Kiusam de Oliveira, Sonia Rosa e suas literaturas negro-brasileiras-afetivas

05/06/2023

Linebeiju (Literatura Negro-brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil) e Literatura Negro-afetiva. O que esses dois termos contemporâneos têm em comum? Frutos deste nosso período histórico que ainda vive sob as armadilhas do racismo estrutural, foram criados, respectivamente, por duas das mais expressivas intelectuais brasileiras que hoje pensam o potencial identitário e antirriacista da literatura voltada ao público infantil e juvenil: Kiusam de Oliveira e Sonia Rosa

Ilustração de Bárbara Quintino no livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar).

Os dois termos nomeiam uma forma autoral, e necessariamente coletiva e social, de fazer livros para crianças e jovens no Brasil. Uma escrita que considera não apenas o protagonismo negro nas histórias e a representividade de personagens e situações narradas, mas também a importância de contemplar a sutileza das relações com a sociedade ao redor e o próprio mundo interior dos leitores, marcado por subjetividades que vão muito além de perceber-se enquanto um corpo negro. Duas literaturas, acima de tudo, afetivas, no sentido mais amplo da palavra, de uma disposição ativa para o outro, que deixa-se afetar e influi sobre o mundo.

Mais do que isso, as conceituações que elas criaram para definir suas escritas delimitam a dimensão política das duas artistas, e delimitam a importância do nome na contramão dos silenciamentos e apagamentos de identidades e autorias negras ao longo da História, não só na arte, mas na experiência social.

Literaturas em conexão

Ambas as autoras lançam quase simultaneamente, pelo Grupo Companhia das Letras, novos exemplares desses dois conceitos: pela Linebeiju, Kiusam publica Omo-Oba: histórias de princesas e príncipes (Companhia das Letrinhas), com ilustrações de Ayodê França, e pela Literatura Negro-afetiva, Sonia traz Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar), com ilustrações de Bárbara Quintino. Para celebrar este momento especial, convidamos Kiusam e Sonia para formular perguntas uma à outra - mas, antes, fazemos uma breve apresentação das entrevistadoras-entrevistadas.


Quem é Sonia Rosa

Consultora de letramento e contadora de histórias, a carioca Sonia Rosa é mestre em relações étnico-raciais e tem mais de 50 títulos publicados. Dentre eles, estão Os tesouros de Monifa (Brinque-Book, 2009), ilustrado por Rosinha, e Palmas e vaias (Pallas, 2009), com ilustrações de Salmo Dansa, voltados para o público infantil.

Além disso, publicou também obras de não ficção, como Entre textos e afetos, formando leitores dentro e fora das escolas (Malê, 2017) e Literatura infantil afrocentrada e letramento racial: uma narrativa autobiográfica (Jandaíra, 2022). Este último nasceu de sua dissertação de mestrado, que apresenta análises de livros escritos por mulheres negras com representação de personagens femininas negras, a partir de um mapeamento da literatura para a infância que enaltece o protagonismo autoral e a representatividade de meninas e mulheres negras.

LEIA MAIS: Sonia Rosa fala sobre Raquel Trindade: 'Heroína negra inesquecível' 

 

Quem é Kiusam de Oliveira

Nascida em Santo André, no ABC paulista, Kiusam de Oliveira é pedagoga, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutora em educação. A autora atua também como formadora de profissionais de educação nas temáticas educação, relações étnico-raciais e de gênero, com foco em uma educação antirracista. 

Com mais de duas décadas de experiência como educadora, publicou livros para crianças que colocam a experiência cotidiana no centro da narrativa, como Tayó em quadrinhos (Companhia das Letrinhas, 2021), Pequeno manual de meditação para crianças que querem se conectar com o mundo (Pallas Mini, 2022), e O black power de Akin (Editora de Cultura, 2020), com ilustrações de Rodrigo Andrade. 

Sua obra tem sido celebrada no Brasil e mundo afora, em prêmios e distinções. Um de seus livros, O mundo no black power de Tayó (Peirópolis, 2013), foi considerado pela ONU um dos dez livros mais importantes do mundo para a promoção dos Direitos Humanos.

 

Entrevista cruzada 1: Sonia entrevista Kiusam 

A escritora e educadora Kiusam de Oliveira, com o livro Omo-oba: histórias de príncipes e princesas (Companhia das Letrinhas). Crédito: Divulgação

 

Sonia Rosa: Qual a importância dessa publicação (Omo-oba: histórias de príncipes e princesas) para a formação das crianças?

