“Tento olhar ao redor”, respondeu a artista plástica, escritora e ilustradora Lúcia Hiratsuka, quando perguntamos onde busca os lampejos que movem sua criação. Basta ir aos mais de vinte livros de sua autoria para ver aquilo que ela chama de "tentativa" se traduzir em potência artística. Cada traço, palavra e escolha de interação texto-imagem pensados por ela parecem conter a amplitude desse verbo: olhar. Em um mundo acelerado que parece nos roubar o tempo da experiência, os livros de Lúcia podem ser um oásis extemporâneo, lugar onde a beleza persiste. “A salvação do belo é a salvação da vinculação”, já disse o filósofo Byung-Chul Han. E vínculos não faltam em seus livros. “Nunca a história inteira, apenas uma possibilidade”, diz a escritora. Por ocasião do lançamento de seu mais recente livro, Amanhã (Pequena Zahar), convidamos a artista para passear pela obra que a trouxe até aqui.
No livro de Lúcia Hiratsuka, três personagens têm suas histórias entrelaçadas ao fazerem uma mesma pergunta: "Amanhã tem escola?". Crédito: Arquivo pessoal
Ao lançar uma história que retrata diferentes contextos de formação do indivíduo, parece mais oportuno que nunca rememorar momentos expressivos de sua carreira, encontrar pontos comuns entre seus livros e, claro, pensar sobre o fio condutor de sua criação, a literatura e suas múltiplas possibilidades de interpretação de si e do outro, sempre abertas ao encontro com os leitores.
O contato com o outro sempre me afeta e nutre como indivíduo, e consequentemente como artista. (Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora)
Uma obra dedicada a preservar o tempo e as memórias
As histórias da escritora paulista pedem tempo de fruição, assim como uma observação demorada não acontece de relance. Dentro delas, crianças e adultos ganham lupas para o detalhe das coisas. Memória, poesia, cotidiano e reminiscências de uma infância que não é mero período cronológico, mas um jeito de estar do mundo. São esses alguns dos temas de livros como Chão de peixes (Prêmio Jabuti 2019 de Melhor Ilustração), Orie (finalista do Prêmio Jabuti 2015; Prêmio de melhor livro na categoria Criança da FNLIJ; selecionado para o catálogo da White Ravens/Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, na Alemanha) e muitos outros de sua bibliografia.
O mais recente, Amanhã, bebe de uma fonte que transborda na obra da autora: as histórias familiares – frutos da imigração japonesa – e da própria meninice, vivenciada no sítio Asahi (em tradução do japonês para o português, significa "luz do sol), no interior de São Paulo. Porém, este livro faz isso de uma perspectiva diferente: dialogando simultaneamente com múltiplas obras da escritora, como se fosse uma celebração de sua trajetória; uma celebração repleta de easter eggs que divertem o leitor. É o caso da personagem Orie, que dá título ao premiado livro publicado em 2014 pela Pequena Zahar, e que aqui aparece como protagonista de uma das três narrativas, e também da protagonista de O caminhão, que também aparece aqui. Assim, apesar de Amanhã ser também um exemplo da característica universal e atemporal presente das criações de Hiratsuka, a obra é uma janela para que as crianças e leitores das mais variadas idades acessem os pontos de encontro entre as culturas japonesa e brasileira.
Confira a entrevista completa com Lúcia Hiratsuka
No livro Amanhã, está muito presente a escola como possibilidade de mudança. De que forma esse tema atravessou a sua infância? E de que forma dialoga com a vivência da Lúcia adulta?
Lúcia Hiratsuka - Lanço um olhar para a infância e vejo desenhos e muitos livros. Eu lia as ilustrações, os retratos, as sombras, e lembro de quando me iniciei na escrita japonesa, com o meu avô. Depois, entrei na escola rural. Quanta ansiedade e alegria da descoberta de um mundo novo. Guardo imagens da estrada, dos colegas, da professora, das brincadeiras no recreio.
Recentemente, fui ver se a escola ainda estava lá. Não, nem os cafezais, nem a ponte. E o riacho tinha secado. Apenas a cor do caminho de terra, alaranjada em contraste com os verdes dos capins e eucaliptos, era o que guardei na memória
Penso nas crianças daquela escola rural. Que talvez nem conseguiram continuar os estudos, algumas começavam a trabalhar junto com os pais, tinha famílias que se mudavam no final da colheita.
No livro Amanhã, e em outros títulos publicados, enxergo um mapa com os caminhos percorridos em busca do sonho que rabisquei no quintal.
O que um livro como este, que coloca a escola como o lugar onde coisas importantes acontecem, nos diz de mais importante e valioso nesse contexto educacional em que vivemos hoje no Brasil?
Lúcia Hiratsuka - Talvez perceber a conexão entre gerações? Espero conseguir tocar o leitor de alguma forma, que desperte um olhar sensível para ler o que está em torno. Cada um pode buscar a sua identidade, o sentido de conhecer algo novo.
