Quem nunca reclamou do próprio corpo?
Uns desejam ter um nariz mais arrebitado; outros, pernas mais compridas. Há quem não se acostume com os pneuzinhos que insistem em repousar na cintura ou que se queixam do culote que faz o número das calças aumentar. Há quem se incomode com as marcas que se formam ao redor dos olhos ou lamentam o colágeno que já não lhes pertence mais. Difícil encontrar alguém que não tenha uma reclamação sobre a própria aparência.
Mas e quando as críticas e censuras ao nosso corpo partem de outras pessoas?
O nome disso é body shaming, um termo em inglês que descreve uma situação que não tem nada de inédita por aqui. “Body shaming é a prática de criticar, ridicularizar ou envergonhar uma pessoa por causa de sua aparência física, especialmente seu corpo”, explica a psicóloga infantil Renata Bedran, que também é educadora parental em Disciplina Positiva.
E as crianças também podem ser alvo desse tipo de crítica. “Na infância, o body shaming pode ocorrer de várias formas, desde comentários maliciosos e piadas, até atitudes mais sutis, mas igualmente prejudiciais, como olhares ou gestos de desdém”, descreve Renata.
Em 'Cordéis para crianças incríveis', (Companhia das Letrinhas, 2024), Aninha só queria dançar balé. Mas descobriu que tem gente que acha que apenas um tipo de corpo é capaz de dançar
Aninha, personagem de uma das histórias de Cordéis para crianças incríveis (Companhia das Letrinhas, 2024), de Jarid Arraes, com ilustrações potentes de Veridiana Scarpelli, foi vítima de body shaming por ter um corpo gordo. Ela adorava dançar e sonhava em se tornar bailarina. Só que as próprias professoras achavam que a menina seria incapaz de seguir as coreografias - apenas por ter um corpo fora do padrão que se considera o de uma bailarina. Sem querer partir o coração da filha, a mãe meio sem jeito, desviava dos pedidos de Aninha para fazer aulas de balé… Então, a pequena foi sozinha buscar uma escola de dança - e a encontrou. Só que, embora tenha achado uma professora acolhedora, que a encorajava, suas colegas não se intimidaram em chamá-la de gorda e feia.
A história de Aninha é mais comum do que se imagina e pode gerar consequências tanto na forma como as crianças constroem a percepção sobre o próprio corpo, quanto na construção do que consideram como ideal de beleza. Uma pesquisa realizada pela organização australiana Pretty Foundation revelou um dado assustador: 38% das meninas de quatro anos estão insatisfeitas com seus corpos. O mesmo estudo mostrou que 34% das meninas de cinco anos pretendem fazer dieta.
No Brasil, um levantamento realizado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) mostrou que oito em cada dez pessoas já se sentiram constrangidas por terem excesso de peso.
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'Cordéis para crianças incríveis' (Companhia das Letrinhas), de Jarid Arraes
Body shaming: um constrangimento que começa dentro de casa
A pesquisa da SBEM e da Abeso revelou ainda que para 73% dos 3.621 entrevistados, o ambiente familiar é o mais hostil em relação a esses episódios que envolvem situações embaraçosas relacionadas ao corpo. E isso pode começar desde cedo.
“A autoimagem de uma criança é formada a partir de um conjunto de influências internas e externas, começando pelas interações mais próximas”, explica a psicóloga infantil Renata. A família é a primeira instituição de convívio social – e tudo pode começar ali mesmo.
Ela lembra que os pais, na primeira infância, são os maiores influenciadores. Por isso, é fundamental refletir sobre como agimos e falamos perto dos pequenos. Julgar os outros ou si mesmo pela aparência tem um peso diferente na cabeça da criança, podendo impactar profundamente seu desenvolvimento emocional e sua autoestima. “Os pais não devem falar sobre peso, imagem corporal, insatisfação corporal e dietas nem relacionadas aos filhos e nem a eles mesmo”, sugere Renata.
“A criança é afetada pela imagem que a mãe ou o pai fazem de si mesmos e pela forma como eles tratam a comida. A maior parte das pessoas com distúrbios alimentares têm pais que demonstravam um comportamento obsessivo com a comida”, Renata Bedram, psicóloga
Comentários sobre o corpo das pessoas e sobre o próprio corpo devem ser evitados
Na maioria das vezes, nem é intencional. Mas quem nunca disse na frente das crianças frases como “preciso maneirar no pão para perder uns quilinhos” ou “nossa, você viu como a Fulana tá bonita, emagreceu?”. Comentários como esses podem reforçar um ideal de corpo. Vale lembrar que corpos gordos, como o de Aninha ou os dos participantes da pesquisa da SBEM e da Abeso, sejam alvos comuns, o body shaming não se restringe a um único tipo de corpo. “Crianças magras, altas, baixas, ou com características físicas que fogem ao padrão ‘aceitável’ da sociedade — como marcas de nascença, tipo de cabelo ou cor da pele — também podem ser vítimas. Qualquer diferença visível pode ser usada como pretexto para bullying, e o impacto emocional dessas experiências pode ser devastador”, alerta a psicóloga.
