Rosa-dos-Ventos Naquela tarde de princípios de novembro, o sueste que soprava sob os céus de Santa Fé punha inquietos os cata-ventos, as pandorgas, as nuvens e as gentes; fazia bater portas e janelas; arrebatava de cordas e cercas as roupas postas a secar nos quintais; erguia as saias das mulheres, desmanchava-lhes os cabelos; arremessava no ar o cisco e a poeira das ruas, dando à atmosfera uma certa aspereza e um agourento arrepio de fim de mundo. Por volta das três horas, um funcionário da Prefeitura assomou à janela da repartição e olhou por um instante para as árvores agitadas da praça, exclamando: "Ooô tempinho brabo!". Num quintal próximo, recolhendo às tontas as roupas que o vento arrancara do coradouro e espalhara pelo chão, uma dona de casa resmungava: "É pr'um vivente ficar fora do juízo!". Na sua meia-água caiada como um túmulo, a "Gioconda" sentou-se ao piano e, em meio de seus sete gatos, começou a tocar a marcha fúnebre de Chopin. O proprietário da Farmácia Humanidade, dirigindo-se ao prático que, debruçado sobre o balcão, mascava ainda o palito do almoço, resmungou: "Dia de vender colírio e aspirina". Por trás das vidraças duma das casas da praça da Matriz, um menino de cara tristonha olhava, fascinado, ora para o cata-vento da torre da igreja, cujo galo de ferro rodopiava, ora para as pandorgas coloridas que, entre a torre e as nuvens, davam bruscas rabanadas no ar. Um trem apitou tremulamente na curva do cemitério, e de repente, como se tivesse surgido do bojo duma nuvem, um pequeno aparelho do aeroclube de Santa Fé começou a sobrevoar a cidade a uns mil metros do solo. Era um teco-teco amarelo, cujo nome - Rosa-dos-Ventos - estava pintado em letras negras nos costados da nacela. Alguns santa-fezenses ergueram os olhos para o céu e acharam que era loucura voar num dia daqueles. E por algum tempo, acima do uivar do vento, ouviu-se o fosco matraquear do motor do avião. De súbito, os alto-falantes da Rádio Anunciadora Serrana, presos aos postos telefônicos ao longo da rua do Comércio, começaram a funcionar, e o ar se encheu de sons que pareciam sair da boca de enormes robôs. O vento varria as vozes metálicas que apregoavam a excelência de dentifrícios, inseticidas, sabonetes, e pediam ao público que só comprasse na "tradicional Loja Caramês, onde um cruzeiro vale três". Quando as vozes se calaram, romperam dos alto-falantes os acordes lânguidos dum velho tango argentino, e o choro das cordeonas abafou a lamúria do vento. Naquele minuto o Veiguinha saiu da Casa Sol, caminhou até a beira da calçada, trazendo debaixo do braço um quadro que durante sete anos tivera pendurado na parede do escritório, e, olhando para um mulato que passava, exclamou: - Este é o dia mais feliz da minha vida! Dito isso, agarrou o quadro com ambas as mãos e bateu com ele violentamente contra a quina da calçada, partindo a moldura e o vidro. Depois, numa fúria que o deixava apopléctico, arrancou dentre os destroços do quadro o retrato do ex-presidente e rasgou-o em muitos pedaços, lançando-os ao vento num gesto dramático: - Este é o fim de todos os tiranos! O mulato parou, olhou para o proprietário da Casa Sol e disse: - Deixe estar, um dia esse retrato volta pra parede. Os milicos derrubaram o Velho, mas ele caiu de pé nos braços do povo! Isso foi o princípio duma discussão de caráter político, que atraiu a atenção de alguns passantes, os quais mais tarde, ao tentarem reconstituir o áspero diálogo que terminara numa troca de bofetadas, lamentavam não terem podido ouvir tudo quanto os contendores diziam, pois na hora do bate-boca a voz de Carlito Gardel enchia poderosamente a rua, abafando todas as outras. Afirmava-se, entretanto, com unanimidade, que em dado momento o Veiguinha, quase a tocar com a ponta do indicador o nariz do mulato, bradara: "Teve a sorte que merecia, era um traidor!", ao que o outro retrucara: "Traidor é você, cachorro!". Como que impelido pelo vento, o braço do negociante projetou-se no ar como uma catapulta, e ouviu-se o estalo duma bofetada. Ao receber o golpe inesperado, o mulato quase caiu, mas, recuperando logo o equilíbrio, desferiu um soco no ouvido do Veiguinha, atirando-o contra a parede da casa. Foi nesse momento que os circunstantes intervieram, separando-os a custo. O Veiguinha voltou para a