TRAILER MONIZ, WAGONMASTER "Eu vou matar Moniz Vianna!" Era Glauber Rocha, subitamente investido das funções de seu personagem Antônio das Mortes e disposto a invadir a sede do antigo Instituto Nacional de Cinema, na praça da República, no Rio, em 1968, para justiçar o crítico que desancara mais um filme do Cinema Novo. (O filme era Garota de Ipanema, de Leon Hirszman - confira na pág. 375.) Grandes tempos em que uma crítica de filme desatava homens em fúria, horas de desespero e glórias feitas de sangue. A ameaça, felizmente, não se concretizou, e contrastava com uma atitude bem diferente do doce Glauber, em março de 1964, diante de uma exibição de Deus e o Diabo na Terra do Sol, só para críticos, na cabine da United Artists, também no Rio. "Será que ele vai gostar?", perguntava nervoso o cineasta a Paulo Perdigão. Era importante que "ele" gostasse do filme - porque "ele" era Moniz Vianna, cujos artigos no jornal carioca Correio da Manhã o jovem Glauber lia com sofreguidão até pouco antes, quando ainda morava em Salvador e também se exercitava na crítica. Em 1964 eles já estavam brigados, mas, para Glauber, Moniz continuava a ser "o maior crítico do Brasil". Ao fim da sessão, Perdigão foi dar-lhe a notícia: "ele" gostara. Dias depois, em sua crítica no Correio da Manhã, Moniz classificaria Deus e o Diabo de "o melhor filme brasileiro depois de O cangaceiro, de Lima Barreto". Qualquer um sairia soltando fogos, mas Glauber achou o elogio ambíguo: na visão de Moniz, Deus e o Diabo era o melhor filme nacional desde 1953, quando saiu O cangaceiro - o que não queria dizer muito -, ou o segundo melhor de sempre, sendo O cangaceiro o primeiro? Para Moniz, não havia ambigüidade nenhuma: o que ele queria dizer era exatamente o que escrevera. E, para os que sabiam de sua estima pelo filme de Lima Barreto, o elogio a Deus e o Diabo era suficiente. É impossível a um cinéfilo brasileiro de última geração avaliar o peso da crítica de cinema nos anos 50 e 60. Era enorme, e não apenas no Brasil. O cinema se tornara o grande afrodisíaco intelectual de dois ou três continentes. Os filmes eram agora discutidos à luz da história, da ética, da religião, da psicanálise, da antropologia, do estruturalismo e do cinema mesmo. Quando discutidos à sombra da ideologia, podiam provocar rachas culturais, arruinar amizades e até desfazer namoros. Certos diretores foram promovidos a divindades internacionais - por um momento houve um culto a Resnais, outro a Antonioni, outro ainda, que se prolongou por merecimento, a Buñuel, e, por quase dez anos, uma satânica seita chamada Godard. Tudo isso era vivido também no Brasil - um urso ou um leão de ouro em Berlim ou Veneza causava dissensões nos saraus elegantes e ameaças de sopapos em botequins, do Paissandu, no Flamengo, ao Bar Bico, em Copacabana. No meio de tudo isso, em cada cidade ou país, os críticos. Alguns gozavam de impressionante prestígio. Talvez não tivessem poder para destruir a carreira de um filme, mas, a médio prazo, podiam mover o cinema, fazendo vergar a balança para o lado de suas convicções políticas ou estéticas. Uma simples crítica publicada num jornal ou revista não tinha nada de simples, nem era só uma crítica - era quase uma declaração de princípios. Foi do cinema que partiram as discussões, até hoje vigentes, sobre as "políticas culturais". Nos primórdios, no entanto, e avançando pelos anos 30, não era assim - nem o cinema fazia parte da cultura. Nos Estados Unidos, durante muito tempo, não se entendia por que homens como James Agee, Otis Ferguson ou Dwight Macdonald perdiam tempo escrevendo sobre filmes quando podiam estar falando de literatura, teatro ou política, muito mais nobres. Na Inglaterra, Graham Greene resenhou de Tom Mix a Shirley Temple, mas só enquanto não se tornou o grande romancista (o que não o impediu, depois, de escrever para o cinema). Os poucos que se atreviam a tratar do assunto com algum respeito só tinham guarida nas revistas de fãs, tipo Photoplay ou Screen Book, que, desde a década de 1920, eram vasta e gratuitamente municiadas com o material publicitário dos estúdios americanos. Os cinéfilos mais cascudos podiam saber que Dreyer e Pabst