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Quando o círculo se amplia - e chega às redes sociais
Conforme a criança fica mais velha, ela passa a ter acesso a outras esferas de convívio social, como outras crianças no parquinho, no condomínio, na rua e na escola. “No ambiente escolar, as comparações são inevitáveis”, destaca a psicóloga. “À medida que crescem, as crianças passam a perceber como seu corpo é visto por outras pessoas, seja por familiares, colegas ou professores - e isso afeta seu próprio julgamento”, pontua. Na história, a mãe de Aninha até tentou protegê-la, mas o sofrimento foi inevitável quando ela começou a frequentar as aulas de balé, com as meninas que zombavam dela.
Além das pressões do convívio social, a mídia em geral e, atualmente, a internet e as redes sociais, também exercem um papel de peso na formação da autoimagem e na busca por um corpo ideal. “Nelas, os meninos admiram o corpo de esportistas do sexo masculino. Já as meninas admiram as atrizes, blogueiras e cantoras famosas que são consideradas como ideal de corpo e para piorar ainda mais todo este quadro, temos, os likes, as musas fitness, os filtros e, muitas vezes, as crianças não conseguem discernir que essas imagens são editadas ou manipuladas. A partir dessas e de outras influências, as crianças crescem com um padrão muitas vezes inatingível de beleza”, aponta.
O limite entre cuidar de si e virar escravo da beleza
No início de 2024, o Tiktok foi inundado por vídeos de crianças e pré-adolescentes protagonizando rotinas de skincare, como mini-influencers. O evento ganhou o nome de efeito #sephorakids, fazendo referência à grande marca de produtos de beleza. Em muitos dos vídeos, as meninas eram acompanhadas das próprias mães, que auxiliavam na aplicação dos produtos, replicando uma "rotina ideal de cuidados com a pele". Alguns jornais noticiaram possíveis efeitos físicos do uso de cosméticos por crianças tão jovens como acne, irritações na pele e, em casos mais graves, até reações alérgicas aos princípios ativos dos produtos, impróprios para uso nessa faixa etária. Mas vale pensarmos nas consequências mais duradouras da normalização desse tipo de "cuidado" precoce.
Não é difícil juntar uma formação distorcida da autoimagem, também produto do body shaming, à enxurrada de corpos, cabelos e rostos “perfeitos” idolatrados nos meios de comunicação para entender por que é comum que um sentimento de insatisfação com o próprio corpo surja ainda na infância.
“Muitos influenciadores digitais, mesmo no público infantil, promovem práticas estéticas e cuidados com o corpo que incentivam um foco exagerado na aparência desde cedo. Isso pode levar a uma preocupação excessiva com a própria imagem, distanciando-se do que seria um cuidado saudável e equilibrado”, lembra a psicóloga. É cada vez mais frequente ver meninas com menos de 10 anos preocupadas com a rotina de skincare ou com o cronograma capilar – quando poderiam estar descabeladas, brincando em alguma praça, jogando futebol ou virando estrelinha ou cambalhotas por aí.
O corpo humano é fantástico, mas tem gente que insiste em procurar defeitos
Cuidar de si é positivo e pode, sim, contribuir com a construção e o fortalecimento da autoestima – desde que seja feito de forma equilibrada e dentro de um contexto apropriado para cada idade. “O problema surge quando o cuidado com a aparência se torna uma fonte de estresse, ansiedade ou uma maneira de buscar validação externa”, diferencia a psicóloga. “Se a criança começa a se preocupar excessivamente com imperfeições, a ponto, por exemplo, de evitar atividades por medo de ‘estragar’ o visual ou a sentir que precisa sempre se ajustar a padrões externos, é um sinal de alerta”, observa.
Como ajudar as crianças a não cair nessas armadilhas?
Os adultos precisam deixar claro para a criança -e reforçar quantas vezes for preciso - que a aparência é apenas uma parte de quem ela é . E não é a mais importante. “Para combater essa distorção da autoimagem das crianças é preciso promover desde cedo a aceitação da diversidade corporal e valorizar outros aspectos da criança, como suas habilidades, personalidade e inteligência. Incentive conversas abertas sobre padrões de beleza e os impactos da mídia, porque isso é essencial para que as crianças desenvolvam uma visão crítica”, sugere Renata. Os pequenos precisam saber que os corpos são diferentes, que não existe um padrão fixo de beleza e que bem-estar e saúde são a prioridade – e não a conformidade a um ideal estético.
“Comportamentos e atitudes relacionados à imagem corporal surgem desde a infância e, na adolescência, podem desencadear transtornos psicopatológicos, como anorexia, bulimia e depressão. A autoestima pode ficar comprometida, caso não haja um trabalho psicopedagógico de qualidade nas escolas e com as famílias”, alerta a psicóloga.
As crianças aprendem mais quando observam o mundo e as pessoas ao redor, sobretudo, seus maiores influenciadores. Portanto, pais, professores e cuidadores também podem ser exemplos de aceitação corporal e devem incentivar conversas sobre as pressões sociais em relação à aparência. “Quando os pais, especialmente as mães, criticam seus próprios corpos em frente aos filhos, passam a mensagem de que o corpo deve ser constantemente julgado e ajustado”, analisa a psicóloga. “Isso contribui para que a criança também comece a criticar o próprio corpo ou fique mais sensível a críticas externas. Os pais devem tomar cuidado com a maneira como falam sobre seus próprios corpos e sobre corpos em geral. No lugar de focar em defeitos, é importante reforçar atitudes positivas em relação à própria imagem e ensinar que o corpo é apenas uma parte de quem somos e que merece cuidado e respeito”, diz a especialista. “É fundamental que as crianças se sintam amadas e valorizadas independentemente de sua aparência física”, completa.