PREFÁCIO Vim a saber sobre Sidbela Zimic, uma menina de nove anos de Sarajevo, num domingo de junho de 1995. Várias horas depois de ouvir o familiar silvo e estrondo de um projétil explodindo nas proximidades, percorri alguns quarteirões até um dos outrora imponentes prédios de apartamento do bairro. Sua castigada fachada, crivada de estilhaços de granadas e balas, atestava os três anos sob fogo contínuo. O prédio não tinha janelas, nem eletricidade, nem gás, nem água. Era inabitável, exceto para os orgulhosos residentes de Sarajevo, que não tinham para onde ir. A irmã adolescente de Sidbela estava parada perto da entrada do apartamento, aturdida. Ao lado dela, uma poça rubra jazia no chão do playground, onde estavam jogados um chinelo azul, dois chinelos vermelhos e uma corda de pular com pegadores em forma de cone de sorvete. Policiais bósnios tinham coberto a mancha vermelha no calçamento com um invólucro plástico ostentando o alegre emblema azul-bebê e branco das Nações Unidas. Sidbela era conhecida nas redondezas por gostar de ler e por criar vários concursos de Miss. Ela e suas amigas aproveitavam como podiam sua infância em confinamento coroando a "Miss Prédio", a "Miss Esquina" e a "Miss Bairro". Naquela manhã sossegada, Sidbela implorara à mãe por cinco minutos ao ar livre. A sra. Zimic estava arrasada. Um ano e meio antes, em fevereiro de 1994, um projétil caíra no principal mercado do centro da cidade, a apenas dois quarteirões de sua casa, estraçalhando 64 fregueses e comerciantes. As chocantes imagens desse massacre sensibilizaram profundamente os americanos e galvanizaram o presidente Clinton e seus aliados da Otan, que em um ultimato sem precedentes ameaçaram pesados ataques aéreos contra os servo-bósnios caso reiniciassem o bombardeio de Sarajevo ou continuassem o que Clinton chamou de "assassinato de inocentes". "Que ninguém duvide da determinação da Otan", advertiu Clinton. "Qualquer um", ele disse, e repetiu para enfatizar: "qualquer um que bombardear Sarajevo [...] pode se preparar para sofrer as conseqüências." Em resposta ao comprometimento que viram nos Estados Unidos, os 280 mil habitantes de Sarajevo gradualmente se ajustaram à vida sob o imperfeito mas protetor guarda-chuva da Otan. Depois de alguns meses de cautela, começaram a pingar nas ruas, a passear às margens do rio Miljacka e a reconstruir cafés com terraços a céu aberto. Meninos e meninas saíram aos pulos de porões úmidos e das vistas de seus pais e redescobriram os esportes ao ar livre. Sentindo o gosto da infância, ganharam avidez pela luz do sol e pelas brincadeiras. Seus pais agradeceram aos Estados Unidos e cobriram de elogios os americanos que visitaram a capital bósnia. Mas a determinação dos EUA logo arrefeceu. Julgou-se que para salvar vidas de bósnios não compensava arriscar vidas de soldados americanos nem desafiar os aliados europeus dos EUA que desejavam permanecer neutros. Clinton e sua equipe trocaram a terminologia do genocídio pela da "tragédia" e "guerra civil", minimizando no público as expectativas de que os Estados Unidos poderiam fazer alguma coisa. O secretário de Estado, Warren Christopher, nunca fora um entusiasta do envolvimento americano nos Bálcãs. Durante muito tempo, apelara para o contexto a fim de abrandar o incômodo moral da não-intervenção pelos EUA. "É realmente um problema trágico", declarou. "O ódio entre os três grupos - bósnios, sérvios e croatas - é quase inacreditável. É quase aterrador, e existe há séculos. É mesmo um problema infernal." Passados alguns meses do massacre do mercado, Clinton adotara essa postura, tratando a Bósnia como seu problema infernal - um problema que ele esperava que se consumisse, desaparecesse das primeiras páginas e deixasse sua presidência em paz. Os nacionalistas sérvios aproveitaram a deixa. Perceberam que estavam livres para retomar os ataques a Sarajevo e a outras cidades bósnias apinhadas de civis. Aos pais só restou batalhar com os filhos, quebrar a cabeça atrás de meios de convencê-los a ficar dentro de casa. O pai de Sidbela recorda: "Transformei a lavanderia num quarto de brinquedos. Comprei bonecas Barbie, carros da Barbie, comprei