Kiusam de Oliveira: Total. Acredito que um livro, a partir da história elaborada contida nele, pode promover muito mais que diversão: pode produzir cura. Os mitos têm essa função de curar nossa alma, e não é diferente com relação aos mitos africanos. 

Os mitos selecionados para o reconto nesse livro têm essa função: curar nosso ser reativando a conexão com nosso DNA Mitocondrial Africano de forma lúdica, trazendo nas palavras uma musicalidade ancestral em que a oralidade esteja presente na forma escrita desse registro. 

É todo o trabalho que tenho ao recontar tais mitos, pautado em uma responsabilidade ancestral, missão que me foi dada para regenerar a essência de quem chegar até essa publicação. (Kiusam de Oliveira, escritora)

Sonia Rosa: Você, que é uma artista plural, considera a possibilidade desse maravilhoso livro ganhar outros formatos? Um espetáculo ou virar série infantil na televisão e/ou plataformas de streaming?

Kiusam de Oliveira: Adorei a pergunta: sempre. Sou uma artista multimídia e tudo o que faço é pensado para as diferentes plataformas, para que um número cada vez maior de pessoas tenha acesso àquele conteúdo que, para mim, é essencial para o bem-viver de cada ser. Acessibilidade é a palavra.

Sonia Rosa: Qual o retorno mais especial que você já recebeu com esse texto, hoje um livro encantador?

Kiusam de Oliveira: Omo-Oba vem de longe – 2009 – e agora em casa nova, com roupa nova: é sempre espetacular. O maior retorno que tive foi a quantidade de pessoas que por dia me procuravam, desde 2021, quando não mais encontravam o livro pela editora anterior [Omo-Oba teve uma versão anterior, publicada em 2009 pela Mazza Edições] dezenas de pessoas por dia, durante todos esses anos, ávidas pelo livro. 

A própria editora Companhia das Letrinhas me ajudou nessa busca, acionando sebos do país: eu não teria conseguido tamanha ação. Eu só tenho a agradecer a essa editora que é gigante em suas ações, nos profissionais sensacionais que ela abriga. Gratidão, Companhia das Letrinhas por reconhecer isso e proporcionar uma nova etapa de vida para essas histórias, capazes de salvar vidas.

Finalmente, o livro chegou e agora sou capaz de entender o que diziam sobre ele: é um clássico da literatura infantil. (Kiusam de Oliveira, escritora)

 

Entrevista cruzada 2: Kiusam entrevista Sonia

 

A escritora e pesquisadora Sonia Rosa, com seu livro Meu nome é Raquel Trindade, mas pode me chamar de Rainha Kambinda (Pequena Zahar, 2023). Crédito: Arquivo pessoal

 

Kiusam de Oliveira: Qual a importância em trazer a história de uma personalidade negra como Raquel Trindade, no formato de um livro? Qual o ganho para a literatura brasileira?

Sonia Rosa: A importância é a valorização da existência negra. E também de sua força e sua inteligência, sua luta e seu legado. Quero levar o nome da Raquel Trindade e sua linda trajetória para todo o Brasil. Ela é uma grande referência.

Kiusam de Oliveira: Como seus leitores/as e o mercado estão recebendo esse livro?

Sonia Rosa: Acredito, e desejo de coração, que seja com muita alegria. Mais uma heroína negra em minha obra. E também mais uma história para a ampliação do conhecimento de mundo das crianças, para o entendimento do fazer e viver negro – e a força disso. Além disso, é também mais uma possibilidade de letramento racial por meio da literatura para jovens leitores e suas famílias. Sou muito otimista.

Que a história da artista plural Raquel Trindade seja abraçada por todos os leitores! (Sonia Rosa, escritora)

Kiusam de Oliveira: Qual a lembrança que te marca em relação a esse livro, incluindo por parte da família da grande Raquel?

Sonia Rosa: Conversei com os filhos de Raquel, principalmente com Vitor. Entrei em contato com as suas palavras de ensinamento e sabedoria ditas a mim em nossa convivência quando era jovem e frequentava sua casa no Embu das Artes. 

Trago neste livro a presença viva de Raquel contando, ela mesma, a sua própria história. Protagonizando a narrativa, trazendo seus afetos, suas memórias de formação artística (iniciada dentro de sua própria casa). Optar pelo formato autobiografia foi uma escolha feliz, a arte eterniza mesmo a gente.

 

(Texto: Renata Penzani)

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