existiam, mas o que interessava aos fãs era o cabelo à escovinha de John Gilbert ou como seria a voz de Garbo no dia em que ela "falasse" (o que só aconteceu em 1930). Até que os críticos franceses, na primeira década do pós-guerra, promoveram aos poucos a virada - assim diz a lenda, universalmente aceita. Foram eles a "estabelecer" que diretores como John Ford, Howard Hawks ou Alfred Hitchcock eram autores, capazes de derrotar a mesquinhez da indústria e imprimir uma peculiar "visão do mundo" a seus filmes, não importava que estes fossem bons ou ruins (mas nenhum filme de autor era ruim). Ainda segundo a lenda, foram também eles que chamaram a atenção para diretores americanos tão obscuros que os próprios americanos os ignoravam, como Nicholas Ray, Anthony Mann, Joseph H. Lewis e os revelados pelo produtor Val Lewton: Jacques Tourneur, Robert Wise, Mark Robson. E foram ainda eles que, em 1956, "descobriram" o film noir, que os americanos tinham inventado mais de dez anos antes sem saber o que estavam inventando. A partir da fundação do Cahiers du Cinéma por Jacques-Doniol Valcroze, André Bazin e Lo Duca em 1951, esses conceitos se espalharam e se firmaram entre os críticos da Cochinchina à Patagônia. Ou seja: devemos tudo aos franceses - e, quando a lenda se torna realidade, imprime-se a lenda, não? Imprime-se, uma conversa. Bem antes dos franceses, em sua mesa na redação do Correio da Manhã, na avenida Gomes Freire, Lapa, Rio de Janeiro, DF, um jovem crítico carioca nascido na Bahia, Antonio Moniz Vianna, já falava de tudo aquilo com a maior naturalidade - dedicando-se aos mesmíssimos diretores, tanto os famosos quanto os obscuros, enxergando o que os tornava diferentes e melhores, e emprestando à avaliação de cada filme (um filme por dia!) sua considerável carga cultural em várias disciplinas. Ao assumir a coluna de cinema do Correio da Manhã (primeira crítica publicada: 9/3/1946), Moniz Vianna (n. 11/5/1924) tinha 21 anos e cursava a Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha. Mas já era um recordista de horas na sala escura em sua infância profunda em Salvador e, desde os onze anos, no Rio. Ou seja, foi um espectador consciente de cinema durante todos os anos 30, assistindo tanto aos filmes de primeira linha como às produções B e C com que Hollywood saturava o mercado, além de todos os filmes europeus possíveis. Testemunhou o fim da transição do cinema mudo para o falado, a implantação do Código de Produção em 1934, a consolidação dos grandes estúdios, a cristalização dos diversos gêneros (incluindo a ressurreição do western em 1939, com No tempo das diligências [Stagecoach]), o amadurecimento de diretores como Hawks, Frank Capra e William Wyler, o declínio de D. W. Griffith e Erich von Stroheim, a morte de Murnau, as atribulações políticas de Chaplin e Eisenstein e a explosão de Orson Welles. Então veio a guerra, mas, como esta não atingiu a programação normal dos cinemas brasileiros, Moniz pôde continuar assistindo com calma a todos os filmes produzidos no período e ao surgimento de novos diretores, novas técnicas e novos conceitos. Já os críticos franceses ficaram isolados do cinema americano durante a Ocupação. Nenhum filme americano foi exibido em Paris de 1940 a 1944, e só algum tempo depois da Liberação é que eles iriam começar a conhecer, aos magotes e às pressas, cinco ou seis anos de produção americana acumulada (ponha aí uns 1200 filmes) e mais os filmes novos - tudo isso, muitas vezes, em versões dubladas ("Jouez-le, Sam. Jouez-le pour moi", disse Ingrid Bergman para Dooley Wilson). Essa diferença se refletiu na maneira de encarar o cinema e escrever sobre ele. Em Moniz, cada crítica era o resultado de longa intimidade com uma descomunal quantidade de filmes e diretores, a ponto de ele enxergar os defeitos até dos que mais admirava. Nos franceses, a carga de hipérboles traía o deslumbramento com que eles estavam descobrindo tudo de uma vez, num clima de retrospectiva permanente. "Ford, Hitchcock, Hawks? Todo mundo já gostava deles, inclusive nós, no Brasil", Moniz me disse certa vez. "Se alguém descobriu Ford, só pode ter sido a 'Academia' de Hollywood, que já lhe tinha dado dois