loja, vociferando bravatas, ao passo que o mulato, arrastado rua abaixo por dois desconhecidos, berrava a plenos pulmões: - Viva o nosso presidente! Viva o Estado Novo! Do outro lado da rua, à frente da Casa Sol, lia-se no muro caiado, em largas letras de piche: Queremos Getulio. Logo abaixo, em garranchos brancos: VIVA PRESTES! MORRA O FASCISMO! E, entre a foice e o martelo, um moleque gravara no reboco, a ponta de prego, um nome feio. Gardel silenciara: agora os violinos cantavam em melosa surdina, e a voz do sueste parecia também fazer parte da orquestra, bem como o rufar do motor do Rosa-dos-Ventos. A notícia do conflito espalhou-se rápida por toda a rua. À porta duma engraxataria, um negrão de cara lustrosa, o torso musculoso modelado por uma camiseta amarela, comentou a briga com um freguês e concluiu: - A culpa é do vento. A gente fica meio fora de si. É essa maldita ventania... O vento, porém, não tinha a menor influência irritante sobre os nervos de Aderbal Quadros - o velho Babalo. Acocorado no pomar de sua chácara, nos arredores de Santa Fé, estava ele, havia alguns minutos, a arrancar guanxumas do chão, e naquele momento fazia uma pausa para reacender o cigarrão de palha que tinha preso entre os dentes. Com as mãos sujas de terra, tomou do isqueiro, bateu a pederneira e, voltando as costas para o vento, a fim de proteger a chama do pavio, acendeu o cigarro e deu-lhe um longo e gostoso chupão, ao mesmo tempo que lançava para sua horta um olhar morno de ternura, como se os repolhos e as alfaces fossem membros de sua família. Depois espraiou o olhar pelo campo e tornou a sentir saudade de suas estâncias - uma saudade que lhe apertava o peito, quase como uma dor. Era bem triste uma pessoa depois de madura perder tudo que tinha: casa, terras, gado, dinheiro; e era até ridículo um estancieiro que já possuíra dezenas de quadras de campo e milhares de cabeças de gado, ficar reduzido a uma chacrinha de seis hectares, e ainda por cima arrendada! Xô égua! Mas um homem não se entrega nunca, o que passou passou, e águas passadas não movem moinho... Tirou por alguns segundos o cigarro da boca, cuspiu no chão, como para espantar os maus pensamentos, e acariciou com a ponta do indicador a verruga que tinha na face esquerda, da qual saíam três fios de cabelo crespo. Contemplando o campo dum verde vivo, respingado aqui e ali pelo amarelo das marias-moles, de novo pensou em aumentar a plantação de trigo. O diabo era que dispunha de pouca terra, de pouco dinheiro e talvez de pouco tempo de vida. Depois dos oitenta, um homem nunca sabe se vai ver o sol do dia seguinte. Para falar bem a verdade - refletiu ele, soltando um fundo suspiro -, nos dias que correm ninguém sabe o que vai acontecer no minuto seguinte... Passara a manhã inteira a trabalhar na chácara, distraído, compondo cercas, dando de comer aos porcos e às galinhas, procurando, enfim, não pensar em certas coisas. Mas essas coisas acabavam sempre por voltar-lhe aos pensamentos, piores que mutuca quando inventa de azucrinar um pobre matungo. E agora de novo Babalo estava às voltas com elas. O melhor que tinha a fazer era ir o quanto antes ao Sobrado, falar com Rodrigo e tirar tudo a limpo. Quando chegara a Santa Fé a notícia de que os generais haviam apeado Getulio Vargas do governo, seu primeiro pensamento fora para o genro: "Que será que vai acontecer agora pro Rodrigo?". A resposta lá estava. Rodrigo Cambará saíra do Rio precipitadamente com toda a família e chegara a Santa Fé havia pouco mais de vinte e quatro horas. A situação estava confusa, a cidade cheia de boatos. Babalo limpou as mãos nas bombachas de riscado e ficou a olhar pensativo para o chão. Rodrigo nunca devia ter deixado Santa Fé, o Sobrado e o Angico. Uma pessoa deve ficar no lugar onde nasceu, onde tem seus parentes, seus amigos, as coisas que lhe pertencem. Cidade grande é o diabo: tem muita falsidade, muita perdição, muita máquina, muito modernismo, e essas coisas todas acabam mudando o caráter e os costumes duma pessoa. Que era que o Rodrigo tinha arranjado com todos aqueles anos de estadia no Rio, metido na política, amigo do peito de figurões, sempre envolvido em negócios, comitês, festas e entrevistas de jornal? Fizera inimigos, fora caluniado e - pior que tudo - criara mal os filhos. Depois, há