- Para de chorar, menino! Já passou...
- Por que essa cara feia, menina? Quando você tiver contas para pagar, vai entender o que é preocupação de verdade!
Quantas vezes, quando crianças, ouvimos frases assim, que invalidaram as nossas emoções? Embora sentimentos como tristeza, raiva, frustração, devessem ser tratados com naturalidade, geralmente são rotulados de "negativos" e varridos para baixo do tapete. Não é permitido sentir ou falar sobre essas emoções inconvenientes, que tanto constrangimento podem causar - choro, birra, explosão, isolamento. A falta de espaço para reconhecer, nomear e acolher essas emoções, que fazem parte de todos nós, é um problema por si só. E pode ainda dificultar a identificação de transtornos como depressão e ansiedade em crianças e adolescentes, em situações nas quais é necessário um diagnóstico mais sério acerca da saúde mental.
Dorinha se mantinha ocupada com as tarefas de casa - mas a solidão sempre a acompanhava -ilustração de Bruna Lubambo
A literatura pode ser uma ótima ferramenta para abordar de forma leve as emoções com os pequenos e ajudá-los a reconhecer e falar sobre os próprios sentimentos - mesmo aqueles que não estão entre os mais bonitos. Em As aventuras de Dorinha (Companhia das Letrinhas), de Claudio Thebas com ilustrações de Bruna Lubambo, a personagem que dá nome ao título é muito ativa, mas trava uma batalha contra a solidão. Por vezes, esse sentimento a deixava sem vontade de fazer nada… Até que ela resolve embrulhá-lo para viagem e transformar sua relação com ele.
Assim como fez Dorinha, é preciso encontrar maneiras para aprender a lidar com sentimentos que causam incômodo, paralisa, vergonha - e às vezes pedir ajuda. É papel dos adultos apoiar os pequenos a navegar por situações assim. Também é função deles a observação atenta, para perceber a diferença entre uma simples emoção e um processo mais sério, que requer ajuda especializada.
“A tristeza é um sentimento vivenciado no dia a dia. Algo que passa rápido”, explica a psiquiatra Luciana Gusmão, do Hospital Pequeno Príncipe (PR). “A criança pode ficar triste por não conseguir algo que quer, por saudades da mãe que viajou, pela nota da prova que não foi tão boa, mas isso não atrapalha a vida dela. Ela consegue seguir adiante e ser funcional".
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Assim como as demais emoções, a tristeza é experimentada várias vezes ao longo da vida, tanto por adultos como por crianças. “É um sentimento que causa angústia e desconforto, mas não há como poupar os pequenos”, aponta a médica. Ela explica que os pais podem dar colo e tentar ajudar a criança a identificar o que sente, mas sem taxar a emoção como negativa ou ruim, porque é algo que faz parte de ser humano.
“É importante que as crianças se frustrem porque tudo é aprendizado. O cérebro delas está em desenvolvimento e, para aprender a lidar com as emoções, é preciso experimentá-las. Ao se frustrar em um evento negativo, a criança desenvolve habilidades para lidar com a situação”, explica Luciana. Se adultos interferem, mesmo que com o intuito de proteger, a criança perde a oportunidade de desenvolver recursos próprios e não se fortalece com a experiência.
Dorinha, sempre acompanhada de sua solidão - que traz à personagem certa melancolia
Quando ligar o sinal de alerta com a tristeza
O preocupante é quando essa tristeza dura a maior parte do tempo e começa a interferir na qualidade de vida e nas relações. Se passa a atrapalhar a conexão com os colegas, se faz com que a criança não queira conversar ou brincar, se interfere nos estudos... é hora de ligar o alerta. Se o sofrimento persisitir por duas semanas ou mais e trouxer prejuízos, afetando o dia a dia e a funcionalidade, é importante buscar um profissional capacitado, especializado em infância e adolescência para realizar um diagnóstico e, se necessário, indicar o tratamento. "Isso é essencial, porque é usual que transtornos não tratados na infância persistam na vida adulta”, explica a psiquiatra.
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Além disso, a depressão, quando não identificada e tratada no momento certo, pode se agravar e chegar a pontos extremos. “No nosso hospital, que é um hospital geral pediátrico de grande porte, tivemos 115 tentativas de suicídio, entre 2018 a 2021. Só em 2022, entre janeiro e novembro, foram 64, ou seja, o número de casos aumentou significativamente”, destaca Luciana.
Depressão em crianças: números e causas
Embora a depressão e a ansiedade sejam os transtornos mentais mais frequentes, crianças e adolescentes também podem ser afetaos por outros tipos, como a bipolaridade. “A prevalência da depressão, segundo o International Association for Child and Adolescent Psychiatry and Allied Professions (IACAPAP), é de 1 a 2% em crianças menores de 12 anos e de até 7% em adolescentes”, diz a especialista.
