Literatura 'crossover' e os livros que atravessam as idades

07/07/2023

Se você é jovem ou adulto e já se encantou por uma publicação indicada para o público infantil, sabe que há livros ilustrados que têm muito a dizer para quem já passou da infância. Pode ser que você tenha sido fisgado pela temática muitas vezes sensível, fraturante, identitária ou mais associada ao universo adulto, como política ou científica. Talvez tenha sido arrebatado pelas muitas camadas de leitura ou pelos desafios das estruturas narrativas, incluindo aí a linguagem visual. A verdade é que muitas obras conhecidas como infantis ultrapassam as rígidas fronteiras etárias e, se você conhece um livro que poderia (ou deveria) ser lido por leitores de 0 a 100 anos, certamente já foi impactado pela literatura crossover.

 

Ilustração do livro ilustrado Os invisíveis, parceria de Tino Freitas e Odilon Moraes, publicado pela Companhia das Letrinhas em 2021

Mas do que se trata esse conceito, tanto na teoria acadêmica quanto na prática literária, para famílias, professores, mediadores de leitura e, claro, leitores? Quais os impactos de livros direcionados às crianças que acabam chegando também ao adulto? E o contrário, de livros considerados adultos dialogarem com as crianças, também pode acontecer? 

O Blog da Letrinhas conversou sobre o tema com a pesquisadora Diana Navas, pós-doutora em Literatura pela Universidade de Aveiro e coordenadora do Programa de Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, e com a ilustradora Marilda Castanha. Formada na escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), atualmente Marilda é professora da pós-graduação "O livro para a infância", n'A Casa Tombada, em São Paulo. Pela Companhia das Letrinhas, é autora de diversos livros, como A quatro mãos, em que assina texto e imagem, e O gato e o escuro, em que ilustra um conto de Mia Couto.

“Considerando que a infância e a juventude são construções sociais – e que vivemos um período de rápidas e extremas mudanças – torna-se difícil, apenas a partir do ponto de vista cronológico, indicar um público preferencial às obras literárias”, pontua Diana, que já estudou o assunto ao lado da pesquisadora portuguesa Ana Margarida Ramos, no artigo "Narrativas juvenis: o fenômeno crossover nas literaturas portuguesa e brasileira".

As fronteiras etárias estão cada vez mais tênues. (Diana Navas, pesquisadora)

Ilustração de Wolf Erlbruch para o clássico da literatura ilustrada O pato, a morte e a tulipa, publicado pela Cosac Naify 2017 e reeditado em 2023 pela Companhia das Letrinhas.

 

O que é literatura crossover?

“Em geral, ela se refere a obras que ultrapassam diferentes faixas etárias, atraindo leitores de diferentes idades. Ainda que não seja um fenômeno recente, foi nos últimos anos, principalmente com o sucesso mundial alcançado pela série Harry Potter [de J.K. Rowling], que a crítica passou a dedicar maior atenção a esse fenômeno”, explicita Diana Navas.

A autora explica que, dentro do campo de estudos literários, o termo crossover fiction foi proposto primeiramente pela pesquisadora canadense Rachel Falconer, em 2007, autora do livro The Crossover Novel: Contemporary Children's Fiction and Its Adult Readership (em tradução livre, "O romance crossover: ficção infantil contemporânea e seus leitores adultos"). Mais tarde, em 2009 e 2013, com a também canadense Sandra Beckett, autora dos livros Crossover fiction: global and historical perspectives (em tradução livre, “Ficção crossover: perspectivas globais e histórias”) e Crossover picturebooks, a genre for all ages (“Livros ilustrados crossover, um gênero para todas as idades”), a expressão estreitou a conexão com a pesquisa sobre picturebooks, mais comumente chamados no Brasil de “livros ilustrados”. 

O propósito [da literatura crossover] é refletir acerca de uma literatura que abarca um público plural, em especial em termos etários, em razão de sua temática e arquitetura narrativa. (Diana Navas, pesquisadora)

Ilustração do livro ilustrado Minha vó ia ao cinema, de Paula Marconi de Lima e Lumina, com inspiração modernista

Em Minha vó ia ao cinema, as referências ao modernismo e ao cinema dos anos 1950 permeiam a narrativa

 

Quem diz que um livro é para criança?