pessoas invejosas que não podem ver ninguém subir. Babalo sabia das coisas horríveis que ali em Santa Fé se diziam do genro: que fora um dos príncipes do câmbio negro, que andara metido em grossas patifarias de advocacia administrativa... Ele positivamente não acreditava naquelas maledicências. Mas calúnia é calúnia, sempre deixa sua marca. Ergueu a cabeça e ficou a contemplar as nuvens que o vento tangia como a uma ponta de enormes baios brancos. No Sobrado já deviam estar estranhando o fato de ele não ter ainda aparecido. Mas não era fácil aquela visita. Fazia muito que ele e o genro não se entendiam em matéria de política. Para falar a verdade, ultimamente havia entre ambos um desentendimento em quase todos os outros assuntos... Mas ele estimava Rodrigo e era por isso que o encontro ia ser difícil. Fosse como fosse, tinha de ir. Desejava ver a filha, os netos, desejava também ver o genro, a quem queria como a um filho... Por um instante o velho Babalo ficou a olhar para as nuvens, as falripas de cabelos brancos agitadas pelo vento, o sol a bater-lhe em cheio no rosto tostado e ossudo. Foi então que avistou uma mancha amarela contra o horizonte e ficou imediatamente numa atitude de defesa. Pôs a mão em pala sobre os olhos e procurou ver melhor. A mancha movia-se na direção da chácara: era um avião que vinha da cidade, em vôo muito baixo. Babalo ainda não se habituara à vizinhança do aeroporto. O ruído dos motores não o incomodava, pois ele era surdo, mas não se sentia bem quando via aquelas engenhocas passarem por cima de sua cabeça. Ninguém lhe tirava da idéia que aeroplano era uma coisa contra a natureza. Depois, estava vendo o dia em que um daqueles aparelhos ia cair-lhe no quintal ou em cima da casa. Nos primeiros tempos, sempre que os teco-tecos cruzavam seu território, Babalo erguia os punhos e bradava: "Vagabundos! Isto não é serviço pra homem! Venham pegar no cabo duma enxada, seus lorpas!". E os rapazes do aeroplano, sabedores da aversão do velho às máquinas em geral e aos aeroplanos em particular, mangavam com ele, passavam pela chácara em vôo baixo, fazendo às vezes as rodas dos aviões tocarem a copa das árvores. Não raro atiravam coisas: bolas de trapos, laranjas, sapatos velhos ou então, enrolados em pedras, papéis com versos pornográficos... A princípio, Aderbal Quadros ficava indignado, pois tudo aquilo lhe parecia uma grandessíssima falta de respeito. Aos poucos, porém, começou a achar uma certa graça na coisa toda e foi tratando de pagar aos rapazes na mesma moeda. Quando um teco-teco passava a poucos metros acima de sua cabeça, o velho arremessava contra ele torrões de terra, pedaços de pau ou frutas podres, juntamente com uma rajada de impropérios, os quais nunca iam além de: nulidades! filhos-da-mãe! índios vadios!, pois era sabido que Aderbal Quadros não costumava dizer nomes feios. Agora lá vinha aquela coisa amarela na direção da chácara. Na certa o piloto ia fazer uma molecagem, como sempre... Babalo apanhou um torrão de terra e ficou alerta, esperando. O teco-teco voava tão baixo, que dava a impressão de que ia descer na chácara. E alguns segundos depois, quando cruzou perigosamente pelo estreito espaço que havia entre dois eucaliptos, Babalo tratou de identificar o piloto, mas não conseguiu. A geringonça passou zunindo como uma bala... O mais que pôde ver foi que o aviador lhe acenava com um lenço. Ah! Viu cair também a seus pés uma coisa branca... Na certa era algum papelucho com bandalheiras e má-criações. Hesitou por um instante, depois inclinou-se, apanhou a pedra, desenrolou o papel que a envolvia e viu que havia nele algo escrito. Tirou do bolso do colete os óculos, acavalou-os no nariz e leu: Vovô: Não deixe de aparecer hoje no Sobrado. A família já está estranhando a sua ausência. O velho teve ontem uma rebordosa e quase bateu com a cola na cerca. Outra vez o coração. Um abraço do Eduardo. Então quem ia no aeroplano era o Eduardo, o seu neto... Que maroto! Que salafrário! Tornou a ler o bilhete. Uma desgraça nunca vem só - refletiu. Como se não bastasse o desastre político, lá estava o Rodrigo outra vez com os seus ataques de coração. Precisava ir vê-lo o quanto antes. Especou o cigarro apagado atrás da orelha, soltou um prolongado suspiro e encaminhou-se para casa. [...]