de tudo para manter as crianças em casa". Mas sua precoce filha conseguiu o que queria, insistindo: "Papai, por favor, me deixe viver minha vida. Não posso ficar dentro de casa o tempo todo". As promessas americanas, que os atacantes sérvios inicialmente levaram a sério, compraram uma breve trégua para os sarajevenses. Mas também elevaram entre os bósnios a expectativa de que estavam em segurança para voltar a viver. Como se veria, no entanto, a brutalidade dos líderes políticos, militares e paramilitares sérvios seria alvo de condenação, mas não da prometida intervenção militar. Em 25 de junho de 1995, minutos depois de Sidbela dar um beijo no rosto da mãe e abrir um sorriso triunfante, um projétil sérvio caiu no playground onde ela pulava corda em companhia de Amina Pajevic, de onze anos, Liljana Janjic, de doze, e Maja Skoric, de cinco. Foram todas mortas, aumentando de 16 767 para 16 771 o múmero de crianças massacradas em território bósnio durante a guerra. Se algum evento poderia ter preparado uma pessoa para imaginar o mal, deveria ter sido esse. Fazia quase dois anos que eu era correspondente na Bósnia na época do massacre do playground. Já desistira havia um bom tempo de torcer para que os jatos da Otan, rugindo no céu todos os dias, bombardeassem os sérvios e os fizessem cessar o ataque de artilharia à capital sitiada. E acabara prevendo o pior para os civis muçulmanos espalhados pelo país. Ainda assim, quando forças servo-bósnias começaram a atacar a chamada "área de segurança" de Srebrenica, em 6 de julho de 1995, dez dias depois de minha visita à enlutada família Zimic, não me alarmei muito. Eu achava que nem mesmo os servo-bósnios ousariam apoderar-se de um trecho de território sob a guarda das Nações Unidas. Na noite de 10 de julho, resolvi dar uma passada na sede da Associated Press, que se tornara meu lar de verão em virtude de seus animados repórteres e de seu gerador que funcionava. Naquela noite, quando cheguei, levei um choque. O caos era total em volta dos telefones. O ataque sérvio a Srebrenica, ameaçador fazia já vários dias, de repente se tornara um inferno. Os sérvios estavam a postos para tomar a cidade, e haviam dado um ultimato, exigindo que os soldados das forças de paz da onu entregassem suas armas e equipamentos, pois do contrário sofreriam uma barragem de artilharia. Cerca de 40 mil homens, mulheres e crianças muçulmanos estavam em grande perigo. Apesar de minha lentidão para perceber a magnitude daquela ofensiva, ainda não era tarde demais para cumprir meus prazos americanos. Uma reportagem matutina no Washington Post talvez constrangesse as autoridades americanas a reagir. Os outros correspondentes estavam tão alucinados que demorei quinze minutos para conseguir uma linha livre. Quando a consegui, contatei Ed Cody, editor estrangeiro interino do Post. Eu sabia que os leitores americanos estavam fartos de más notícias dos Bálcãs, mas a notícia desse ataque específico me parecia quentíssima. O general servo-bósnio Ratko Mladic não estava brincando, nem usando uma tomada de território insignificante para mandar um alerta político; estava se apoderando de uma faixa enorme de território internacionalmente "protegido" e desafiando o mundo a impedi-lo. Tratei de despejar os fatos sobre Cody como eu os interpretava: "Os sérvios estão cercando a área de segurança de Srebrenica. A ONU diz que uma avalanche de dezenas de milhares de refugiados muçulmanos já invadiu sua base ao norte do centro da cidade. É só uma questão de horas para que os sérvios tomem todo o bolsão. Temos catástrofe à vista. A área de segurança da ONU vai cair". Colaboradora novata do Post, eu fora avisada de que Cody, veterano das carnificinas no Oriente Médio, não se abalaria facilmente. Ele ouviu tudo o que eu tinha a dizer e depois fez algumas perguntas incisivas - as quais me levaram a crer que havia compreendido a gravidade da crise que avultava. Então ele me estarreceu: "Bom, pelo que você está dizendo, mesmo se a coisa evoluir, os sérvios não tomarão a cidade esta noite". Fiz uma careta, já prevendo sua próxima frase, que de fato veio: "Ao que parece, quando Srebrenica cair, teremos