PREFÁCIO À REEDIÇÃO DE 1983 O meu objetivo ao escrever este livro não era apresentar uma história geral de todos os tipos de pensamento expressos pelos árabes, ou na língua árabe, durante o século XIX e início do século XX. Estava interessado no pensamento sobre política e sociedade dentro de certo contexto: aquele criado pelo crescimento da influência e do poder europeus no Oriente Médio e no Norte da África. No período que o livro abrange, os povos de fala árabe foram atraídos, de maneiras diferentes, para a nova ordem mundial que surgiu da revolução técnica e industrial. Era uma ordem que se expressava num novo tipo de crescimento do comércio europeu, nas mudanças conseqüentes na produção e no consumo, na difusão da influência diplomática européia, na imposição do controle ou domínio europeu em alguns lugares, na criação de escolas baseadas num novo modelo, e na difusão de novas idéias sobre como os homens e as mulheres deveriam viver em sociedade. É a essas idéias que me refiro, um tanto imprecisamente, quando uso a palavra "liberal" no título; esse não foi o primeiro título que escolhi para o livro, e não estou de todo satisfeito com ele, pois as idéias que exerceram influência não foram apenas sobre instituições democráticas ou direitos individuais, mas também sobre a força e a unidade nacionais e o poder dos governos. À medida que passava o século, tornava-se cada vez mais difícil ignorar os processos de mudança e não reagir a eles de alguma maneira. Mais de um tipo de reação era possível, e o meu livro trata de apenas uma dessas reações: a daqueles que viam o crescimento do poder europeu e a difusão das novas idéias como um desafio a que tinham de responder pela mudança, numa certa direção, de suas próprias sociedades e dos sistemas de crenças e valores que lhes davam legitimidade, por meio da aceitação de algumas das idéias e instituições da Europa moderna. Isso, é claro, criava problemas de diferentes tipos. O que deviam aceitar? Se as aceitassem, poderiam permanecer fiéis também a suas crenças e valores herdados? Em que sentido, se algum, ainda continuariam sendo muçulmanos e árabes? Um debate que começava no nível das instituições políticas ou leis poderia acabar questionando a identidade dos homens e das mulheres e suas crenças acerca da vida humana. Foi em dois lugares, Cairo e Beirute, que essas questões foram primeiro propostas, e os debates a respeito foram travados de forma muito contínua e no mais alto nível de conhecimento do novo mundo da Europa, e o meu principal interesse era, portanto, o que se pensava, escrevia e publicava nessas duas cidades. Parecia-me ainda mais apropriado dar muita atenção a esses dois lugares porque estavam estreitamente ligados entre si de várias maneiras, e em particular pela migração de escritores libaneses e sírios para o Egito, e também porque em ambos os lugares não havia apenas um ou dois escritores dispersos, mas grupos interagindo uns com os outros e com aqueles que vieram antes e depois deles, de modo que se tornava possível verificar continuidades de pensamento. Havia ainda outra razão para a importância das ligações entre o Cairo e Beirute. A maioria dos escritores proeminentes em Beirute pertencia às comunidades cristãs do Líbano e da Síria, cujo papel desempenhado na assimilação do pensamento europeu era desproporcional ao seu número. Como cristãos, eles reagiam à cultura ocidental de maneiras um tanto diferentes das maneiras dos pensadores muçulmanos, e a interação entre os dois grupos ajuda a ilustrar alguns dos problemas com que se defrontavam aqueles que tentavam entrar num acordo com o poder e o pensamento do Ocidente. Escrever uma história do pensamento requer certas escolhas. É possível tratar de maneira geral das "escolas" de pensamento, mas essa estratégia pode anuviar as diferenças entre os pensadores individuais e impor uma falsa unidade ao seu trabalho. A outra maneira é pôr a ênfase em certo número de indivíduos, escolhidos porque são amplamente representativos de tendências ou gerações, e explicar tão plenamente quanto possível as influências, as circunstâncias e os traços de personalidade que podem tê-los levado a pensar sobre certas questões de um certo modo. Esse método também possui os seus perigos. A maioria dos escritores que discuto no livro espalhou seus trabalhos em artigos para jornais e periódicos, escritos com um determinado propósito; alguns escreveram por um longo período, durante o qual as circunstâncias mudaram e eles também talvez