Oscars antes que o Cahiers o descobrisse. Nicholas Ray, outra descoberta do Cahiers? Também já era um dos nossos favoritos. Quem o Cahiers realmente descobriu foi Douglas Sirk, de quem não gostávamos e continuamos - eu, pelo menos - não gostando. Mas a crítica brasileira, esta sim, descobriu Val Lewton para o mundo. Fomos os primeiros a valorizá-lo, e ele hoje está nas histórias de cinema." E a politique des auteurs? "Quando os franceses apareceram com o cinema de autor, nós já trabalhávamos havia anos nesse sentido", diz Moniz. "Foi a descoberta do óbvio. E, além disso, exagerada. Quem dirigiu os Irmãos Marx em Uma noite na Ópera? Sam Wood? Não, foi a Metro. E que diferença fazia se fosse Michael Curtiz ou Raoul Walsh o diretor de um filme da Warner? Sempre seria um filme tipicamente Warner. Cada estúdio tinha o seu estilo e, com trinta segundos de filme, era facílimo saber de que estúdio ele era. Ford, Hitchcock, Hawks, além de Capra, estes sim, seriam autores, e já o eram antes de se tornarem produtores independentes - o que também ajudou." Se Moniz podia falar de igual para igual (ou com maior autoridade) com qualquer crítico estrangeiro, é de imaginar o que, ao surgir, ele não representou para seus leitores. Primeiro, estes nunca tinham visto ser levada tão a sério, todos os dias, em artigos que ocupavam quase meia página na vertical, uma coisa que pensavam ser simples diversão. O espectador brasileiro médio de fins dos anos 40 não era pior que o europeu médio - e era certamente melhor que o americano médio (porque tinha acesso aos filmes europeus, que os Estados Unidos ignoravam). Mesmo assim, o grosso da platéia ia ao cinema para namorar ou passar o tempo, e ainda havia gente que acreditava que os atores improvisavam suas falas à medida que o filme rolava. Fora os astros, os únicos nomes que o grande público reconhecia nos créditos eram Walt Disney, Cecil B. DeMille e J. Arthur Rank, o qual, para alguns, devia ser aquele homem batendo o gongo - só mais tarde Hitchcock ficaria realmente popular. O Brasil ainda não tinha uma crítica, nem mesmo um público para absorvê-la - mas já tinha Moniz Vianna. Não que não houvesse críticos de cinema por aqui. Sempre houve, embora a maioria se interessasse mais pelo penteado da atriz (uma fixação) do que pelas complexidades do roteiro, da fotografia e da direção. A princípio, Moniz não teve nem competidores. E se ele, generosamente, se refere à crítica brasileira no plural, foi porque, com o tempo, surgiram Rubem Biáfora, Décio Vieira Ottoni, Hugo Barcellos, Alex Viany, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Ely Azeredo, Cyro Siqueira e (mais ensaísta do que crítico) Paulo Emilio Salles Gomes, formando uma caravana de bravos que tinha Moniz como wagonmaster. Para Moniz, o grande trunfo da crítica brasileira foi o de ter feito diariamente, sob pressão (e feito bem), o que os europeus faziam mensal ou, se tanto, semanalmente, o que lhes dava todo o tempo para refletir - e errar. Os críticos brasileiros não dispunham de revistas para cinéfilos como a inglesa Sight and Sound, fundada em 1932, e francesas como Cahiers ou, a partir de 1952, Positif. Se quisessem escrever, tinham de conquistar seu espaço nos jornais de grande circulação e disputar leitores com as palavras cruzadas ou com a página de turfe. Isso fazia com que ficassem expostos a um tipo de público diferente daquele que só se interessava por travelings e contre-plongées. Em 1951, a estrela Ingrid Bergman sofreu todas as infâmias possíveis nos Estados Unidos por ter abandonado seu marido, um dentista sueco, pelo diretor italiano Roberto Rossellini, com quem naquele ano filmou Stromboli. Sem ser particularmente devoto de Ingrid e não gostando de nenhum filme de Rossellini ("Stromboli, então, era um horror!", diz ele), mas sendo ferozmente antimoralista, Moniz defendeu pelo Correio da Manhã a integridade moral da atriz e a chamou de "a milésima encarnação de Maria". O artigo foi publicado num domingo. Naquele dia, todas as missas rezadas no Rio atacaram o jornal e o crítico como blasfemos e, no dia seguinte, orientados pelos padres, os fiéis bombardearam a redação com telegramas de repúdio. O