Para os artistas, a delimitação de um público-alvo estrito - a partir das idades a que os livros se destinam previamente, muitas vezes em rotulações editoriais - nem sempre é uma preocupação. No entanto, muitos autores e livros continuam a ser lidos e reconhecidos dentro do que se convencionou chamar de “literatura infantil”. Sobre esse aspecto assimétrico da relação autor-obra, a pesquisadora Diana Navas ressalta que tanto a criação quanto a recepção da literatura, seja ela qual for, é uma construção inevitavelmente adulta, o que resulta nessa diferença que é construída, e não inerente ao livro. 

“Os livros são lidos e ‘classificados’ por adultos, que tendem a considerar determinados temas e estruturas narrativas mais ou menos apropriadas para uma determinada faixa etária. A ideia de que tal assunto possa interessar mais ao jovem do que a criança, ou que seja mais ‘adequado’ de ser abordado com uma determinada faixa etária, por exemplo, é algo construído pelo leitor adulto, que busca, em suas experiências e contexto, estabelecer tal delimitação”, explica.

É importante considerar que a boa literatura, de fato, ultrapassa faixas etárias. (Diana Navas, pesquisadora)

Marilda Castanha sustenta que as diferenças entre o sentido literal do texto (tanto no registro verbal quanto visual) e o imaginado por quem o lê dão maior força à obra. “Pode haver sim uma assimetria entre autor e leitor. E, de certa forma, afirmaria também que isto existe entre autor e ilustrador (um dos primeiros leitores de um texto). Ou seja, entre texto e ilustração também há esta assimetria. E ela é muito bem-vinda, principalmente no livro ilustrado”, explica a artista, que conta não pensar necessariamente no perfil do leitor de suas histórias. 

“É engraçado, ao mesmo tempo que penso no leitor, eu também não penso neste leitor. Explico: se eu, ao criar o meu trabalho, direciono o que faço para um leitor específico, para atender as necessidades dele eu vou simplesmente fechar um tanto de possibilidades. Tanto para mim, quanto para quem vai ler. Por isso que eu também não posso pensar no leitor . E principalmente: não posso subestimá-lo, pegar na mão dele, conduzir todo o processo ou ser explicativa demais”, diz a autora. Para ela, essa cautela em não fixar um único destinatário tem a ver com deixar espaços vazios para que todo leitor possa preencher com seus próprios repertórios. 

O livro precisa de lacunas. (Marilda Castanha)

Ainda assim, ela afirma identificar em seu trabalho um movimento involuntário de ultrapassar delimitações prévias de faixas etárias. “De uma certa forma, olhando agora, vejo que meu trabalho permeia isto. Dois exemplos: ilustrei O delírio (Companhia das Letrinhas, 2010), de Machado de Assis, e Bárbara, de Murilo Rubião. Não são textos pensados para o público juvenil (muito menos infantil), e ao ilustrá-los cruzei esta linha”, diz.

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Exemplos de livros para todas as idades

Embora nem sempre sejam concebidas com o propósito de cruzar audiências, inúmeras obras literárias são recebidas pelo leitor enquanto crossovers. Em comum, podemos dizer que elas conseguem atingir – com seus livros altamente pautados em um diálogo interlinguagens e camadas de leitura – as "infâncias" de cada leitor, e não somente da criança.

É o que explica também Navas, ao destacar as leituras em aberto que uma obra sem um único público-alvo pré-definido podem evocar. "Assim é o ato de leitura de uma obra crossover: ainda que o leitor não seja capaz, em razão de sua idade e experiência leitora, de acessar as diferentes camadas de sentido nela presentes, isso não o impede de fruir, de diferentes maneiras, a obra literária. (Diana Navas, pesquisadora)

São exemplos da literatura crossover alguns livros ilustrados contemporâneos como:

O pato, a morte e a tulipa, de Wolf Erlbruch (Companhia das Letrinhas, 2023),
Minha vó ia ao cinema, de Paula Marconi de Lima (Companhia das Letrinhas, 2023),
- A costura, de Isol (Pequena Zahar, 2023),
Uma luz inesperada, de José Saramago (Companhia das Letrinhas, 2022), 
- Lá fora, de André Neves (Companhia das Letrinhas, 2022),
Os invisíveis, de Tino Freitas e Odilon Moraes (Companhia das Letrinhas, 2021),
Eu falo como um rio, de Sydney Smith e Jordan Scott (Pequena Zahar, 2021), 
- Eu sou a monstra, de Hilda Hilst (Companhia das Letrinhas, 2021)
Espelho, de Suzy Lee (Companhia das Letrinhas, 2021),
- Eu fico em silêncio, de David Ouimet (Companhia das Letrinhas, 2021)
Uma aventura do velho Baobá, de Inaldete Pinheiro de Andrade (Pequena Zahar, 2020), 
Bárbaro, de Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas, 2013).