uma reportagem". Protestei, mas não com muita veemência. Lá no fundo, eu achava que os sérvios recuariam e relutava em dar um alarme falso. Na tarde seguinte, porém, Srebrenica havia caído, e os petrificados habitantes do enclave estavam nas mãos do general Mladic, um suspeito criminoso de guerra que se sabia ter orquestrado o selvagem cerco de Sarajevo. Eu trabalhara em Sarajevo, onde franco-atiradores sérvios praticavam tiro ao alvo em velhinhas encurvadas que atravessavam a cidade carregando latas de água imunda, e onde parques pitorescos tinham sido transformados em cemitérios para receber o dilúvio de jovens recém-chegados. Entrevistara homens emaciados que haviam perdido mais de vinte quilos e que mostravam cicatrizes permanentes do tempo que passaram em campos de concentração sérvios. E, muito recentemente, fizera a cobertura do massacre de quatro meninas. No entanto, apesar de minhas experiências, ou talvez em razão delas, eu só podia imaginar o que já testemunhara. Nunca me ocorreu que o general Mladic executaria sistematicamente, ou que poderia executar, todo e qualquer homem e menino muçulmano sob sua custódia. Poucos dias depois da queda de Srebrenica, um colega telefonou-me de Nova York e disse que o embaixador da Bósnia na ONU estava acusando os servo-bósnios de terem assassinado mais de mil homens muçulmanos em um estádio de futebol de Srebrenica. Não era possível. "Não", falei categoricamente. Meu amigo repetiu a acusação. "Não", repeti, convicta. Eu tinha razão. Mladic não executou mil homens. Matou mais de 7 mil. Quando voltei aos Estados Unidos, Sidbela e Srebrenica permaneceram comigo. Eu estava horrorizada com a promessa de proteção que tirara uma criança do porão e a atraíra para um playground desprotegido em Sarajevo. Não parava de pensar no assassinato de homens e meninos muçulmanos de Srebrenica, em minha falha por não ter dado um alerta adequado a tempo e na recusa do resto do mundo a intervir mesmo quando o perigo para os homens tornara-se óbvio. Eu me vi recordando os muitos debates que tivera com meus colegas a respeito da intervenção. Especuláramos - em entrevistas coletivas à imprensa, em viagens e em entrevistas com autoridades bósnias e americanas - sobre como os Estados Unidos e seus aliados poderiam ter reagido se os mesmos crimes houvessem sido cometidos em outro lugar (os Bálcãs evocam animosidades e barris de pólvora imemoriais), contra outras vítimas (a maioria das atrocidades foi cometida contra indivíduos de fé muçulmana) ou em outra época (a União Soviética desintegrara-se recentemente, nenhuma nova visão de mundo substituíra ainda a antiga, e as Nações Unidas não haviam lubrificado suas partes enferrujadas nem se livrado de suas práticas e suposições anacrônicas). Em 1996, distanciando-me um pouco da área, comecei a analisar as reações dos EUA a casos anteriores de massacre. Não demorei a descobrir que, na verdade, a reação americana ao genocídio na Bósnia fora a mais vigorosa do século. Os Estados Unidos nunca, em toda a sua história, haviam interferido para deter o genocídio e, de fato, raramente haviam feito questão de condená-lo no momento da ocorrência. Em meu estudo dos principais genocídios do século XX, alguns se destacaram. Além da erradicação de não-sérvios pelos servo-bósnios, examinei o massacre de armênios por otomanos, o Holocausto nazista, o terror de Pol Pot no Camboja, a destruição de curdos por Saddam Hussein no norte do Iraque e o extermínio sistemático da minoria tutsi pelos hutus ruandeses. Embora os casos variassem em abrangência e nem todos incluíssem a intenção de exterminar por completo os membros de um grupo, cada um deles enquadrou-se nos termos da Convenção do Genocídio de 1948, e cada um deu aos Estados Unidos opções para uma significativa intervenção diplomática, econômica, legal ou militar. Os crimes ocorreram na Europa, Ásia, Oriente Médio e África. As vítimas compuseram todo um leque de raças e religiões - asiáticos, africanos, caucasianos, cristãos, judeus, budistas e muçulmanos. Os perpetradores agiram em diferentes estágios do poderio americano: o genocídio armênio (1915-16) foi cometido durante a Primeira Guerra