Reunião de família I 25 de novembro de 1945 ... onde estou?... alcova-túmulo escuro sem ar... o sapo-boi latejando entre as pernas... fole viscoso esguichando um líquido negro... pregado à cama mortuária... o sangue se esvaindo pelos poros do animal... incha e desincha... incha e desincha... a coisa lhe sobe sufocante no peito... a menininha saiote de bailarina flor vermelha no sexo manipula o brinquedo de mola... ele quer gritar que não!... mas a voz não sai... o sapo-fole atravessado na garganta... a menininha acaricia o monstro... não sabe que ele esguicha veneno... minha filha vá buscar socorro... que venham acalmar o animal... mas cuidado não me machuquem o peito... a menininha não sabe... aperta com os dedos o brinquedo proibido... não vê que assim vai matar o Sumo Pontífice?... o remédio é cuspir fora o sapo... tossir fora o bicho-fole-músculo... tossir fora... Poucos minutos depois das duas da madrugada, Rodrigo Cambará desperta de repente, soergue-se na cama, arquejante, e através da névoa e do confuso horror do pesadelo, sente na penumbra do quarto uma presença inimiga... Quem é? - exclama mentalmente, pensando em pegar o revólver, que está na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Quem é? Silêncio e sombra. Uma cócega aflitiva na garganta provoca-lhe um acesso de tosse curta e espasmódica... E ele toma então consciência do peso no peito, da falta de ar... Ergue a mão para desabotoar o casaco do pijama e leva alguns segundos para perceber que está de torso nu. Um suor viscoso e frio umedece-lhe a pele. Vem-lhe de súbito o pavor de um novo ataque... Espalma ambas as mãos sobre o peito e, agora sentado na cama, meio encurvado, fica imóvel esperando a dor da angina. Santo Deus! Decerto é o fim... Em cima da mesinha, a ampola de nitrito... Na gaveta, o revólver... Quebrar a ampola e levá-la às narinas... Encostar o cano da arma ao ouvido, puxar o gatilho, estourar os miolos, terminar a agonia... Talvez uma morte rápida seja preferível à dor brutal que mais de uma vez lhe lancetou o peito... Mas ele quer viver... Viver! Se ao menos pudesse cessar de tossir, ficar imóvel como uma estátua... Sente o surdo pulsar do coração, a respiração estertorosa... Mas a dor lancinante não vem, louvado seja Deus! Só continua a opressão no peito, esta dificuldade no respirar... Com o espírito ainda embaciado pelo sono, pensa: "Estou me afogando". E num relâmpago lhe passa pela mente uma cena da infância: perdeu o pé no poço da cascata, afundou, a água entrou-lhe pela boca e pelas ventas, sufocando-o... Agora compreende: está morrendo afogado! Toríbio! - quer gritar. Mas em vez do nome do irmão morto, o que lhe sai da boca é um líquido... baba? espuma? sangue? A sensação de asfixia é agora tão intensa, que ele se ergue da cama, caminha estonteado até a janela, numa busca de ar, de alívio. Apóia as mãos no peitoril e ali fica a ofegar, de boca aberta, olhando, embora sem ver, a praça deserta e a noite, mas consciente duma fria sensação de abandono e solidão. Por que não me socorrem? Onde está a gente da casa? O enfermeiro? Vão me deixar morrer sozinho? Faz meia-volta e, sempre tossindo e expectorando, dá alguns passos cegos, derruba a cadeira que lhe barra o caminho, busca a porta, em pânico... "Dinda!", consegue gritar. A porta se abre, enquadrando um vulto: Maria Valéria, com uma vela acesa na mão. Rodrigo aproxima-se da velha, segura-lhe ambos os braços, mas recua soltando um ai, pois a chama da vela lhe chamusca os cabelos do peito. - Estou morrendo, Dinda! Chamem o Dante! A velha, os olhos velados pela catarata, sai pelo corredor como um sino de alarma a despertar a gente do Sobrado. - Floriano! - o castiçal treme-lhe na mão. - Sílvia! - as pupilas esbranquiçadas continuam imóveis, fitas em parte nenhuma. - Eduardo! - e sua voz seca e áspera raspa o silêncio do casarão. Floriano precipita-se escada abaixo, na direção da porta da rua. Felizmente - pensa - o Dante Camerino mora do outro lado da praça, que ele atravessa a correr. O médico não tarda em atender às suas batidas frenéticas na porta. E quando ele assoma à janela, Floriano grita: - Depressa! O Velho teve outro ataque. Um minuto depois