E também clássicos canônicos como:

-  O homem que amava caixas, de Stephen Michael King (Brinque-Book, 1997), 
A árvore generosa e A parte que falta, ambos de Shel Silverstein (Companhia das Letrinhas), dentre muitas outras.

Assim como a maioria dos livros para crianças de José Saramago, o texto de Uma luz inesperada (Companhia das Letrinhas, 2022) não foi escrito originalmente para os pequenos leitores, e foi publicada pela primeira vez em 1972, como crônica. Ilustração: Armando Fonseca.

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O "fenômeno" crossover e as múltiplas infâncias

O movimento da literatura crossover, definido por Sandra Beckett (em Crossover fiction: global and historical perspectives, de 2009) como um “fenômeno global”, apesar de ter uma atenção recente, não é novo, pois desde que a ficção existe, os caminhos de um livro assumem direções diversas e leituras imprevistas. Além de Beckett e Falconer, há, na América Latina, diversos exemplos de pensadores contemporâneos que se debruçam sobre o assunto. “Maria Teresa Andruetto [pesquisadora e escritora argentina] trabalha várias questões espinhosas com muita propriedade. A autora chilena Maria José Ferrada também exemplifica esta transgressão, este cruzamento. E com pano de fundo político”, destaca Castanha.

Penso que quase todos os livros ilustrados são crossover, cruzam fronteiras. (Marilda Castanha, ilustradora)

No Brasil, no campo do percurso formativo de produções acadêmicas a respeito de literaturas com potencialidades infantis, há uma trajetória recente que convida a ir além da nomenclatura usual "literatura infantil". Um exemplo é que, em 2016, a pesquisadora Cristiane Rogerio e o educador Giuliano Tierno criaram, n' A Casa Tombada, em São Paulo, a primeira pós-graduação configurada para pensar a infância e a literatura como territórios plurais: “O livro para a infância: textos, imagens, materialidades”. Em 2019, A Casa decide mudar o complemento do nome da pós, que passa a se chamar "O livro para a infância: processos contemporâneos de criação, circulação e mediação". A mudança revela um cuidado de atualização de discussões contemporâneas, e também do próprio curso em si mesmo, que passa a se voltar mais aos movimentos do livro em suas coletividades, algo que atravessa as percepções sobre como são percebidas as literaturas e as infâncias hoje.

A perspectiva assumida pelo curso e os professores, entre eles Marilda Castanha, é a de que o "livro para a infância" é, de acordo com o coletivo em questão, “muito mais do que uma etapa a ser 'superada na vida de um leitor' ”.

Gosto bastante da nomenclatura ‘literatura para a infância’ e até utilizo para nomear o que faço. Mas, com uma ressalva: gosto também de pensar neste termo no plural, ou seja, 'para as infâncias', isso porque as infâncias são mesmo múltiplas, distintas, plurais, com contornos culturais e necessidades bastante específicas.
(Marilda Castanha, ilustradora)

"Uma infância num país em guerra, e outra num país democrático jamais são iguais”, diz a autora, em uma ressalva fundamental no contexto social. Em sua fala, a autora chama atenção para um aspecto frequentemente apagado, quando a palavra "infância" é usada em termos abstratos, desconsiderando os fatores sociais, políticos, culturais e econômicos que dimensionam sua subjetividade.

Não por acaso, em governos conservadores, é comum que a infância seja utilizada em um campo de disputa, em nome da manutenção dos valores e do poder de uma classe dominante. “Os fatores políticos, sociais, financeiros, culturais que infelizmente trazem desigualdades para essas infâncias. E tem o fator tempo também: a infância dos meus pais foi muito diferente da minha, que também foi diferente das dos meus filhos. Resumindo, não há homogeneidade nas infâncias”, sintetiza Marilda. 

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E a “literatura infantil”?

Enquanto produção, considerando uma perspectiva Ocidental, a literatura infantil nasceu na França no século XVII, com Charles Perrault (1628-1703). Até então, os livros não eram criados com o propósito específico de se dirigir à criança. Os recontos de histórias populares, que hoje conhecemos como contos de fadas, a exemplo de “Cinderela” ou “O gato de botas”, eram inicialmente destinados a adultos e circulavam pela tradição oral. O próprio conceito de infância era completamente diferente - na Idade Média as crianças eram tratadas como miniaturas de adultos, e as especificidades do ser criança só começam a aparecer com mais força no século XVII.