Aos 16 anos, 12% das meninas e 7% dos meninos já sofreram algum episódio depressivo ao longo da vida (Luciana Gusmão, psiquiatra do Hospital Pequeno Príncipe)
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Mas por que será que os primeiros anos de vida, quando tudo deveria ser leve, divertido, alegre, podem ser impactados por questões tão complicadas? A psiquiatra explica que não existe uma única causa. “Os transtornos mentais são multifatoriais. Eles surgem da interação de fatores genéticos, sociais e ambientais”, aponta.
Segundo ela, um exemplo impactante e recente pode ter muito a ver com o aumento dos números: a pandemia de Covid-19. O crescimento dos casos de tentativas de suicídio entre pacientes pediátricos, citadas pela médica, pode estar relacionado ao isolamento, ao estresse, ao medo e à tristeza que marcaram a vivência pandêmica. “Foi um fator ambiental importante, que trouxe grandes mudanças no estilo de vida de pessoas em todo o mundo e afetou o bem-estar mental e físico, comprometendo a saúde, a liberdade e a condição econômica", explica a médica.
Os impactos da pandemia ainda estão presentes na nossa sociedade, se refletindo no comportamento e nos costumes que adotamos durante o isolamento. "É comum, ao avaliar crianças, observarmos uma rotina empobrecida, com muito tempo de tela. Os cursos extracurriculares, como esportes, dança, entre outras atividades, que são fatores protetores para a saúde mental, foram substituídos por essas telas. São hábitos adoecedores e com risco de causar dependência”, exemplifica.
Sinais de alerta sobre saúde mental - e como agir
Quais são os sintomas aos quais pais, cuidadores, professores e outros familiares devem ficar atentos, para identificar o quanto antes a possibilidade de uma criança ou adolescente ter transtornos sérios, como a depressão? Luciana lista alguns deles:
- Desinteresse por atividades que a criança gostava antes;
- Perda ou aumento excessivo de apetite;
- Sono excessivo;
- Tendência ao isolamento;
- Queda no rendimento escolar;
- Queixas somáticas (quando a criança chega ao pronto-socorro reclamando de dor de cabeça ou abdominal, por exemplo, mas, clinicamente, não tem nada);
- Aumento de birras e irritabilidade em crianças pequenas;
- Explosões de raiva;
- Sensibilidade à rejeição;
- Dificuldade em manter relacionamentos.
Mas atenção: vale lembrar que só um profissional qualificado pode fechar o diagnóstico, com base em técnicas e critérios específicos. O papel dos cuidadores e outros responsáveis deve ser manter uma observação atenta das crianças para detectar os comportamentos listados e, se necessário, procurar ajuda.
Experiências e conexões ajudam Dorinha a sentir menos opeso da solidão - ilustrações de Bruna Lubambo
Acolhimento: cuidado com a invalidação dos sentimentos
Além disso, é imprescindível que as crianças tenham confiança nos adultos que as cercam, para que possam se expressar, com a certeza de que serão acolhidas - e não reprimidas ou desconsideadas. Quando um adulto não valida as emoções negativas das crianças, como nos exemplos do início do texto, a situação tende a piorar. Crescem as chances de que a criança se feche ainda mais e até se culpe por achar que não está conseguindo corresponder às expectativas dos pais e adultos de referência.
“Em situações em que crianças e adolescentes estão tristes ou com depressão e os adultos questionam esses sentimentos, justificando com bens materiais ou reiterando que eles não têm preocupações de verdade, o quadro pode se agravar”, aponta a especialista. Ela ressalta que as causas da depressão e da ansiedade são multifatoriais e não se consertam com bens materiais. "A criança pode vir de uma família disfuncional; pode ser que ela tenha tudo, mas os pais brigam: estão separados; pode ser que ela sofra bullying na escola... Vai muito além do material. É claro que o fator econômico é um fator protetivo, mas não impede que a criança adoeça mentalmente”, diz ela.
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Por isso, é importante ouvir as crianças, puxar o assunto de maneira que elas se sintam ouvidas, acolhidas e à vontade - e não questionadas ou desacreditadas.