Mundial, antes de os Estados Unidos se tornarem um líder no planeta. O Holocausto (1939-45) aconteceu exatamente quando os Estados Unidos passavam a assumir esse papel. Os genocídios no Camboja (1975-79) e no Iraque (1987-88) foram perpetrados depois do Holocausto, mas durante a Guerra Fria e depois do Vietnã. Os da Bósnia (1992-95) e Ruanda (1994) aconteceram depois da Guerra Fria e enquanto a supremacia americana e a lembrança das "lições" do Holocausto estavam no auge. As autoridades americanas também lidaram com uma bagagem variada de contextos e ideologias sobre política externa. Todos os presidentes americanos em exercício nas últimas três décadas do século XX - Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush e Clinton - tomaram decisões concernentes à prevenção e supressão do genocídio. Mas, apesar da variedade de casos e de governos nos Estados Unidos, as políticas americanas em resposta ao genocídio foram espantosamente semelhantes independentemente de época, geografia, ideologia e alinhamento geopolítico. Para entender as reações dos Estados Unidos ao genocídio, entrevistei mais de trezentos americanos que tiveram algum papel em moldar ou influenciar a política dos EUA. A maioria era de funcionários de vários níveis hierárquicos na Casa Branca, Departamento de Estado, Pentágono e Agência Central de Inteligência (CIA). Alguns eram membros e assessores do Congresso. Outros eram jornalistas que cobriram a carnificina ou advogados desvinculados do governo que tentaram abrandá-la. Uma subvenção do Open Society Institute permitiu-me viajar para a Bósnia, Camboja, Kosovo e Ruanda, onde falei com vítimas, perpetradores e espectadores. Também estive no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra para a ex-Iugoslávia em Haia, na Holanda, bem como no Tribunal da ONU para Ruanda, sediado em Arusha, Tanzânia. Graças ao National Security Archive [Arquivo de Segurança Nacional], organização sem fins lucrativos que usa a Lei de Liberdade de Informação para conseguir a liberação de documentos secretos dos Estados Unidos, pude ter acesso a centenas de páginas de registros governamentais recém-disponibilizados. Esse material fornece um quadro mais claro do que o anteriormente discernível sobre a ligação entre pessoas, motivos e eventos genocidas. As pessoas costumam explicar a desfibrada reação dos EUA a genocídios específicos afirmando que os Estados Unidos não sabiam o que estava acontecendo, que sabiam mas não se importavam ou que, sabendo ou não, nada havia a fazer. Descobri que, na verdade, as autoridades americanas sabiam muito a respeito dos crimes que estavam sendo perpetrados. Alguns americanos importaram-se e empenharam-se por alguma ação, fazendo consideráveis sacrifícios pessoais e profissionais. E os Estados Unidos efetivamente tiveram inúmeras oportunidades de mitigar e prevenir a matança. Mas, vezes sem conta, homens e mulheres íntegros escolheram olhar para o outro lado. Fomos todos espectadores no genocídio. A questão crucial é: por quê? As respostas parecem estar nas decisões cruciais - e nas decisões de não decidir - tomadas antes, durante e depois dos vários genocídios. Ao analisar um século de reações dos Estados Unidos ao genocídio, indaguei: houve alertas prévios de que assassinatos em massa estavam para começar? Em que grau esses alertas foram levados a sério? Por quem? Houve alguma razão para crer que a violência prevista seria distinta em qualidade e quantidade das matanças "rotineiras" que eram tristemente típicas na guerra local? Quando a violência começou, que informações secretas ou públicas estiveram disponíveis? Que restrições atuaram como impedimento ao diagnóstico? Como e quando as autoridades americanas reconheceram que estava ocorrendo genocídio (e não meramente uma guerra)? Quem, dentro e fora do governo americano, quis fazer o quê? Quais foram os riscos ou custos? Quem se opôs a eles? Quem prevaleceu? Como divergiram as opiniões do público e da elite? E, finalmente, como as respostas dos Estados Unidos, os genocídios e os americanos que pediram a intervenção foram lembrados depois? Ao reconstituir uma narrativa dos acontecimentos, dividi a