Quando um livro sai para o mundo é a hora da descoberta também para o autor. (Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora)
Pode falar um pouco da relação desse livro com outros anteriores? Você enxerga algum denominador comum ou ponto de contato na sua obra de forma geral? Qual você diria que é o seu "grande tema", se é que podemos dizer assim…
Lúcia Hiratsuka - Amanhã dialoga especialmente com Orie e Os livros de Sayuri, com O caminhão, e outros. São retratos de crianças ou adultos diante de situações inusitadas na vida, ou de novas descobertas poéticas ou lúdicas no cotidiano. A natureza está sempre presente. No processo de criação, tive um desafio, ao introduzir um pouco da linguagem de quadrinho, sem deixar de pensar no ritmo e pausa de um livro ilustrado.
Uma das histórias de Amanhã, de Lúcia Hiratsuka, se passa no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo brasileiro proibiu o uso da língua japonesa, fechando escolas, impedindo imigrantes de ir e vir. Crédito: Arquivo pessoal
Sobre quais temas você ainda não escreveu/ilustrou, mas gostaria? E por que?
Lúcia Hiratsuka - Em São Paulo, quando estudante, morei em um pensionato feminino que ficava em um casarão antigo, com janelas e portas pesadas, um corredor mal iluminado. Essa imagem se mistura com ruas de bairro, casarios, prédios, pessoas. Aí penso que ainda não dei conta de criar nada que se passa em uma metrópole.
Deixo fluir as imagens, como retratos, ou em movimento como no cinema. Em algum momento começo a colocar no papel, desenhando ou escrevendo, são tentativas para encontrar a forma.
O que você tem lido de literatura nacional e estrangeira? Que autores mais te inspiram no momento e por que?
Lúcia Hiratsuka - Duas obras que li há pouco tempo e tem a ver com memória: Humanos exemplares, de Juliana Leite, e Polícia da memória, de Yoko Ogawa. Ambas trazem uma linguagem delicada e forte, triste de doer, repleto de humanidade, romances que me cativaram do início até o final.
E cito também Os da minha rua, de Ondjaki, infância e memória a partir de um lugar. Os contos breves, explorando situações simples e sutis, me inspiraram bastante para construir um texto/roteiro para um livro ilustrado.
Na sua trajetória como autora, você já passou por diversas concepções de criança e de literatura. O que é hoje, para você, a literatura para a infância?
Lúcia Hiratsuka - A minha concepção de infância creio que não mudou tanto, de alguma forma estou me conectando com o que me encantou lá atrás. As cantigas, os contos clássicos ou lendas que chegavam nas revistas japonesas, falavam da sobrevivência, da busca de um novo caminho, conflitos com o entorno, as transformações da natureza.
Percebo que, no Brasil, cresceu o interesse em entender a linguagem dos livros ilustrados, com pesquisas em universidades, cursos, palestras. Há um espaço maior para trocas, uma diversidade na produção e diversidade de autores, cada um buscando sua identidade e sua expressão artística, o que é bem bacana.
No livro Amanhã, memórias autobiográficas de infância mesclam a História com letra maiúscula com as histórias subjetivas da autora. Crédito: Arquivo pessoal
Para você, tanto como autora quanto como leitora, o que um livro precisa ter para perdurar na memória do leitor, seja ele criança ou adulto?
Lúcia Hiratsuka - Conto uma experiência, creio que foi aos 8 ou 9 anos, li um romance retirado da estante da minha mãe. Nunca mais esqueci do enredo, nem dos detalhes. Com certeza a história e a linguagem eram instigantes, mas além disso veio de encontro às minhas questões: o que existe lá longe? Quais serão os desafios hoje e amanhã? Existe destino, ou são apenas escolhas?
Como você pratica sua habilidade de inspiração hoje?
Lúcia Hiratsuka - Tento olhar ao redor. Já me aconteceu algumas vezes, numa conversa, capturar uma ideia. Nunca a história inteira, apenas uma possibilidade. Não chego a anotar, o que me toca ou intriga vai tomando forma aos poucos.
Talvez, ao divagar, esteja criando um terreno fértil para a história brotar. Quando encontro um tempo, faço desenhos ou rabiscos a partir do real, ou registro em foto o que me chamou atenção, para trabalhar depois. (Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora)
Conviver com crianças alimenta o seu trabalho? Como as crianças te afetam diretamente, como artista e também como indivíduo?
Lúcia Hiratsuka - O contato com o outro sempre me afeta e nutre como indivíduo, e consequentemente como artista. As perguntas das crianças (ou mesmo adultos), já me dá uma oportunidade de contar uma história ou de organizar uma narrativa.
E, no caminho contrário, como nós adultos podemos alimentar nas crianças a ideia de um futuro possível, sem sobrecarregá-las com a responsabilidade de “serem o novo amanhã”?
Lúcia Hiratsuka - A arte nos ajuda a olhar para a natureza, vida em constante mutação.
Acredito que nós mesmos precisamos estar nutridos para poder compartilhar uma ideia de um futuro com as crianças. (Lúcia Hiratsuka, escritora e ilustradora)