no lugar de narradores oficiais da História.

"Muitas vezes, vemos algumas coisas, mas, como estamos pouco habituados a lidar com aqueles que são muito diferentes de nós, não conseguimos enxergá-los. Nem sempre essa é uma atitude consciente. Apenas acontece porque a cultura e a sociedade fazem isso conosco: frequentemente nos deixam cegos. Cegos culturais, cegos históricos, cegos diante das tensões do dia a dia", explica a historiadora no prefácio do livro. Trata-se então, de mantermos-nos atentos ao outro que é fundamentalmente diferente de nós, mas sem criar entre um lugar de superioridade ou hierarquia. Antes, vale pensar nesse gesto como uma constante vigília.

Como a educadora Bianca Santana me ensinou, enxergar funciona como uma espécie de despertador aleatório (Lilia Scharcwz, em trecho retirado do livro Óculos de cor)

Mas, afinal, como esse senso de empatia e alteridade é adquirida pelas crianças? As histórias lidas e ouvidas ajudam? E como ensiná-las a lidar com o juízo do outro sem se perder delas mesmas? 
 
“A literatura promove mas não garante a empatia. É preciso uma pessoa mediadora atenta, verdadeira e despida de preconceitos. Existem, por exemplo, inúmeras versões de livros literários da Chapeuzinho Vermelho, cada uma com suas especificidades. Podemos ler com os bebês algumas delas, mas quem escolhe a sua versão favorita é o próprio bebê, mesmo que essa seja a versão diferente da do adulto”, pondera Cássia Bittens. Já na visão psicanalítica de Natalia Timerman, cabe lembrarmos antes de mais nada que é a partir do outro que a identidade se funda. 

Crescer também é ir aprendendo a se separar do outro. Isso acontece aos poucos, e jamais completamente. Nós, adultos, seguimos sendo seres gregários e nunca deixamos de considerar a opinião alheia. Entender isso já é um bom começo. (Natalia Timerman, escritora)

Para Tatit, os livros que tratam de outros povos e de outras religiões são ótimos aliados nessa função, mas não as únicas experiências necessárias para a criança ampliar sua visão de si e da sociedade. “Podemos sonhar mais alto, por exemplo, com uma escola pública de qualidade, bons parques e praças acessíveis a todos. Isso certamente daria oportunidade de convivermos com mais diversidade, ampliando nossa visão de mundo.”

Já seria um pequeno avanço, no dia a dia, não fechar a janela diante de um morador de rua, incentivar a criança a conversar com os funcionários dos lugares que frequentam, a não ignorar os idosos. (Bel Tatit, artista e psicóloga)

 

(Texto de Renata Penzani)

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