Correio da Manhã se retratou; Moniz Vianna não. Assim como não se retratou, por não se considerar responsável, pela depredação do cinema Rian, na avenida Atlântica, nos anos 50, no mesmo dia em que criticou pela coluna a decisão do exibidor Luiz Severiano Ribeiro de dobrar o preço do ingresso para uma sessão especial de Gilda, com Rita Hayworth. Moniz escreveu que o abuso justificava um quebra-quebra do cinema. Coincidência ou não, estudantes invadiram o lindo Rian naquela tarde, destruíram as cadeiras e retalharam a tela à faca. O exibidor ficou anos sem dirigir-lhe a palavra - mas passou a pensar melhor antes de reajustar seus ingressos. Era este o Moniz Vianna cuja coluna, publicada num jornal de alcance nacional como o Correio da Manhã, era lido nos mais diversos grotões. Não apenas Glauber Rocha lia Moniz Vianna na Bahia nos anos 50. Na mesma época, Mauricio Gomes Leite o lia em Belo Horizonte; Geraldo Mayrink, em Juiz de Fora; Rubem Biáfora, em São Paulo; Valério M. Andrade, em Natal; Linduarte Noronha, em João Pessoa; Walter Lima Jr., em Niterói; José Lino Grünewald, Paulo Perdigão, Sérgio Augusto, Cacá Diegues, Julio Bressane, no Rio; e muitos outros. Todos foram críticos, por mais ou menos tempo (sete deles se tornaram cineastas), e todos, um dia, admitiram dever boa parte de sua formação cinematográfica à leitura das críticas de Moniz: "Verdadeiros e copiosos ensaios quase diários, pegando uma página de alto a baixo, destilando uma erudição, uma fartura de informações absolutamente espantosa numa época em que a literatura cinematográfica no Brasil mal principiava", escreveria Perdigão num artigo intitulado "Moniz Vianna, crítico de choque", na revista Filme Cultura, em 1985 - do qual se extraiu o subtítulo deste livro. E nenhum desses rapazes sossegou enquanto não conheceu Moniz pessoalmente. Em 1959, aos vinte anos, Valério Andrade veio de Natal ao Rio especialmente para isso e acabou ficando - naquele mesmo ano foi escolhido por Moniz para tornar-se o seu segundo na coluna do Correio da Manhã. Em 1960, aos dezoito anos, Sérgio Augusto viu-se de repente diante de Moniz, mas, tímido, temendo a apresentação, escondeu-se por trás de uma pilastra - dois anos depois, dividiria com Valério a coluna de cinema do Correio quando Moniz afastou-se temporariamente para se tornar o redator-chefe do jornal. E Paulo Perdigão confessa que largou os estudos, o futebol e os amigos na sua obsessão de "se tornar Moniz Vianna" - em 1957, aos dezessete anos, "ousou ser apresentado a ele", e Moniz lhe pareceu "a exata encarnação do espírito grave, solene e autoritário" de seus textos. O primeiro trabalho de Paulo Francis na imprensa - uma apreciação do filme Júlio César [Julius Caesar], de Joseph L. Mankiewicz, pelo ângulo do teatro - foi uma encomenda de Moniz para o Correio, em meados dos anos 50. Outro que Moniz revelou como cronista (e o estimulou a escrever sobre cinema) foi Carlos Heitor Cony, sempre no Correio. Durante sua gestão como redator-chefe, e aproveitando o alto índice de críticos de cinema espalhados pelas editorias do jornal (lá também estavam José Lino Grünewald, Mauricio Gomes Leite e Salvyano Cavalcanti de Paiva), criou-se o "Conselho de cinema", famoso pelas estrelinhas e bolas pretas atribuídas aos filmes - uma idéia, esta sim, tirada do Cahiers. Todos os sábados, o quadro com as cotações distribuídas por dez críticos (entre os quais Ely Azeredo, Cony, Perdigão, Sérgio Augusto, Valério e o crítico teatral Van Jafa) era esmiuçado por outra novíssima geração de leitores - a minha -, que se divertia de véspera, tentando adivinhar o julgamento dos críticos sobre os filmes em cartaz. Eu sabia que se o filme fosse, digamos, de Jean-Luc Godard, os godardianos José Lino e Mauricio lhe concederiam cinco estrelas (a cotação máxima), ao passo que o fordiano Moniz Vianna lhe sapecaria a letal bola preta. Mas, para minha surpresa, Moniz às vezes dava uma estrela a Godard. No futuro, ele próprio me explicaria, rindo: "Uma estrela era mais humilhante que a bola preta". "Nunca um filme da Nouvelle Vague me entusiasmou", diz Moniz. "Tantos anos depois, qual daqueles diretores se inscreveu entre os grandes do