Para que serve a literatura?

26/03/2024

Nas últimas semanas, quem não conhecia o livro O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020), de Jeferson Tenório, passou a conhecer. Infelizmente, não por um bom motivo. Depois de uma diretora de uma escola no interior do Rio Grande do Sul filmar trechos descontextualizados da premiada obra, selecionada pelo Ministério da Educação (MEC) para distribuição escolar pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) – Ensino Médio, ela foi censurada em alguns estados. O argumento foi o de que o livro apresentaria “expressões impróprias para menores de 18 anos”. Dentre as várias discussões despertadas por este episódio, uma diz respeito ao que os livros e as escolas devem ensinar. Afinal, para que serve a literatura?

Ilustração na capa de O avesso da pele

Ilustração de capa de O avesso da Pele

Como se trata do PNLD 2021 Ensino Médio, a obra foi  aprovada e teve leitura recomendada para adolescentes de 14 a 17 anos, O avesso da pele conta a história de Pedro, um menino negro cujo pai foi assassinado por policiais ao ser confundido com um criminoso. De maneira realista e intensa, o livro trata de racismo, identidade, educação, violência, trajetórias de vida/amadurecimento e questões de sexualidade, sobretudo relacionadas à fetichização dos corpos negros. Todos temas importantes e inerentes à realidade do Brasil, um país em que os casos registrados de racismo aumentaram 68% no último ano, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Repare: estamos falando dos casos registrados. Imagine a quantidade que ficou de fora dessa conta. 

É um assunto confortável? Para muitos, não. E a censura do livro só confirma isso. Nas redes sociais, Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele, comentou que: “O mais curioso é que as palavras de 'baixo calão' e os atos sexuais do livro causam mais incômodo do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras. Não vamos aceitar qualquer tipo de censura ou movimentos autoritários que prejudiquem estudantes a ler e refletir sobre a sociedade em que vivemos”.

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E a literatura na escola possibilita justamente isto: refletir sobre a sociedade, a partir de perspectivas, muitas vezes, diferentes das nossas - o que nem sempre ou quase nunca é confortável, mas é necessário. “A literatura nos auxilia a enxergar o mundo a partir de um ponto de vista pouco convencional e, quando você pensa em educação, isso é fundamental. Afinal, se fôssemos reproduzir apenas o senso comum, a educação não seria necessária”, explica o professor de literatura Bruno Santana (@literabruno), que também é coordenador pedagógico. 

Os livros, em sala de aula, podem exercer um papel instrumental, como os de ilustrar e apresentar a gramática, os contextos sociais, históricos e a própria literatura em si. Porém, além disso, eles trazem esse contato com o mundo. “Um contato que seria impossível de outras maneiras”, diz o professor. “De que outra forma eu poderia saber como viveram os russos durante as guerras napoleônicas ou de que forma poderia saber como era a sociedade brasileira do século 19, o que pensava uma pessoa dessa época ou como sofria um jovem brasileiro do século 18?”, exemplifica. A literatura, ele aponta, trabalha com a linguagem e todas as suas minúcias e entremeios.

 

“Na sala de aula, a literatura é fundamental porque ajuda a construir o humano, nos permite conhecerpessoas, em diferentes tempos; nos permite pensamentos que, sozinhos, seríamos incapazes de pensar” (Bruno Santana, professor de literatura e coordenador pedagógico)

 

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Provocação e desconforto: experiências humanas na literatura 


Para o professor, a literatura é uma potente manifestação do humano, dos tempos ou do gênero individual. “E os tempos, o homem e o gênero humano nem sempre são confortáveis ou fáceis”, aponta. “Se você lê Machado de Assis e acha aquilo confortável, possivelmente, você não entendeu muito bem. Se você lê Carolina Maria de Jesus e acha aquilo confortável, talvez você não tenha entendido muito bem. Se você lê Os sertões e acha confortável, talvez você não tenha entendido muito bem”, exemplifica. Ele afirma que a discussão sobre o racismo na sociedade brasileira é fundamental e que o caso do livro O avesso da pele traz uma discussão importante, embora a literatura seja muito rica para ser apenas objeto de análise. “A literatura precisa ser considerada na linguagem, que é sua característica específica, precisa ser considerada no campo artístico, mas ela tem de ser olhada nessa potência, principalmente quando temas tão fundamentais como o racismo são abordados”, opina. 

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Bruno lembra ainda de outro exemplo que gerou muita polêmica em sala de aula e fora dela, mas que rendeu experiências transformadoras em sua vida profissional. Foi quando o álbum Sobrevivendo no inferno, lançado em 1997 pelos Racionais MC’s, virou obra obrigatória para o vestibular de 2020 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Foi possível discutir Brasil, juventude, a questão racial, cultura. E aqueles que achavam que a obra não devia constar na lista de um grande vestibular precisaram argumentar com aqueles que achavam que sim, deveria. Aqueles que se viam naquilo, entendiam a complexidade da linguagem de um rap e o trabalho técnico elaborado, enxergavam uma grande vitória”, lembra. “É uma obra nova e velha o suficiente para despertar o interesse dos alunos, extremamente contundente e trata de temas fundamentais, despertando uma identificação muito forte. Desta forma, engaja e prende o aluno. Foram aulas em que eu já me emocionei e que estudantes já se emocionaram”, lembra.