ambos se encaminham para o Sobrado em marcha acelerada. O dr. Camerino vestiu um roupão de banho por cima do pijama e leva na mão uma maleta de emergência. Um cachorro uiva em uma rua distante. Vaga-lumes pingam a noite com sua luz verde. - Aos quarenta e cinco anos a gente fica meio pesadote - diz o médico, já ofegante. - Tu enfim és um jogador de tênis... - Era. - Seja como for, tens onze anos menos que eu... Noite morna de ar parado. O galo do cata-vento, no alto da torre da Matriz, de tão negro e nítido parece desenhado no céu, a nanquim. Floriano finalmente faz a pergunta que vem reprimindo desde que viu o amigo: - Será um novo infarto? - Pode ser... Da Padaria Estrela-d'Alva vem um cheiro de pão recém-saído do forno. A figueira grande da praça parece um paquiderme adormecido. - Que providência tomou o enfermeiro? - Que enfermeiro? O Velho despediu-o ontem ao anoitecer. - Esse teu pai é um homem impossível! - Ontem à noite fez uma das suas. Saiu às oito com o Neco Rosa e só voltou lá pelas onze... - Madona! Sabes aonde ele foi? - Desconfio... - Desconfias coisa nenhuma! Está claro como água. Foi dormir com a amante. Toda Santa Fé sabe que Sônia Fraga, a "amiguinha" de Rodrigo Cambará, chegou há dois dias do Rio e está hospedada no Hotel da Serra. Muitas das janelas do Sobrado estão agora iluminadas. Dante Camerino segura com força o braço de Floriano. - O doutor Rodrigo merecia ser capado... - diz, com a voz entrecortada pelo cansaço. E, numa irritação mesclada de ternura, acrescenta: - E capado de volta! Entram ambos no casarão. Camerino sobe imediatamente ao quarto do doente. Floriano, entretanto, permanece no vestíbulo, hesitante. Sempre detestou as situações dramáticas e mórbidas da vida real, embora sinta por elas um estranho fascínio, quando projetadas no plano da arte. Sabe que seu dever é subir para ajudar o médico a socorrer o Velho, mas o corpo inteiro lhe grita que fique, que fuja... Uma leve sensação de náusea começa a esfriar-lhe o estômago. A mulata Laurinda assoma a uma das portas do vestíbulo, e, em seus olhos gelatinosos de peixe, Floriano lê uma interrogação assustada. - Não é nada - diz ele. - Vá aquentar a água para um cafezinho. A velha faz meia-volta e afasta-se rumo da cozinha, com seus passos arrastados de reumática. Floriano está já com o pé no primeiro degrau quando lhe chega às narinas um aroma inconfundível. Bond Street. Volta a cabeça e vê o "marido" de Bibi. Marcos Sandoval está metido no seu robe de chambre de seda cor de vinho, presente - assim ele não perde ocasião de proclamar - de seu amigo o príncipe d. João de Orléans e Bragança. - Posso ajudar em alguma coisa, meu velho? - pergunta ele com sua voz bem modulada e cheia dum envolvente encanto ao qual Floriano procura sempre opor suas resistências de Terra, pois seu lado Cambará tende a simpatizar com o patife. Sente gana de gritar-lhe: "Volte para o quarto! Não se meta onde não é chamado. Não compreende que isto é um assunto de família?". Mas domina-se e, sem olhar para o outro, murmura apenas: "Não. Obrigado". Bibi aparece no alto da escada. Floriano ergue a cabeça. A perna da mulher de Sandoval, com um palmo de coxa nua, escapa-se pela abertura do quimono vermelho. Mau grado seu, Floriano identifica a irmã com a amante do pai, e isso o deixa de tal modo constrangido, que ele não tem coragem de encará-la, como se a rapariga tivesse realmente acabado de cometer um incesto. Bibi desce apressada e, ao passar entre o irmão e o marido, murmura: "Vou buscar um prato fundo para a sangria". A palavra sangria golpeia Floriano em pleno peito. Mas ele sobe a escada às pressas, fugindo paradoxalmente na direção da coisa que o atemoriza. Lá em cima no corredor sombrio encontra Sílvia. Por alguns segundos ficam parados um à frente do outro, em silêncio. Floriano sente-se tomado de um trêmulo, terno desejo de estreitar a cunhada contra o peito, beijar-lhe as faces, os olhos, os cabelos, e sussurrar-lhe ao ouvido palavras de amor. Estonteia-o a confusa impressão de que não só o Velho, mas ele também, está em perigo de vida, e talvez esta seja a última oportunidade para a grande e temida confissão... Mas censura-se e