Para realizar algo, as pessoas percorrem vários caminhos diferentes. Há jornadas longas ou rápidas, espinhosas, tranquilas, passo a passo ou aos saltos… Às vezes, tem até mudança de planos no meio. No entanto, existe algo comum a todos esses caminhos: eles sempre começam com o um sonho, um desejo. Sonhar é importante para saber onde se quer chegar. E também é fundamental para ter sucesso na vida adulta, diz a ciência: quem mais sonha, mais bem-sucedido é. Por isso, é importante que os adultos incentivem as crianças a sonhar (há dicas práticas para ajudá-las, mais abaixo). A literatura infantojuvenil, com biografias e histórias de muitas crianças e jovens inspiradores, é um dos aliados neste processo. Esse pode ser o começo de uma jornada inesperada e transformadora, não só para a criança e a realidade que ela vive, como para o mundo.
Página do livro Entre sonhos e dragões, que fala dos sonhos e da resistência de três meninas afegãs
Veja o exemplo de Greta Thunberg (contada no livro Ninguém é pequeno demais para fazer a diferença, da Companhia das Letrinhas, 2020), e também das afegãs Meena, Sadaf e Shamsia, em Entre sonhos e dragões, o novo livro de Adriana Carranca (autora do best-seller Malala, a menina que queria ir para a escola, 2015), também pela Companhia das Letrinhas. E da determinação da cantora Nina Simone (no livro Nina, 2022, Pequena Zahar), da paleontóloga Mary Anning (em Mary Anning e o pum dos dinossauros, 2022, Companhia das Letrinhas) e da arquiteta Lina Bo Baldi (em Lina, 2020, Pequena Zahar) quando crianças.
Ou o exemplo de brasileiros como Rebeca Andrade, a maior ginasta feminina brasileira, ouro no individual geral do Mundial de Ginástica de 2022 e vice-campeã olímpica em Tóquio, que acreditou no seu sonho e foi incentivada pela mãe e os irmãos a não desistir da atividade, muitas vezes andando duas horas pra chegar ao Programa de Iniciação Esportiva da prefeitura de Guarulhos (SP). E de tantos outros que se destacaram no esporte, como a judoca Rafaela Silva (ouro olímpico em Tóquio e no mundial), o canoísta Isaquias Queiroz (medalha de ouro em Tóquio), o boxeador Robson Conceição (ouro em Tóquio), mas também em outras áreas, como a mineira Sofia Santos de Oliveira, que em 2022 conquistou uma bolsa para estudar na Universidade de Harvard, ou a alagoana Nicole Oliveira, que descobriu 35 asteróides e entrou para a Global Child Prodigy Awards 2022, uma lista que reúne 100 crianças prodígio no mundo. Todos jovens e crianças que foram estimuladas a sonhar alto, apesar das adversidades.
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Bravas (e sonhadoras) meninas afegãs
Existe uma estrada até mesmo ao topo da montanha mais alta (provérbio afegão, no livro Entre sonhos e dragões)
O provérbio afegão acima abre o livro Entre sonhos e dragões, de Adriana Carranca, que é escritora e jornalista, especializada na cobertura de conflitos, crises humanitárias e direitos humanos. Nesta obra, ela conta as histórias verídicas (com narrativa literária) de três afegãs que tinham sonhos praticamente impossíveis para meninas que viviam em um país em guerra, dominado por fundamentalistas. Shamsia queria ser artista, Meena queria ser música e Sadaf queria lutar boxe. Em meio a todas as dificuldades e improbabilidades, inclusive a forte segregação das mulheres, elas acreditaram nos seus desejos e trataram de fazer o possível e o impossível para realizá-los. Venceram preconceitos e normas de gênero para seguir com seus sonhos e espalhar esperança de paz, pela música, pelo grafite ou pelo esporte - interrompidos com a volta do Talibã após a retirada dos Estados Unidos do país, em 2021.