cinema? Nem mesmo Truffaut, que era o melhor. É evidente que eles contribuíram para simplificar a realização de um filme. Mas, em certo sentido, contribuíram para tornar o cinema mais pobre. Nem nisto eram tão radicais como pensavam, porque às vezes usavam estúdios. E nem foram os primeiros, porque o neo-realismo, filmando na rua e usando amadores em vez de atores, produziu filmes e diretores de melhor qualidade." Com toda a severidade de Moniz, seus esportes favoritos (além do futebol - ou, para ser exato, o Flamengo) sempre foram o diálogo e a polêmica. Donde a admiração por ele nunca impediu que seus seguidores sustentassem opiniões às vezes totalmente opostas às suas. José Lino Grünewald, por exemplo, que partilhava com Moniz a admiração pelo cinema tradicional americano, era muito mais conhecido por sua ardente adesão aos filmes "de vanguarda" dos anos 50 e 60, incluindo os de Alain Resnais e de toda a Nouvelle Vague (veja Um filme é um filme, Companhia das Letras, 2001). Paulo Perdigão convenceu-se de que Shane [Os brutos também amam] era a maior coisa do cinema em todos os tempos - o que Moniz, que sempre gostou do filme, achava um exagero - e escreveu um belo livro, Shane (Rocco, 2002). Sérgio Augusto seria o autor do livro definitivo, Este mundo é um pandeiro (Companhia das Letras, 1987), sobre o gênero que Moniz mais desprezava: a chanchada. E, a seu tempo, todos esses críticos se entusiasmaram com filmes do Cinema Novo, nos quais Moniz não via nada de mais. Mas essas discordâncias só se manifestavam na distribuição das estrelas e bolas pretas no "Conselho" do Correio. Fora dali, Moniz era o pai, ou o irmão mais velho, cujo apartamento (dele e de sua mulher, Amiris) eles se orgulhavam de freqüentar e de cujo universo participavam - um mundo em que o amor ao cinema pairava sobre tudo, em que a descoberta de determinado filme ou o levantamento da filmografia completa de um diretor provocava thrills comuns a todos. Muitos deles trabalharam com Moniz, fundador e diretor da Cinemateca do MAM de 1957 a 1965, nas monumentais retrospectivas históricas do cinema americano (1958), francês (1959), italiano (1960), russo (1961) e britânico (1962) organizadas por ele, com a apresentação de centenas de títulos em cada uma - quando, pela primeira vez, seus leitores mais moços puderam ver os filmes que ele tanto citava nas críticas. A do cinema francês, por exemplo, compreendeu de La sortie des Usines Lumière, dos irmãos Lumière (1895!), a Ligações amorosas, de Roger Vadim (1959). A do cinema italiano foi de Matrimonio abissino, de Roberto Omegna (1907), ao novíssimo A doce vida, de Fellini (1959). E a do cinema americano, além de desencavar filmes mudos de John Ford que nem os historiadores americanos sabiam existir, permitiu que duas gerações de cinéfilos brasileiros finalmente conhecessem Cidadão Kane, ausente de qualquer tela por aqui desde sua estréia em 1941. Em 1965 e 1969, Moniz comandou as únicas versões do FIF, o Festival Internacional do Filme, inesquecível pela gaivota estilizada que era o seu símbolo. Trouxe diretores como Fritz Lang, Vincente Minnelli, Josef von Sternberg, Roman Polanski, astros como Claudia Cardinale, Glenn Ford, a veterana Mitzi Gaynor, a bergmaniana Ingrid Thulin, dezenas de outros, e, nas duas vezes, ficou claro que Copacabana podia dar um baile na Croisette, e o Rio em Cannes. Mas a política, como sempre, impediu que os festivais continuassem. Com toda essa atividade construtiva e pedagógica, a polêmica sempre foi a marca de Moniz, e ele peca pela modéstia quando se coloca como apenas um num grupo de críticos brasileiros que sustentou atitudes estéticas radicais. Em muitos casos lutou sozinho, como quando declarou guerra à chanchada e, como também não gostava da maioria dos filmes da Vera Cruz, foi rotulado de "inimigo do cinema brasileiro". O que não era verdade - sua aversão se limitava às comédias carnavalescas de Carlos Manga, José Carlos Burle ou Lulu de Barros e aos dramalhões produzidos pelos italianos da Vera Cruz, sem nada de pessoal. Além disso, havia muitos diretores brasileiros que ele respeitava: Lima Barreto, Jorge Ileli, Paulo Wanderley, Adhemar Gonzaga, Walter Hugo