despreza-se por causa destes sentimentos. Sílvia é a mulher legítima de seu irmão... E a poucos passos dali seu pai talvez esteja em agonia... Sem dizer palavra, precipita-se para o quarto do doente. Rodrigo está sentado na cama, a face de uma lividez cianótica, o peito arfante, a boca semi-aberta numa ansiada busca de ar - o rosto, os braços, o torso reluzentes de suor... Pelas comissuras dos lábios arroxeados escorre-lhe uma secreção rosada. Inclinada sobre o marido, Flora de quando em quando limpa-lhe a boca e o queixo com um lenço. Bibi - que o irmão percebe obliquamente apenas como uma mancha vermelha - entra agora, trazendo um prato fundo, que depõe em cima da mesinha-de-cabeceira. Floriano aproxima-se do leito. Rodrigo fita nele o olhar amortecido e dirige-lhe um pálido sorriso, como o de um menino que procura provar que não está amedrontado. Floriano passa timidamente a mão pelos cabelos do pai, numa carícia desajeitada, e nesse momento seu eu se divide em dois: o que faz a carícia e o Outro, que o observa de longe, com olho crítico, achando o gesto feminino, além de melodramático. Ele odeia então o seu Doppelganger, e esse ódio acaba caindo inteiro sobre si mesmo. Inibido, interrompe a carícia, deixa o braço tombar ao longo do corpo. O silêncio do quarto é arranhado apenas pelo som estertoroso da respiração de Rodrigo. Floriano contempla o rosto do pai e se vê nele como num espelho. A parecença física entre ambos, segundo a opinião geral e a sua própria, é extraordinária. Por um instante, sua identificação com o enfermo é tão aguda, que Floriano chega a sentir também uma angústia de afogado, e olha automaticamente para as janelas, numa esperança de mais ar... Postada aos pés da cama, ereta, Maria Valéria conserva ainda na mão a vela acesa: seus olhos vazios parecem focados no crucifixo negro que pende da parede fronteira. Com o estetoscópio ajustado aos ouvidos, o dr. Camerino por alguns segundos detém-se a auscultar o coração e os pulmões do paciente. Trabalha num silêncio concentrado, o cenho franzido, evitando o olhar das pessoas que o cercam, como se temesse qualquer interpelação. Terminada a auscultação, volta as costas ao doente e por espaço de um minuto fica a preparar a seringa que esteve a ferver no estojo, sobre a chama de álcool. Depois torna a acercar-se de Rodrigo, dizendo: - Vou lhe dar uma morfina. Tenha paciência, o alívio não tarda. Floriano desvia o olhar do braço do pai que o médico vai picar. Um cheiro ativo de éter espalha-se no ar, misturando-se com a desmaiada fragrância das madressilvas, que entra no quarto com o hálito morno da noite. Bibi aproxima-se de Maria Valéria e, inclinando-se sobre o castiçal, apaga a vela com um sopro. Desde que entrou, Floriano tem evitado encarar Flora, mas há um momento em que os olhos de ambos se encontram por um rápido instante. "Ela sabe de tudo", conclui ele. Rodrigo ergue o braço, sua mão procura a da esposa. Floriano teme que a mãe não queira compreender o gesto. Flora, porém, segura a mão do marido, que volta para ela um olhar no qual o filho julga ver um mudo, patético pedido de perdão. A cena deixa-o tão embaraçado, que ele volta a cabeça e só então dá pela presença de Sílvia, a um canto do quarto, as mãos espalmadas sobre o rosto, os ombros sacudidos por soluços mal contidos. No momento em que o dr. Camerino mede a pressão arterial do doente, Floriano olha para o manômetro e, alarmado, vê o ponteiro oscilar sobre o número 240. - Quanto? - balbucia Rodrigo. O médico não responde. Agora seus movimentos se fazem mais rápidos e decididos. - Vou lhe fazer uma sangria. Isso lhe dará um alívio completo. Ao ouvirem a palavra sangria, Flora, Bibi e Sílvia, uma após outra, retiram-se do quarto na ponta dos pés. Maria Valéria, porém, continua imóvel. O dr. Camerino garroteia o braço de Rodrigo, coloca o prato na posição conveniente, tira da maleta um bisturi e flamba-o. - Segura o braço do teu pai. Floriano obedece. O médico passa um chumaço de algodão embebido em éter sobre a prega do cotovelo do paciente. - Agora fique quieto... Rodrigo cerra os olhos. O dr. Camerino faz uma incisão na veia mais saliente. Um sangue escuro começa