maioria dos casos em sessões sobre alerta, reconhecimento, resposta e desfecho. Contrariamente a qualquer hipótese que eu possa ter acalentado enquanto viajava pela ex-Iugoslávia, as reações dos governos Bush e Clinton às atrocidades na Bósnia espelharam as respostas anteriores dos EUA ao genocídio. Proliferaram os alertas prévios sobre a mortandade. Intensificou-se a disseminação de propaganda incendiária. Começaram os massacres e deportações. As autoridades americanas lutaram para não encarar os horrores. Os relatos de refugiados e as notícias das atrocidades na imprensa tornaram-se numerosos demais para ser negados. Poucos americanos nos Estados Unidos pressionaram por uma intervenção. Teve início nos EUA um jogo de espera cheio de expectativa mas passivo e, por fim, mortal. E o genocídio avançou sem nenhum impedimento de uma ação americana, e freqüentemente encorajado pela inação dos EUA. As principais conclusões deste livro podem ser assim resumidas: • Apesar de intensa cobertura da mídia, as autoridades, jornalistas e cidadãos americanos são extremamente lentos em usar a imaginação necessária para lidar com o mal. Antes da mortandade, supõem que agentes racionais não infligirão violência aparentemente gratuita. Confiam em negociações efetuadas de boa-fé e na diplomacia tradicional. Quando têm início as mortes, supõem que os civis que não reagirem serão deixados em paz. Clamam pelo cessar-fogo e fazem doações humanitárias. • É na esfera da política interna que se perde a batalha para deter o genocídio. Os líderes políticos americanos interpretam o silêncio da sociedade em geral como um indicador da indiferença do público. Raciocinam que não incorrerão em custos se os Estados Unidos permanecerem à margem, mas que correrão grandes riscos se vierem a se envolver. Potenciais fontes de influência - membros do Congresso, conselhos editoriais, grupos não-governamentais e eleitores comuns - não geram suficiente pressão política para alterar as estratégias dos líderes americanos. • O governo americano não só se abstém de enviar tropas, mas dá pouquíssimos passos, ao longo de um continuum de intervenção, para deter o genocídio. • As autoridades americanas apresentam a si mesmas (e ao público americano) todo um arrazoado sobre a natureza da violência em questão e o provável impacto da intervenção dos EUA. Representam a carnificina como algo bilateral e inevitável, e não como um genocídio. Garantem que qualquer reação proposta dos EUA será inútil. De fato, afirmam que fará mais mal do que bem, acarretará conseqüências perversas para as vítimas e porá em perigo outros preciosos interesses morais ou estratégicos dos Estados Unidos. Qualificam de "exaltados" os funcionários americanos que clamam pela intervenção e que usam argumentos morais em um sistema que fala principalmente a fria linguagem dos interesses. Evitam usar a palavra "genocídio". Assim, podem em sã consciência ser favoráveis a impedir o genocídio em teoria, enquanto, simultaneamente, se opõem ao envolvimento americano naquele momento. O maior desafio ao mundo de espectadores está naqueles que se recusaram a permanecer calados na era do genocídio. Em todos os casos, um punhado de americanos ganhou destaque por manifestar-se. Eles não perderam a noção de certo e errado, mesmo quando repetidamente eram apresentados a um "contexto" que outros afirmavam ser um impedimento à ação. Recusaram-se a aceitar que não podiam influenciar a política americana ou que os Estados Unidos não podiam influenciar os matadores. Esses indivíduos não estiveram sozinhos em suas lutas, mas também não desfrutaram de companhia numerosa. Vendo o que eles tentaram conseguir que fosse feito, vemos o que os EUA poderiam ter feito. Também vemos o que nós mesmos poderíamos ter tentado fazer. Vendo como e por que fracassaram, vemos o que os americanos, como nação, deixaram acontecer. Em 1915, Henry Morgenthau sênior, embaixador dos Estados Unidos em Constantinopla, respondeu à deportação e chacina da minoria armênia na Turquia exortando Washington a condenar a Turquia e pressionar a Alemanha, aliada dos turcos durante a guerra. Morgenthau também desafiou a convenção