Khouri, Roberto Santos, Ozualdo Candeias, Rubem Biáfora, Flavio Tambellini, Carlos Hugo Christensen. A chanchada acabou e surgiu o Cinema Novo - do qual Moniz também discordou, por considerá-lo uma cópia da Nouvelle Vague, que, a seu ver, já era uma cópia de certo cinema americano. E os arranca-rabos continuaram. Suas brigas e reconciliações com Glauber Rocha serviam de barômetro para outros críticos e cineastas e, em dado momento, isso caracterizou um racha no cenário: os anti e os pró-Moniz Vianna. Um racha às vezes difícil de entender, porque os dois, baianos de origem, se des/entendiam à sua maneira. "Elogiei Deus e o Diabo quando estava brigado com Glauber", diz ele. "Mas critiquei negativamente [eufemismo para arrasou - vide pág. 368] Terra em transe numa fase de pazes. O curioso é que Joaquim Pedro de Andrade nunca me tenha dirigido a palavra, embora eu raramente me ocupasse de seus filmes - talvez por isto. Mas sempre me dei bem com Nelson Pereira dos Santos, sem nunca elogiá-lo, com Cacá Diegues, com Walter Lima Jr." A esquerda, que praticamente encampava o Cinema Novo, não gostava de Moniz, mas isso não lhe tirava o sono. Por ironia, no auge dos embates ideológicos, ele se viu administrador do Instituto Nacional de Cinema (INC), com poderes para liberar ou vetar verbas para filmes brasileiros - e nunca deixou que suas opiniões pessoais influíssem no destino do dinheiro. O acúmulo de funções públicas e o esmagamento do jornal que era a sua verdadeira casa, o Correio da Manhã, a partir de 1969, fizeram com que Moniz Vianna aos poucos se afastasse da crítica. Sua produção depois disso foi esporádica e, às vezes, era motivada apenas pelo fato de que o outrora glorioso Correio, submetido a uma lenta e calculada agonia, precisava continuar circulando, mesmo que reduzido a humilhantes quatro páginas. Seu último e mais emocionado artigo, "Ford, o primeiro", publicado em 9 de setembro de 1973, tratava da morte do cineasta que ele mais admirou, ocorrida uma semana antes. E, em 1974, o Correio da Manhã também morreu. Para Moniz, eram perdas imensas, seguidas de uma outra, que ele nunca poderia esperar: "Para minha grande surpresa, o western acabou. Escrevi certa vez que o cinema começou com um western [The great train robbery, de Edwin S. Porter, 1903] e, se um dia o cinema tivesse de fazer seu último filme, este filme também seria um western. A menos que o cinema já tenha feito o seu último filme". Para Moniz, sim. Recusou convites para escrever em outros jornais e, desde então, raramente foi visto entrando ou saindo de um cinema. Em compensação, suas estantes contêm em vídeo todos os filmes de seu coração, inclusive o favorito absoluto, Aurora [Sunrise], de Murnau, que ele já passou, para si mesmo ou para os amigos, mais de cem vezes. E chorou em todas. Sem dar nenhum motivo concreto para isso, Moniz sempre foi refratário à idéia de publicar suas críticas em livro. Muitos intelectuais de sua geração e mesmo alguns mais novos são assim, mas Moniz tinha vários truques para se livrar do assédio dos amigos: ou negava permissão à existência do livro - ou concordava com a idéia, mas não liberava o material para consulta. Numa ocasião, em 1991, quando ele parecia ter dado o sinal verde, quatro conspiradores - Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Valério Andrade e eu - tramamos o seqüestro do material com Isadora Moniz Vianna, filha do crítico. Numa reunião no Hotel Ouro Verde, em Copacabana, planejamos que as críticas - ou parte delas, já que, pelos cálculos de Perdigão, deviam chegar a 6 mil! - seriam contrabandeadas aos poucos por Isadora do apartamento de Moniz, em malas, e estocadas no apartamento dela, ambos também em Copacabana. Os quatro amigos teriam acesso ao material, fariam a seleção e apresentariam a lista final a Moniz como um fato consumado. Luiz Schwarcz topou publicar o livro na Companhia das Letras - desde que, evidentemente, Moniz concordasse. Mas, antes mesmo que a seleção fosse feita, Moniz deu por falta do material e vetou o projeto. As críticas voltaram para os seus - estes, sim - implacáveis arquivos. Pelos muitos anos seguintes, até 2003, tentamos convencê-lo a mudar de