Outro ponto importante é organizar os hábitos delas. “Uma forma de ajudar é garantir que a criança tenha uma rotina de sono, de alimentação, que tenha atividades prazerosas no dia a dia”, orienta Luciana. Segundo ela, crianças que têm rotinas empobrecidas, dormem e acordam em horários inadequados, passam muito tempo no tablet ou no celular, podem se beneficiar, por exemplo, ao iniciar algum curso ou atividade de que gostem. Isso pode, inclusive, ter efeitos químicos no cérebro, com a liberação de endorfina e dopaminas, hormônios ligados à sensação de bem estar. “A sensação de prazer estimula a socialização. A criança faz amigos, sai de casa, se cansa, dorme melhor. São inúmeros benefícios”, aponta. “É uma forma de ajudar e prevenir”, acrescenta.
Lidar com sentimentos: como a ajudar a criança a construir repertório
Nem sempre os pequenos vão saber expressar o que sentem, sobretudo, quando têm menos idade. Por isso, vale tentar estimular pela parte lúdica, com uma brincadeira ou pelos desenhos.
Existem muitos livros que também podem ajudar a puxar a conversa, brinquedos específicos. Hoje, há ferramentas que auxiliam na hora de ensinar sobre sentimentos e emoções. Elas podem facilitar bastante o diálogo e a compreensão (Luciana Gusmão, psiquiatra)
“Se os pais já leram algum livro que toque, por exemplo, naquela emoção que a criança está vivenciando, fica mais fácil para ela compreender o que está acontecendo e reconhecer o sentimento”, afirma.
Já os adolescentes buscam sempre um adulto de confiança, um tio, uma tia, um irmão mais velho. “É importante que essa pessoa se aproxime, porque muitas vezes, nessa idade, é até esperado que eles tenham certa hostilidade com os pais e não consigam se abrir sempre com eles”, orienta.
Se houver qualquer dúvida, o melhor é sempre buscar um profissional de confiança, para conversar, abrir um espaço fora do ambiente de casa e avaliar essa criança ou adolescente com as técnicas e ferramentas corretas. Abaixo. selecionamos alguns títulos para incluir na sua biblioteca e colocar os sentimentos em pauta com as crianças de forma natural e divertida:
Mais livros para falar sobre as emoções
Lá e aqui (Companhia das Letrinhas), Carolina Moreyra e Odilon Moraes
Com muita delicadeza, o livro fala de um assunto que pode ser o gatilho para dificuldades emocionais de muitas crianças: a separação dos pais. Como uma casa, de repente, vira duas? É possível olhar esse acontecimento de forma positiva, mas, primeiro, é necessário acolher a tristeza.
A raiva (Pequena Zahar), José Carlos Lollo e Blandina Franco
Uma raivinha boba pode comerçar à toa sem ter bem uma razão de ser... mas pode crescer, conforme a alimentamos. Com bom humor e inteligência, o livro ajuda as crianças a compreenderem essa emoção, que pode começar pequenininha e virar uma verdadeira fúria.
Respire fundo (Companhia das Letrinhas), Sujean Rim
Um passarinho fica muito preocupado com medo de não conseguir voar como todos os outros. Então, ele recebe uma dica muito valiosa - e que pode ajudar muito também as crianças a lidarem com a ansiedade... O segredo é simplesmente: respirar fundo.
O príncipe sem sonhos (Brinque-Book), Márcio Vassalo
Sabe quando a gente tem tudo e, ao mesmo tempo, parece que não tem nada? Era o que acontecia com esse príncipe, que ganhava presentes o tempo todo, mas continuava triste, porque não conseguia ter um sonho.
Pode chorar, coração, mas fique inteiro (Companhia das Letrinhas), Glenn Ringtved e Charlotte Pardi
Todos nós, em algum momento, precisaremos lidar com o luto. E, às vezes, isso acontece ainda durante a infância. Esse livro conta a história de quatro crianças prestes a se despedir da avó, que acolhem em casa Dona Morte - e a tristeza que vem com ela a tiracolo.
Que semana! (Companhia das Letrinhas), Carl-Johan Frossén Ehrlin
Quando a família de Mário precisa mudar de cidade, ele passa uma semana difícil, cheia de emoções que não conhecia. Como lidar com a saudade? Com a dor? Com o medo? Que bom que ele encontra apoio em pessoas que o ajudam a lidar com todos esses sentimentos da melhor jeito possível.
Tímidos (Companhia das Letrinhas), Simona Ciraolo
Maurício é um polvo que prefere não chamar atenção. Envergonhado, ele sempre se esconde, evitando os olhares de todos - até do leitor. Na escola nova, ele tem algumas dificuldades por conta disso... Porém, aos poucos, acaba se surpreendendo com amizades inesperadas.
E foi assim que a escuridão e eu ficamos amigas (Companhia das Letrinhas), Emicida
O medo e ansiedade podem ser paralisantes. Mas, quando paramos para pensar nelas de outra forma, até que dá para enxergar tudo de um jeito bem diferente - e até bem divertido.
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