diplomática protestando pessoalmente contra as atrocidades, criticando o regime e levantando fundos para ajuda humanitária. À sua voz juntou-se a do ex-presidente Theodore Roosevelt, que deu um passo além, conclamando o governo de Woodrow Wilson a entrar na Primeira Guerra Mundial e deter a matança pela força. Mas os Estados Unidos aferraram-se à neutralidade e asseveraram que os assuntos internos da Turquia não eram da sua conta. Calcula-se que 1 milhão de armênios foram assassinados ou morreram de doença e fome durante o genocídio. Raphael Lemkin, judeu polonês e especialista em direito internacional, alertou sobre as intenções de Hitler na década de 1930, mas foi alvo de zombaria. Depois de buscar refúgio nos Estados Unidos em 1941, ele não conseguiu apoio para nenhuma medida de proteção aos judeus em perigo. Os Aliados resistiram a censurar as atrocidades de Hitler, a conceder refúgio aos judeus europeus e a bombardear os trilhos das ferrovias que levavam aos campos de concentração nazistas. Impávido, Lemkin inventou a palavra "genocídio" e conseguiu a aprovação do primeiro tratado sobre direitos humanos nas Nações Unidas, que foi dedicado à proibição do novo crime. Lamentavelmente, viveu para ver a Convenção do Genocídio ser repelida pelo Senado americano. William Proxmire, o quixotesco senador por Wisconsin, deu seguimento à tarefa de Lemkin e proferiu 3211 discursos no Senado, exigindo a ratificação do tratado da ONU. Após dezenove anos de solilóquios diários, Proxmire conseguiu fazer com que o Senado aceitasse a Convenção do Genocídio, mas a ratificação dos EUA veio tão repleta de ressalvas que praticamente não tinha eficácia. Alguns diplomatas e jornalistas americanos no Camboja alertaram sobre a perversidade de um sinistro bando de rebeldes comunistas conhecido como Khmer Vermelho. A esquerda americana zombou deles por deixarem-se lograr por propaganda anticomunista, e eles não foram capazes de influenciar uma política americana que não podia cogitar em nenhum tipo de envolvimento no Sudeste asiático depois do Vietnã. O reinado de quatro anos de Pol Pot resultou em cerca de 2 milhões de cambojanos mortos, mas os massacres mal arrancaram um simples gemido de Washington, que manteve o reconhecimento diplomático do regime genocida mesmo depois de derrubado. Peter Galbraith, funcionário do Comitê de Relações Exteriores do Senado, redigiu uma legislação punitiva para seu chefe, o senador Claiborne Pell, requerendo o corte dos créditos agrícolas e industriais dos Estados Unidos a Saddam Hussein em retaliação por sua tentativa, em 1987-88, de exterminar os curdos da zona rural do Iraque. O pacote de sanções foi derrotado pelo grande empenho da Casa Branca, do Departamento de Estado e pelo lobby agrícola americano, todos ávidos por manter laços de amizade e vender arroz e trigo para o Iraque. E, assim, o regime de Hussein recebeu um generoso apoio financeiro dos eua enquanto envenenou com gás e executou cerca de 100 mil curdos. Romeo Dallaire, general-de-divisão canadense que comandou a força de paz da onu em Ruanda em 1994, implorou permissão para desarmar as milícias e impedir o extermínio dos tutsis ruandeses três meses antes de o genocídio começar. Tendo seu pedido negado pelos seus superiores políticos nas Nações Unidas, ele viu cadáveres amontoarem-se à sua volta enquanto Washington fazia um bem-sucedido esforço para remover a maioria dos integrantes da força de paz sob seu comando e em seguida empenhava-se ativamente para impedir a autorização de envio de reforços da ONU. Os Estados Unidos recusaram-se a usar sua tecnologia para interferir nas transmissões radiofônicas que foram um instrumento crucial na coordenação e consumação do genocídio. E mesmo quando 8 mil ruandeses em média estavam sendo mortos por dia, a questão nunca se tornou prioritária para as autoridades americanas. Aproximadamente 800 mil ruandeses foram mortos em cem dias. Alguns diplomatas no Departamento de Estado e vários membros do Congresso tentaram incansavelmente convencer uma intransigente burocracia a bombardear os sérvios que executavam a limpeza étnica na Bósnia. Esses homens testemunharam a censura de