idéia - em vão. Mas onde todos nós fracassamos, seu neto, Eduardo Moniz Vianna, foi vitorioso. Pode ter contribuído para isso o fato de que, sem ter conseguido transformar nenhum de seus filhos (Isadora, Gonçalo e Isolda) em cinéfilo, Moniz encontrou em Eduardo, filho de Isadora, o parceiro ideal para intermináveis madrugadas diante do vídeo, assistindo a clássicos de Griffith a Hitchcock. Falando em Hitchcock, o primeiro filme que Moniz passou para seu neto foi Psicose - detalhe: Eduardo tinha então quatro anos. Hoje, aos vinte, Eduardo discute Rouben Mamoulian e William Wellman de igual para igual com o avô, e convenceu-o de que toda uma novíssima geração de cinéfilos - a dele - merecia conhecer o nome mais importante da crítica de cinema no Brasil. Eduardo, Isadora e o próprio Moniz me convidaram a organizar o livro. E assim, treze anos depois, Um filme por dia se torna realidade. O título pode ecoar o de um dos filmes menos lembrados de John Ford (Um crime por dia [Gideon of Scotland Yard, de 1957]), mas sua escolha se deveu a outro motivo. Foi tirado da natureza do próprio trabalho de Moniz Vianna, que praticamente escreveu sobre um filme por dia, durante 27 anos - um recorde mundial, segundo Perdigão, no máximo empatando em longevidade com Bosley Crowther, do New York Times (mas fazendo Crowter comer poeira em qualidade). Com os palpites do avô, Eduardo selecionou cerca de 3 mil críticas, que levou seis meses lendo. Quando estas foram reduzidas a quatrocentas, entrei em cena e, negociando umas pelas outras, elas ficaram em duzentas, até que, com sugestões de Sérgio Augusto, Valério Andrade e Paulo Perdigão, se chegasse aos 91 textos de que se compõe este livro. O objetivo foi dar um equilíbrio equivalente ao tipo de programação com que Moniz Vianna trabalhava normalmente no período coberto pelo livro: 50% dos filmes que estreavam eram americanos e o resto do bolo, dividido entre italianos, franceses, ingleses, japoneses, suecos e brasileiros. Todos os filmes resenhados neste livro foram produzidos no período em que Moniz exerceu a crítica - a data que acompanha cada título se refere ao ano de sua distribuição no país de origem. Sabendo-se que os filmes eram exibidos (e criticados) entre nós com cerca de um ano de atraso, cada julgamento era uma aposta contra a posteridade. Ninguém podia saber o que o futuro reservava a cada um deles - e, como diz Perdigão, Moniz não tinha um Moniz Vianna em quem se basear. Mas ele sempre acertou, porque inúmeros dos filmes que elogiou, alguns realizados há quase sessenta anos, são hoje clássicos indiscutíveis. Eles nasceram assim - ou terá sido a lucidez e o reconhecimento de críticos como ele que lhes conferiram esta aura? O importante para mim, no entanto, não são os filmes. São as críticas. E qual a melhor crítica de Antonio Moniz Vianna? A de Vidas amargas ou a de Moby Dick? A de Quero viver ou a de A doce vida? A de Freud, além da alma ou a de 2001? Não quero nem preciso chegar a uma conclusão. Li e recortei muitos desses textos (pelo menos os de 1960 para cá) no mesmo dia em que saíram no jornal e, de tão lidos e relidos, eles acabaram decorados. Moniz Vianna, para mim, assim como tinha sido para Perdigão, Sérgio ou Valério, era uma entidade quase mítica - o homem que vira todos os filmes e, ao escrever sobre eles, nos ensinava não só de cinema, mas de história, literatura, música, mitologia. E, como todos, eu também queria ser Moniz Vianna quando crescesse. Certa tarde, em março ou abril de 1967, o foca de dezenove anos viu sentar-se à mesa ao seu lado, na redação do Correio da Manhã, o homem magro, cara fechada, camisa muito branca, cabelos muito pretos, óculos e cachimbo, que ele já conhecia pelas fotos no jornal. O homem levantou a tampa de aço da mesa, a pesada Remington que ficava embutida de cabeça para baixo brotou, e ele começou a escrever - ali mesmo, no meio dos repórteres e estagiários. Na primeira pausa, o foca lhe dirigiu a palavra - alguma pergunta boba a respeito do filme sobre o qual ele devia estar escrevendo. Cachimbo entre os dentes, o homem respondeu com um sorriso surpreendentemente moleque e jovial. Desandou a falar - muito parecido com seu