 


O velho novo papel da literatura no ensino básico


Tudo isso vem ao encontro do que propõe a Base Nacional Comum Curricular, o documento normativo que serve de referência para a elaboração dos currículos escolares e propostas pedagógicas da Educação Infantil ao Ensino Médio no Brasil, em instituições públicas ou privadas. Para Diego Moreira, professor, pesquisador e autor do livro BNCC na prática: Ensino Médio, a BNCC advoga sobre a formação com pensamento crítico e contextualizado com o território em que o estudante vive e com o mundo, em uma perspectiva de formação integral desses alunos. “O que a BNCC propõe é justamente a formação dos estudantes em todas as suas dimensões de humanidade, garantindo o desenvolvimento cognitivo, emocional, social e cultural”, diz ele. “A BNCC legitima que a escola tenha um papel mais importante do que fazer com que estudantes decorem listas de exercícios e assinalem o ‘X’ na resposta correta. Ou seja, amplia, legitima e legaliza que a escola tenha um papel central na formação humana. Assim, compreender integralmente o desenvolvimento da criança e do adolescente é parte inegociável para os currículos escolares”, acrescenta. 

Isso significa que não dá para adotar, em sala de aula, um livro vazio de conteúdo e que seja lido apenas pela forma. É como usar frases para alfabetizar tais como “O vovô viu a uva”, que não querem dizer absolutamente nada. É preciso que o aprendizado tenha contexto, que estimule o envolvimento e o questionamento, que ajude na educação integral dos estudantes, um conceito que abrange não só seu desenvolvimento cognifitivo, mas também social, emocional, cultural. A literatura pode ajudar a sensibilizar crianças e jovens para atuar em pautas urgentes, estimular a criticidade, a empatia, o olhar para si mesmo, para o outro e para a sociedade.

É claro que a gramática, por exemplo, é importante e intrínseca ao ensino da linguagem. A compreensão das regras permite compreender inclusive conceitos importantes como variação linguística e contextos de enunciação. Afinal a língua portuguesa é histórica e de seus falantes, não dos gramáticos. Mas o processo de aprendizagem precisa ser contextualizado e não fragmentado, apresentando as partes que compõem o saber como parte de um todo, muito mais amplo e profundo. E isso deve acontecer desde os anos iniciais. 

 

O papel dos professores e a onda moralista


São os professores que têm a missão de apontar caminhos para a aprendizagem em meio a tanto conteúdo. “O professor tem um papel central e insubstituível para que o estudante aprenda a questionar, debater e ter criticidade. A sala de aula é o espaço reservado para que essa aprendizagem ocorra”, afirma Diego. “O docente precisa estar preparado para utilizar todas as ferramentas didáticas disponíveis para chegar ao objetivo da aprendizagem. Nesse sentido, além de pensarmos em escolas que garantam essa estrutura de excelência didática, é necessário que o professor tenha garantida a sua autonomia para exercer o ofício”, aponta. E essa autonomia tem sido tolhida nos últimos tempos, não apenas no Brasil, mas no mundo.

O avanço da onda ultraconservadora em diversos países, e por aqui também, tem resvalado no trabalho docente. “O pensamento conservador com características moralistas, no Brasil, possui forte viés na disputa da cultura, o que chamam de guerra cultural”, diz Diego. “O acirramento dos debates moralistas e conservadores coloca os professores, gestores e as escolas em situações de se evitar entrar em temáticas fundamentais para a formação dos estudantes, com medo de serem constrangidos com filmagens ou grupos de familiares que tentam cercear a autonomia das aulas e do pensamento crítico”, acrescenta. Para o especialista em educação, o professor não pode ser “criminalizado” por trazer problemas complexos para serem analisados em sala, seja por meio da literatura, de filmes, de textos didáticos ou de notícias.

“Não se ensina criticidade com imposição de pensamento, não se ensina criatividade com cerceamento do pensamento criativo dos estudantes. O professor deve, sim, guiar o estudante em suas descobertas, sem impor a sua visão de mundo ao estudante ou ficar refém dos grupos de pais que se opõem” (Diego Moreira, professor e pesquisador)

 
Escola: um lugar de resistência


A escola não é uma redoma separada do mundo. Seus muros são atravessados pelos debates que ocorrem nas redes sociais, no almoço de domingo, nos bares, nas igrejas e nos locais de trabalho. Mas, para o professor Diego, há uma diferença a ser observada. “O conhecimento sistematizado por meio da ciência não é validado pelos grupos ultraconservadores moralistas. Ou seja, o conhecimento histórico construído e adquirido pelos docentes e organizado nas escolas e universidades perdem a validade para esses grupos. É a negação do pensamento científico. Estimuladas pelo advento das fake news, as pessoas não operam na mesma matriz de pensamento, o que as torna mais vulneráveis”, ressalta. É importante lembrar que a escola é um lugar em que se disputa o modelo de sociedade. "Os currículos escolares não são neutros e nem devem ser. Currículos escolares traduzem o pensamento da sociedade e, em sociedades democráticas, as garantias legais são a forma de disputar esse lugar”, diz o especialista.

Diante desse cenário, a escola, os professores e a educação como um todo enfrentam sérios desafios. “O avanço do pensamento ultraconservador deve nos deixar em estado de alerta contra os ataques à ciência e ao pensamento crítico. É importante lembrar que a escola funciona como um bastião civilizatório, que mantém acesa a luz do conhecimento”, afirma.

E como garantir a permanência dessa função em tempos tão desafiadores e sombrios, onde as informações se confundem e o moralismo faz sombra à ciência e às discussões importantes? “Manter o diálogo com as famílias, promover aulas que alcancem as principais dificuldades dos estudantes e conseguir fazer com que adolescentes e jovens manejem o pensamento crítico, leiam os textos e contextos, sejam criativos para inventar outros mundos e se coloquem de forma autônoma na sociedade é parte dos papéis inegociáveis da educação. As marcas indeléveis que uma boa aula de literatura, a leitura de uma obra e a reflexão crítica deixam numa pessoa são a parte mais perseguida no trabalho de professores, que insistem em educar de forma integral”, completa Diego.

 

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