telegramas, a reinterpretação do conflito como "intratável" e "imemorial" e a manutenção de um embargo de armas contra os inferiormente armados muçulmanos da Bósnia. Vários funcionários da área de relações exteriores que, enojados, pediram demissão do Departamento, assistiram então, de um posto de observação não menos frustrante fora do governo americano, à queda da área de segurança de Srebrenica e ao maior massacre na Europa em cinqüenta anos. Entre 1992 e 1995, enquanto o telejornal da noite noticiava o ataque sérvio, cerca de 200 mil bósnios foram mortos. Só quando a intervenção militar dos EUA passou a parecer inevitável e Bob Dole, republicano do Kansas e líder da maioria no Senado, persuadiu o Congresso a suspender o embargo de armas, a política americana mudou. Trazendo para casa a guerra na Bósnia, Dole ajudou a espicaçar o presidente Clinton a iniciar o bombardeio da Otan. Àquela altura, porém, o genocídio na Bósnia estava em grande parte consumado, e um Estado multiétnico fora destruído. Este livro enfoca deliberadamente a resposta das autoridades e cidadãos americanos por várias razões. Primeiro, as decisões dos Estados Unidos sobre agir ou não têm um impacto maior sobre o destino das vítimas do que as de qualquer outra potência. Segundo, desde a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos têm tido uma capacidade tremenda para reprimir o genocídio. Poderiam ter usado seus vastos recursos sem prejudicar a segurança do país. Terceiro, os Estados Unidos têm demonstrado extraordinário empenho em recordar e educar sobre o Holocausto. O Holocaust Memorial Museum, em posição privilegiada ao lado do Monumento a Lincoln e do Memorial a Jefferson, e a poucos metros do Vietnam Wall Memorial, atrai 5500 visitantes por dia, ou 2 milhões por ano, quase o dobro do número de visitantes anuais na Casa Branca. Quarto, nos últimos anos, líderes americanos, imbuídos de uma nova cultura de consciência do Holocausto, repetidamente se comprometeram a prevenir a ocorrência de genocídios. Em 1979 o presidente Jimmy Carter declarou que, diante da memória do Holocausto, "devemos forjar um voto inabalável com todos os povos civilizados de que nunca mais o mundo assistirá calado, nunca mais o mundo deixará de agir em tempo para impedir o terrível crime do genocídio". Cinco anos depois, o presidente Reagan também declarou: "Como você, eu afirmo com determinação: 'Nunca mais!'". O presidente George Bush pai juntou-se ao coro em 1991. Falando "como veterano da Segunda Guerra Mundial, como americano, e agora como presidente dos Estados Unidos", Bush disse que sua visita a Auschwitz dera-lhe "a resolução não só de recordar, mas também de agir". Antes de se tornar presidente, o candidato Clinton criticou a política de Bush com relação à Bósnia. "Se há uma coisa que os horrores do Holocausto nos ensinaram", declarou Clinton, "é o custo elevado de permanecer calado e paralisado diante do genocídio." Já presidente, na inauguração do Museu do Holocausto Clinton censurou a inação americana durante a Segunda Guerra Mundial. "Mesmo quando nosso conhecimento vago dos crimes foi substituído por fatos inquestionáveis, pouquíssimo se fez", disse ele. "Não podemos permitir que isso volte a acontecer." Mas o consolador refrão preditivo do "nunca mais", testamento da disposição americana, nunca lidou com o fato de que o país não fizera coisa alguma, nas esferas prática e política, no sentido de preparar-se para reagir ao genocídio. O compromisso revelou-se vão diante da matança real. Antes de começar a estudar a relação dos Estados Unidos com o genocídio, eu me referia à política americana para a Bósnia como "um fracasso". Mudei de idéia. É assustador reconhecer, mas a consistente política de não-intervenção deste país diante do genocídio constitui um lamentável testemunho não de um sistema político americano falido, mas impiedosamente eficaz. O sistema, como é atualmente, está funcionando. Nenhum presidente americano fez da prevenção do genocídio uma prioridade, e nenhum presidente americano jamais sofreu politicamente por sua indiferença à ocorrência de genocídio. Portanto, não é coincidência que o genocídio campeie.