jeito de escrever - como se o rapaz fosse um de seus interlocutores desde o tempo em que Raoul Walsh ainda não usava tapa-olho. E o foca se sentiu com três metros de altura porque passara a ser amigo de Moniz Vianna. Ruy Castro RASHOMON Rashomon 1950 DIREÇÃO Akira Kurosawa - PRODUÇÃO Minoru Jingo - ROTEIRO Akira Kurosawa e Shinobu Hashimoto, baseado no romance Na floresta, de Ryonosuke Akutagawa - FOTOGRAFIA Kazuo Miyagawa - MÚSICA Takashi Matsuyama - INTÉRPRETES Toshiro Mifune, Machiko Kyo, Masayuki Mori, Takashi Shimura, Minoru Chiaki, Fumiko Honma, Daisuke Kato. - Daiei (Japão), 90 minutos, p&b, 1950. Rashomon, que conquistou em Veneza o Leão de São Marcos e foi considerado pela Academia de Hollywood "o melhor filme estrangeiro" de 1951, é realmente uma obra extraordinária. Nada fica a dever, no plano da técnica e no plano da arte, às grandes manifestações do cinema ocidental. Uma surpresa, evidentemente, para os que não aguardavam do cinema japonês tão expressiva demonstração de maturidade. O problema central do filme que Akira Kurosawa extraiu do romance homônimo (e a tradução de Rashomon seria Na floresta) de Ryonosuke Akutagawa - escritor atormentado pelo ceticismo, que se suicidou jovem ainda, aos 35 anos - é o problema da verdade. Quatro pessoas depõem acerca de um incidente obscuro, inclusive a própria vítima (através da reencarnação em um médium), e cada uma exprime a sua versão, substancialmente diversa das outras. No final, como no princípio, só um fato é indiscutível: um samurai fora morto, depois de ter sido subjugado por um bandido e presenciado a violação de sua esposa. O filme tem início no século VIII: sob o pórtico de um templo em ruínas, na cidade de Kyoto, abrigam-se da chuva três homens - um sacerdote budista, em pânico espiritual pela perda progressiva de sua fé nos homens, um lenhador e um servo. A este, que mais tarde se revelará um ladrão, narram os dois primeiros a história do crime - e flashbacks ilustram os quatro depoimentos, o do bandido e o da mulher prestados diante de um tribunal que jamais é visto, ou (deve ter sido esta a intenção do realizador, tal a disposição em cena dos personagens) um tribunal constituído pela platéia mesma; o do morto pela boca de uma feiticeira, em quem seu espírito se reencarna; e, por fim, o do próprio lenhador, que testemunhou o incidente e que também o mascara. O bandido, para valorizar a sua bravura, exalta a do samurai, e afirma que o matou num duelo provocado pela mulher; esta assegura ter sido ela própria que apunhalou o marido; o samurai fala em suicídio; o lenhador narra o suficiente para não se comprometer, provavelmente por ter se apoderado da arma do crime. A cada um sua verdade - ou sua mentira. Em quem acreditar? O sacerdote, o intelectual da época, que sobreviveu à guerra e à fome, à inundação e à epidemia, tem necessidade de crer de novo - mas, de seu posto de observação da crise de todos os valores morais, experimenta uma sensação intolerável ao ter de admitir que "a fraqueza dos homens os obriga a mentir". É neste ponto, já o epílogo de Rashomon, que os três homens - uma espécie de coro da tragédia clássica - têm a atenção despertada para o choro de um recém-nascido. O servo, chegando primeiro, se apodera dos agasalhos da criança abandonada, mas o lenhador decide adotá-la - o que reconcilia provisoriamente o sacerdote com a humanidade. O filme é magnificamente dirigido e interpretado com um vigor semibárbaro. Akira Kurosawa não usa um plano inútil, uma acentuação excessiva ou arbitrária - e a angulação, o enquadramento, a movimentação da câmera perfazem um sentido plástico quase insólito, mas sempre admirável. A fotografia (apesar do mau estado das cópias, feitas no Brasil) e a música (inspirada, em muitas passagens, no "Bolero" de Ravel) são absolutamente funcionais. Entre os atores, todos perfeitamente ajustados aos papéis, é Toshiro Mifune o que sobressai: seminu, explodindo em gargalhadas ou ofegando como um animal, é um ex-homem, que substitui pela espada as garras das feras. Nas múltiplas versões de seu duelo com o samurai (Masayuki Mori, também impecável), Rashomon atinge um clímax de ferocidade dificilmente igualável.