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Além das três garotas afegãs, Entre sonhos e dragões tem ilustrações de N.N., uma designer de família afegã, nascida no Irã, que voltou ao Afeganistão aos 25 anos, quando o Talibã recuou diante da entrada dos Estados Unidos. Ela trabalhou como designer gráfica, desenhou personagens de animações e recebeu prêmios. No entanto, com a retirada das tropas norte-americanas da região, precisou refugiar-se novamente no Irã, agora com seu filho. Uma história de sonhos pausados - mas não interrompidos.
Desistir, jamais! A história de Nito Fernandes e o projeto Talentos do Morro
O sonho faz parte da infância, e deveria continuar fazendo da vida adulta. Assim como as garotas afegãs, várias crianças e adolescentes ao redor do mundo sonham com uma vida diferente ou em transformar suas realidades. Nito Fernandes não vive no Afeganistão, mas também mora em um território que está sempre em "guerra", no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. A violência, a pobreza e o tráfico de drogas são alguns dos elementos que cerceiam o sonho de muitas e muitas crianças que nascem em comunidades pobres no Brasil. “Aos 12 anos, eu tive uma oportunidade. Ganhei um instrumento e a promessa de que, quando eu aprendesse a tocar, eu entraria em um grupo de pagode. Esse instrumento salvou minha vida, porque eu poderia estar em outro caminho ou nem estar mais aqui”, afirma. Hoje, Nito ajuda outras crianças a realizarem seus sonhos.
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“Em 2020, veio a pandemia e o cenário era caótico aqui no Alemão. Eu via várias crianças e adolescentes na rua, querendo fazer alguma atividade. As escolas estavam fechadas, a Vila Olímpica também. Eles não tinham acesso a nada”, lembra Nito. Foi aí que ele e mais dois amigos tiveram a ideia de se unir para oferecer, inicialmente, aulas de música para essas crianças. “A ideia era começar com 20 alunos e, só na primeira semana, recebemos 150 inscrições de pessoas interessadas”, relata. Assim nasceu a ONG Talentos do Morro, presidida por ele. "O trabalho é captar crianças e adolescentes da favela, desenvolver um trabalho com eles, por meio de oficinas, de diversos cursos que temos, e inseri-los no mercado de trabalho”, explica.
As crianças são estimuladas a sonhar e aprendem a ir mais longe, com a ONG Talentos do Morro, que atua no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Foto: arquivo ONG Talentos do Morro
Para Nito, os sonhos são muito importantes. Afinal, foi graças a um sonho realizado lá atrás que ele está aqui para contar e fazer história. Mas a realidade não é simples. São muitos os desafios, a começar pela fome. “Recebo crianças que não tomaram o café da manhã e não almoçaram no dia”, conta. Além disso, há a falta de instrumentos musicais. Eles recebem doações e usam alguns emprestados, mas se tivessem mais, conseguiriam atender a um número maior de crianças e adolescentes.
Incentivar os pequenos a ter anseios na vida e mostrar a eles que podem, sim, trabalhar para conquistar seus objetivos é importante em qualquer lugar. Mas é mais ainda em locais como o Complexo do Alemão.
Como moramos em um lugar muito vulnerável, se você perguntar, 80% das crianças aqui dentro da favela vão te responder que não têm sonhos. Nosso trabalho é mostrar que tudo é possível. (Nito Fernandes, presidente da ONG Talentos do Morro)
Ainda que a ONG seja relativamente jovem, com dois anos e meio de existência, Nito se emociona com a história de algumas crianças. Ryann é um dos alunos que surpreende e emociona com seu talento. “Ele começou na Talentos do Morro aprendendo percussão, aos 12 anos, mesma idade que eu tinha quando comecei a tocar”, diz o presidente. Rapidamente, o menino foi pegando gosto pela arte e se aperfeiçoando. Em pouco tempo, aprendeu a tocar cavaquinho e entrou no curso de DJ. “Ele me surpreendeu porque aprendeu de maneira veloz a mexer com a música. Em uma apresentação dele, fiquei impactado. É isso que nos faz continuar seguindo e mostra que estamos no caminho certo. É uma vitória”, celebra. “Estou vivendo o meu sonho. Mostrar para eles que é possível chegar lá é meu combustível do dia a dia, porque quando eu acordo, penso neles, vejo cada um com um futuro promissor. Não consigo tirar as crianças do tráfico, porque, aqui, o tráfico, infelizmente, reina, mas consigo colocar uma barreira, para que elas possam ter opção. Você acaba oferecendo diversos sonhos a elas”, completa.