O que conhecemos atualmente como “literatura infantil” (e também “literatura infantojuvenil”) tem uma definição escorregadia. Ao mesmo tempo em que pertence a um discurso habituado da sociedade, sendo utilizada de forma naturalizada ou mesmo crítica, há também um outro lado, o fato de que o termo recebe hoje contornos específicos, conectados ao momento histórico presente - em que o levante por subjetividades e identidades plurais pauta o debate coletivo. Pensar a infância hoje é manter-se atento à particularidade de que não é possível capturá-la enquanto conceito ou representação. É o que indica Marilda Castanha, quando perguntamos como ela diferencia um livro “adulto” de outro “para crianças”.

“Hoje, essas duas definições ficaram mais complexas para mim. Se a gente ‘adjetiva’ os livros para a infância, eles entram, infelizmente, como mais um produto num rol de coisas pensadas para o segmento ‘infantil’. Mas na verdade, há uma produção de livros para a infância que transcendem esta questão, e que não se restringem literalmente a essas determinações”, ressalta Castanha.

 

Arte e potencialidade social

A literatura infantil – e suas acepções derivadas, "literatura juvenil" ou "infantojuvenil" – carrega marcas de origem que devem ser observadas com cautela. Se, historicamente, o conceito de "literatura infantil" acompanhou o próprio surgimento da ideia de "infância", os valores que ela reproduziu, por séculos, incluíram a separação entre adulto e criança, além do aspecto moralizante ligado à escola como esta era concebida no período.

Em uma entrevista concedida no ano 2000, quando foi premiada com o Hans Christian Andersen, a escritora Ana Maria Machado, uma das precursoras brasileiras da noção de uma literatura sem adjetivos para delimitar o público a que suas obras se destinam, chama a atenção para a importância de dissociar a literatura do caráter pedagogizante: "Temos noção de que literatura infanto-juvenil não é uma coisinha educativa para criancinhas", ela disse.

Hoje, diferenciar o que é a presença da literatura na escola (algo potente, de formação humanizante e construção de referências diversas) do que é literatura escolarizada e pedagogizante (a ideia da arte como ferramenta utilitária) é um movimento fundamental. 

No livro A leitura, outra revolução (Edições Sesc, 2017), a escritora argentina María Teresa Andruetto, referência na América Latina para pensar uma literatura que se baste como substantivo (ideia que compõe o título de outro livro seu, Por uma literatura sem adjetivos, Pulo do Gato, 2012), também incita essa discussão.

"O universal, o local, o latino-americano e o europeu, o central e o periférico, o clássico e o contemporâneo, o destinado a crianças e o publicado para adultos nos agitam e nos incitam numa rede de tensões na qual as maiores riquezas são o desacato, o incômodo e o questionamento, todos propícios à criação. Daí a necessidade de livrarmos de amarras a literatura infantil, daí a importância de centrá-la no trabalho com a linguagem", explica Andruetto, em um trecho da obra.

 

A diluição das rígidas fronteiras etárias

Transgredir audiências leitoras é hoje um indício de transformações contemporâneas, portanto, orgânicas e mutáveis. Não só a literatura, mas também o conceito de “infância” viveram transformações sensíveis. Apenas a partir do século XIX (portanto, quase dois séculos depois de surgirem na Europa as primeiras narrativas consideradas “para crianças”), é que a infância passou a ser compreendida em sua dimensão de sujeito. 

Diana comenta que as precursoras teóricas da literatura crossover, Falconer e Beckett, "acreditam que tais produções estão em consonância com nosso contexto histórico-cultural, no qual assiste-se, também, à diluição de rígidas fronteiras entre grupos etários". Ou seja, se nas sociedades contemporâneas, o que vemos é a dissolução dos limites fixos entre grupos etários, é esperado que a arte produzida dialogue com esssa realidade enquanto um dado cultural.

Um bom livro de literatura infantil pode atender também o público de literatura adulta. O livro de literatura infantil pode (e deve) ser lido, apreciado e amado por um adulto também. (Marilda Castanha, ilustradora) 

Porém, nem todo livro é capaz de dialogar com leitores de variadas idades. Convidando a refletir sobre a possibilidade de um livro de literatura geral fazer o caminho inverso no momento da leitura – isto é, do adulto para a criança –, Marilda lembra que nem sempre isso pode acontecer; há particularidades de aprendizagem da criança que precisam ser respeitadas.

“É bom lembrar que nem todo livro de literatura adulta será (e nem deve ser, por motivos óbvios) indicado e muito menos apreciado pelo público de 'literatura infantil'. E vai depender também da infância ou melhor 'das infâncias' e seus respectivos leitores”, explica Castanha.

