Vale tudo na escola?
Essa foi a pergunta que deu início às discussões da quarta edição da Jornada Pedagógica da Companhia na Educação, que em 2023 tem como tema norteador Leitura e Literatura na escola: um direito de toda a comunidade escolar. O evento pretende trazer discussões importantes acerca da leitura e da literatura e o papel da liberdade de escolha como princípio democrático e libertador da educação. Dentro desta proposta, a Jornada propôs, para esta edição, temas como censura, gênero e sexualidade, meio ambiente, ancestralidades. “Debater e refletir publicamente sobre temas que geram dúvidas e incômodos no ambiente escolar é necessário e se faz urgente neste contexto de pós-pandemia em que tivemos uma evasão escolar muito grande”, reforçou Rafaela Deiab, da Companhia na Educação na abertura do evento.
Para o primeiro dia de debates, a Jornada trouxe o tema da censura no âmbito literário dentro da escola, levando em consideração que vivemos num contexto importante de discussão sobre os limites entre democracia e censura na sala de aula. A mediadora do encontro, Débora Alves, editora na Companhia das Letras e curadora da Jornada, reforçou que este é um momento crucial para essa discussão. “Censura, patrulhamento, controle, ataques, são ideias que não combinam nem com uma educação que se quer libertadora nem com o potencial humanizador da literatura”, provocou ela. Dando continuidade ao debate, foram convidados Vima Rossi Martins, doutora e professora de Estudos Comparados de Literatura da USP e o escritor do premiado livro O Avesso da Pele, Jeferson Tenório.
Literatura e liberdade sempre estiveram juntas
Vima, que desenvolve pesquisa sobre formação do leitor literário, trouxe à tona a realidade de censura vividos nos últimos anos, em que houve o avanço do conservadorismo e, com isso, o cancelamento de autores em nome da defesa de temas como família, religião e até mesmo do campo político. “Tivemos obras como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, obras da Lygia Bojunga e outros livros que recentemente foram proibidos em algumas escolas”, lembrou ela.
Clique para assistir à primeira mesa da Jornada Pedagógica 2023, com Jeferson Tenório e Vima Martin
A pesquisadora fez um paralelo com o aumento do conservadorismo em outros países, como os EUA, que também nos últimos anos vem enfrentando censura a grandes obras, como o livro O Olho Mais Azul, da escritora Toni Morrisson. “Essas críticas e cancelamento de obras são alvo de críticas e ataques de familiares de alunos e isso acaba reverberando em instâncias dentro da escola”, explicou.
A par dessa censura que também permeia o campo político, levantado por pessoas que não são especialistas em Educação, tem um outro movimento que no meu ponto de vista é preocupante, que é a autocensura. Num clima de vigilância, hostil, em que não se sabe exatamente como será recebida uma sugestão de leitura. Isso pode levar a uma autocensura dos educadores. Essa é uma questão que afeta todos os educadores, principalmente aqueles que trabalham na Educação Básica. (Vima Rossi Martins, doutora e professora de Estudos Comparados de Literatura da USP)
Para complementar essa ideia, Vima questiona o porquê de a literatura ser alvo de tanto temor, e para tentar refletir sobre isso, traz a premissa que literatura e liberdade sempre estiveram juntas, pois trabalham a questão do imaginário. Assim, segundo ela, o principal fator temerário de forças conservadoras está nesse exercício de imaginação, que é livre e que propõe uma nova realidade social por meio da ficção. “E esse é justamente o potencial transformador da literatura, pois quando a gente imagina, vamos ensaiando possibilidade de imaginar o mundo diferente desse que vivemos, e esse é o começo para toda transformação social”, lembra ela.
O papel do mediador de leitura contra a censura
Para enfrentar o problema, segundo Vima, é preciso defender inicialmente a vontade e as decisões dos alunos, de forma que exista uma troca entre professores e leitores. Mas, sobretudo, é preciso defender a bibliodiversidade, ou seja, uma escolha de obras que contemplem títulos clássicos, contemporâneos, diferentes gêneros, com autores diversos. E, para além disso, é preciso pensar no papel do mediador. “O desafio é pensar numa mediação partindo da ideia de uma leitura compartilhada, no desafio de trabalhar habilidades de aprendizagem e de um conhecimento partilhado”, finalizou ela.
Após esse debate, o doutor em teoria literária, Jeferson Tenório, reforçou o papel do mediador nesse debate sobre a censura. O autor relembrou que para refletir sobre essas questões é importante lembrar que a literatura é anterior à escola, e que carrega valores que historicamente entram em tensão com a escola. “A invenção da escola como nós conhecemos, essa escola moderna, tenta escolarizar a vida, propondo uma espécie de ensaio para os alunos enfrentarem situações. Então você tem uma espécie de domesticação do conhecimento e dos corpos, normas, condutas, regras e em nada disso a literatura se encaixa”, disse.
Essa tensão entre literatura e escola é normal, e até certo ponto saudável. A literatura escapa à normatização e essa escolarização que a escola faz. O problema é se essa tensão acaba resultando em censura. (Jeferson Tenório, escritor)
Jeferson relatou ainda que percebeu, ao longo dos anos trabalhando em projetos de leitura nas escolas públicas, que os pais esperam que a literatura tenha um papel formativo, ensinando regras e práticas sociais que eduquem seus filhos, trazendo a ideia de materiais politicamente corretos. Ao se depararem com obras que não se adequam a esse papel, e não buscam normatizar condutas, mostram resistência. “Esse não é o papel fundamental da literatura. A literatura vem pra provocar, é uma arte e vem para desnaturalizar aquilo que a gente acha que é natural, e por isso a tensão existe”, reforçou ele. Dentro disso, o estudioso ressaltou o papel da comunidade escolar como mediadores, que é o de adaptar essa realidade literária ao ambiente escolar e, por meio disso, desenvolver projetos de leitura.
Segundo Tenório, para que existam leitores capacitados para lidar com essa tensão, é necessário bons mediadores. E para que existam bons mediadores é preciso de estratégias. “Uma estratégia bem simples é o professor andar sempre com livros. Mesmo que ele não seja utilizado em sala de aula, fazer com que o aluno perceba e, a partir disso, desenvolva um diálogo, já é uma excelente ação, por exemplo”, diz ele.
É necessário que o formador de leitores tenha uma formação filosófica e subjetiva, e o entendimento do que significa a literatura. Não é possível transformar a literatura num instrumento avaliativo simplesmente, afinal, ela não opera na mesma toada de outras disciplinas. Formar leitores vai muito mais além que colocar alunos em frente a um livro. (Jeferson Tenório, escritor)
Abordar ou evitar obras criticadas?
O escritor também falou sobre o uso de obras como as de Monteiro Lobato, autor que antes era referência para as escolas e atualmente tem seu conteúdo evitado em decorrência de envolvimento com o movimento eugenista e com o racismo em suas obras. “O que a gente precisa não é ficar discutindo se vai ou não usar Monteiro Lobato, mas como eu vou levar determinados temas para os meus alunos. Importa como eu vou lidar com esses temas e se eu conheço meus alunos pra levar essa discussão. É preciso avaliar o quanto cada turma pode ser explorada”, lembrou ele.
Para finalizar, Jeferson disse acreditar que os ataques e tentativas de censura devem continuar, pois há um entendimento de que a literatura e a arte podem muita coisa. E podem mesmo. Mas por outro lado, temos mecanismos que possibilita que a arte sobreviva apesar da censura”, finalizou.