Ryann é um dos meninos atendidos pela ONG Talentos do Morro: aprendeu rapidinho a tocar percussão, cavaquinho e a arte de ser DJ. Foto: arquivo ONG Talentos do Morro
Os benefícios de sonhar grande, sonhar alto
Histórias como a de Nito e de todas as crianças que passam por essa e outras ONGs mostram que sonhos plantados podem dar frutos, mesmo nos solos mais inóspitos. E isso tem comprovação científica. Um estudo que analisou dados de 17 mil crianças, ao longo de 64 anos, mostrou que quanto mais alto as pessoas sonham na infância, mais sucesso elas têm na vida adulta. A pesquisa, realizada por cientistas da Universidade Carlos III, de Madri, na Espanha, em parceria com a Universidade de Basel, na Suíça, mostrou que ter aspirações de vida na infância é tão ou até mais importante do que a inteligência ou ascendência familiar para obter sucesso mais tarde.
Ainda no mesmo estudo, os pesquisadores descobriram que a influência dos pais e dos professores impactava na formação de aspirações acima do nível socioeconômico das famílias e de suas próprias habilidades. Isso quer dizer que o papel dos adultos ao redor ao incentivar os sonhos das crianças, de fato, ajuda a moldar esses desejos e, eventualmente, as realizações futuras - mais do que a posição socioeconômica da criança. O trabalho de Nito, com a ONG, por exemplo, pode, sim, ter uma força importante na engrenagem de mobilidade social dos alunos, em um futuro não tão distante.
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“Quando temos filhos, precisamos entender que, além de nossas responsabilidades e cuidados, é nosso dever ensiná-los a conquistar os objetivos deles”, aponta a psicóloga e terapeuta cognitiva Lala Fonseca, de São Paulo (SP).
Sonhar alto é o destino final. Mesmo que a direção seja alterada futuramente, é importante ter um ideal. É preciso ensinar as crianças a sonhar, a conquistar e a ‘pescar’. (Lala Fonseca, psicóloga e terapeuta cognitiva)
Na prática, veja como estimular as crianças a sonhar
Para a especialista, o estímulo ao sonho pode ter etapas para que se possa ter o sabor das pequenas conquistas e sentir que é possível chegar mais longe, aos poucos. “Grandes sonhos podem ser parcelados em objetivos menores. Ao conquistar uma meta tangível, conseguimos nos perceber em direção ao sonho maior e nos sentimos ainda mais estimulados”, explica Lala.
Como os pais e professores podem estimular as crianças a sonhar, na prática? A psicóloga Lala dá três dicas importantes:
1. Conversar com as crianças sobre os sonhos que você tinha e conquistou, incluindo a vida do seu filho se for o caso (ou estar ali, dando aula para aqueles alunos);
2. Perguntar sobre os sonhos da criança e, juntos, pensarem em primeiros passos: o que precisa ser feito para que a criança chegue lá um dia?
3. Comemorar sempre com a criança as pequenas conquistas, mesmo que sejam coisas aparentemente simples, como colocar uma meia, escrever uma letra, ir bem em uma prova ou conseguir interagir com um novo colega.
Não é porque algo é simples para você que também será simples para o seu filho. O estímulo positivo reforça a possibilidade de o sonho ser algo tangível. (Lala Fonseca, psicóloga e terapeuta cognitiva)
E quando o sonho dá errado?
Com certeza, se você já se decepcionou em seus próprios sonhos, certamente está se perguntando se estimular a criança a sonhar alto também não pode proporcionar uma dor maior caso o desejo dela não se realize. “As decepções fazem parte da vida”, explica a psicóloga. “O custo emocional é proporcional à aprendizagem. Ou seja, é mais fácil não fazer nada, incluindo evitar sonhar. Aprender a lidar com a decepção, nos ensina a reprogramar o caminho e a nos aproximar do que desejamos”, aponta. O medo da frustração não deve ser uma desculpa. É preciso deixar as crianças sonharem - e sonhar com elas.
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