A "literatura infantil" (e também "juvenil" ou "infantojuvenil") é uma das poucas que se define a partir dos seus destinatários. Na perspectiva de Diana Navas, mais importante que a questão etária, é a experiência de vida e de leitura que o indivíduo apresenta. "Há crianças de dez anos, por exemplo, que em razão de sua vivência e experiência, revelam competência leitora superior a um de jovem de dezesseis anos", afirma. 

Mais do que a idade e a série escolar em que se encontra a criança ou o jovem, é necessário que pais, professores e mediadores compreendam as experiências leitoras de cada indivíduo. (Diana Navas, pesquisadora)

 

Como reconhecer uma obra crossover?

Diante de uma oferta cada vez mais ampla de livros fluidos em relação ao seu público leitor, identificar os que podem ser para variadas idades - a literatura feita para leitores de 0 a 100 anos - passa por estar atento a uma série de fatores. Quais características observar?

"As obras consideradas crossover trazem desafios ao leitor em diferentes níveis, sobretudo no que se refere à temática, à estrutura narrativa e ao estilo e linguagem empregados. Essas narrativas tendem, por exemplo, a abordar temáticas diversas – desde as religiosas e metafísicas, às políticas e científicas. Normalmente, temas tabus – como sexo, violência, morte, dentre outros – estão presentes, ao lado da questão identitária, também muito recorrente nesse tipo de produção", explica Navas. 

São obras que apresentam múltiplas possibilidades de leitura, não se organizando em torno de oposições binárias – bom ou mau, certo ou errado – , revelando, ao contrário, finais abertos e ambíguos que têm o potencial de seduzir leitores com diferentes experiências de vida e de leitura. (Diana Navas, pesquisadora)

A professora complementa chamando atenção para um aspecto constitutivo da articulação entre as linguagens que compõem o livro – no caso de livros ilustrados, palavra, imagem e materialidade; no caso de livros-imagem, ilustrações e materialidade, dentre outros exemplos. "É importante que pais, professores e mediadores de leitura façam, primeiramente, a leitura do livro e verifiquem se há, a partir do enredo e da arquitetura narrativa, desafios lançados ao leitor, que rompam com os limites temáticos e de construção narrativa. Se houver a proposição desses desafios, a obra é potencialmente atrativa a diferentes públicos leitores", afirma.

 

As potencialidades dos livros crossover 

Quando refletimos sobre rotulações que podem limitar a experiência leitora, é preciso relembrar um aspecto da natureza essencial da arte, a capacidade de ir além, não só de possíveis classificações, mas também do que pensou o próprio autor.

“A arte é por princípio transgressora. E a literatura também! E o universo literário é pleno de exemplos: uma hora é um personagem que acorda transformado num inseto, outro que luta com moinhos de ventos, outro que faz memórias póstumas e dedica o livro ao ‘primeiro verme que roeu meu cadáver’. Os contos de fada então, são um desfile de experiências nada calculadas (bichos que falam, personagens que voam, abóboras que viram carruagens, meninas que conversam com lobos)”, comenta Marilda Castanha, referindo-se a exemplos de narrativas clássicas que ela considera naturalmente transgressora, como A metamorfose, de Kafka, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

O ponto fundamental é de como estas histórias (nada convencionais) nos fazem aceitar a fazer um pacto com elas. E os livros ilustrados também fazem isto. (Marilda Castanha, ilustradora)

A expressão artística e estética da literatura enquanto linguagem bastam em si mesmas, e não precisam de uma finalidade que as justifique. No entanto, é inegável que livros exercem impacto na construção subjetiva dos leitores. No caso de livros crossover, de que formas leitores de variadas idades podem se beneficiar de obras que podem ser lidas em diversas etapas da formação leitora?

Reforçando a ideia de que há histórias que possibilitam maior ou menor envolvimento com os graus de significação leitora, Diana Navas retoma a ideia do livro como um objeto de variadas camadas. "A obra literária apresenta diferentes camadas de sentido em seu processo de construção. Desta forma, de acordo com a competência, o leitor pode alcançar mais ou menos camadas, as quais, no entanto, podem ser ampliadas a partir de cada leitura realizada, em diferentes momentos de sua vida e percurso leitor", afirma a professora.

Gosto de pensar em um livro como uma espécie de rio: você pode, a princípio, se ainda não sabe nadar, apenas molhar o pé; posteriormente, pode adentrar e ter a água até os joelhos; até chegar o momento em que seja capaz de mergulhar nele. (Diana Navas, pesquisadora)

 

(Texto de Renata Penzani)

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