a manar do talho, escorrendo para dentro do prato. Floriano tem consciência duma perturbadora mescla de cheiros - o suor do pai, Tabac Blond, éter e sangue. A imagem de seu tio Toríbio se lhe desenha na mente, de mistura com a melodia obsessiva duma marcha de Carnaval. Por um instante assombra-lhe a memória todo o confuso horror daquela remota e trágica noite de Ano-Bom... Um suor álgido começa a umedecer-lhe o rosto e os membros, ao mesmo tempo que uma sensação de enfraquecimento lhe quebranta o corpo, como se ele também estivesse sendo sangrado. Seu olhar segue agora, vago, o vôo dum vaga-lume que entra lucilando no quarto, pousa por uma fração de segundo no espelho do guarda-roupa e depois se escapa por uma das janelas. - Então, como se sente? - pergunta Camerino. - Diminuiu a dispnéia? Rodrigo abre os olhos e sorri. Sua respiração agora está mais lenta e regular. A transpiração diminui. A cor natural começa a voltar-lhe ao rosto. O médico trata de verificar-lhe o pulso, ao mesmo tempo que lhe conta os movimentos respiratórios. - Pronto! - exclama, ao cabo de algum tempo, com um sorriso um pouco forçado. - Dona Maria Valéria, o nosso homem está novo! Tampona com um chumaço de gaze a veia aberta e pouco depois fecha-a com um agrafo. Floriano apanha o prato cheio de sangue e, no momento em que o coloca em cima da mesinha-de-cabeceira, sente uma súbita ânsia de vômito. Precipita-se para o quarto de banho, inclina-se sobre o vaso sanitário e ali despeja espasmodicamente a sua angústia. Aliviado, mas ainda amolentado e trêmulo, mira-se no espelho e fica meio alarmado ante a própria lividez. Abre a torneira, junta água no côncavo da mão, sorve-a, enxágua a boca, gargareja - repete a operação muitas vezes, até fazer desaparecer o amargor da bílis. Depois lava o rosto e as mãos com sabonete, enxuga-se lento, sem a menor pressa de tornar ao quarto, vagamente envergonhado de sua fraqueza. Quando volta, minutos depois, encontra o pai semideitado na cama, apoiado em travesseiros altos. O dr. Camerino acabou de injetar-lhe um cardiotônico na veia e agora está de novo a auscultá-lo. Sentindo a presença de Floriano a seu lado, Maria Valéria lhe diz: - Vá tomar um chá de erva-doce, menino. É bom para o estômago. Rodrigo esforça-se ainda por manter os olhos abertos. - Não lute mais - murmura o médico. - A morfina é mais forte que o senhor. Entregue-se. Está tudo bem. Sua grande mão cabeluda toca o ombro do paciente, que diz qualquer coisa em voz tão baixa, que nenhum dos outros dois homens consegue entender. O dr. Camerino inclina-se sobre a cama e pergunta: - Que foi? Rodrigo balbucia: - Que merda! E cai no sono. Maria Valéria sorri. Floriano enlaça-lhe a cintura: - Vamos, Dinda, o seu mimoso está dormindo. - Quem é que vai passar o resto da noite com ele? - pergunta a velha. - Decidiremos isso lá embaixo - responde o médico. Apaga a luz do lustre, deixando acesa apenas a lâmpada de abajur verde, ao pé da cama. Fora do quarto, no corredor, Maria Valéria pára e fica um instante a escutar, como para se certificar de que ninguém mais a pode ouvir, além dos dois homens que a acompanham. Depois, em voz baixa, diz: - Vacês pensam que não sei de tudo? Camerino acende um cigarro, solta uma baforada de fumaça e sorri: - Que é que a senhora sabe? - O que vacê também sabe. - E que é que eu sei? - Ora, não se faça de tolo! O médico pisca um olho para Floriano: - Sua tia está atirando verdes para colher maduros... A velha põe-se a quebrar com a unha a cera que incrusta a base do castiçal. Após uma breve pausa, cicia: - A amásia do Rodrigo está na terra. Esta noite, lá pelas oito, ele saiu com aquele alcagüete sem-vergonha do Neco, e só voltaram depois dumas três horas. Não é preciso ser muito ladino para adivinhar aonde foram... Floriano e Camerino entreolham-se. - Dona Flora sabe? - pergunta o médico. - Se sabe - responde a velha -, não fui eu quem contou. Floriano toma-lhe o braço: - Agora a senhora vá direitinho para a cama. - Não estou com sono. - Mas vá assim mesmo. - Não me amole, menino! Floriano conduz a velha até a porta do quarto dela. - Vamos, Dinda, entre. Se houver alguma novidade nós lhe avisaremos... [...]