tenham mudado. Portanto, há o risco de impor uma unidade artificial ao seu pensamento, de fazê-lo parecer mais sistemático e consistente do que de fato era, e também de dar a impressão de que eram mais importantes e originais do que realmente foram; a maioria deles (embora não todos) foram pensadores secundários de segundo ou terceiro grau de importância. Apesar de todos os seus perigos, escolhi o segundo método, porque ele me permitia fazer o que mais me interessava na época. Primeiro, queria captar, por uma atenção rigorosa ao que escreveram, ecos dos pensadores europeus cujos livros eles tinham lido ou conhecido por ouvir falar, e assim descobrir, se pudesse, o ponto em que certas idéias entraram no discurso intelectual em árabe. Segundo, desejava tentar relacionar diferentes pensadores uns com os outros, e construir uma estrutura cronológica dentro da qual poderiam ser inseridos. Trabalhos dispersos, alguns de alta qualidade, tinham sido feitos sobre certas pessoas ou movimentos: sobre o "modernismo islâmico" e o nacionalismo árabe em particular. O meu livro, entretanto, representa uma das primeiras tentativas de ver como estavam relacionados um com o outro. O livro tenta, portanto, traçar a linha de descendência de quatro gerações de escritores. A primeira fase, que se estende aproximadamente de 1830 a 1870, é aquela em que um pequeno grupo de funcionários e escritores se tornou consciente da nova Europa da indústria, das comunicações rápidas e das instituições políticas, não tanto como uma ameaça, mas apresentando um caminho a ser seguido. O que eles escreviam estava ligado às tentativas que estavam sendo feitas pelos governos em Istambul, Cairo e Túnis para adotar algumas das leis e instituições da Europa moderna a fim de aumentar a sua força; e eles escreviam primariamente para leitores que ainda viviam dentro de um mundo mais antigo de pensamento, a fim de convencê-los de que poderiam adotar instituições e leis do exterior sem serem desleais com eles mesmos. A segunda geração, que se estende aproximadamente de 1870 a 1900, enfrentava uma situação que havia mudado de algumas maneiras importantes. A Europa se tornara o adversário, bem como o modelo: os seus exércitos estavam presentes no Egito, na Argélia e na Tunísia, e a sua influência política crescia por todo o Império Otomano; as suas escolas formavam estudantes cujos processos de pensamento e cuja visão de mundo estavam longe daquelas de seus pais; as cidades estavam sendo refeitas segundo um modelo europeu, e os sinais familiares de vida urbana estavam sendo substituídos por outros. Nessas circunstâncias, a mudança se tornara inevitável, e os escritores considerados não tentavam persuadir aqueles arraigados nas suas próprias tradições de que deviam aceitar a mudança, mas convencer aqueles formados num novo molde de que ainda podiam se agarrar a alguma coisa de seu passado. A principal tarefa dos pensadores dessa geração era reinterpretar o Islã a fim de torná-lo compatível com a vida no mundo moderno, e até uma fonte de energia dentro dele. A figura representativa dessa fase foi Muhammad 'Abduh. A sua obra foi levada avante pelo periódico al-Manar, e isso é significativo, pois foi durante esse período que os jornais e os periódicos se tornaram importantes. No terceiro período, que se estende aproximadamente de 1900 a 1939, os dois fios de pensamento que 'Abduh e os outros tinham tentado manter unidos afastaram-se ainda mais um do outro. Num lado, estavam aqueles que permaneciam firmes nas bases islâmicas da sociedade e, ao procederem desse modo, aproximavam-se de um tipo de fundamentalismo muçulmano. No outro, estavam aqueles que continuavam a aceitar o Islã como um corpo de princípios ou, no mínimo, de sentimentos, mas defendiam que a vida na sociedade devia ser regulada por normas seculares, de bem-estar individual ou força coletiva. Essa era uma linha de pensamento já indicada por alguns cristãos libaneses na geração anterior, agora continuada por alguns escritores muçulmanos egípcios, e que atingiu o seu fim lógico na obra de Taha Husayn, consciente como estava da necessidade de preservar o passado islâmico na imaginação e no coração, mas de tornar-se parte da cultura moderna que se apresentara primeiro na Europa ocidental. Para a maioria dos escritores dessa geração, o princípio secular para a reconstrução da sociedade era o do nacionalismo, definido em termos otomanos, egípcios ou árabes. Com o crescimento de novas classes de funcionários e oficiais cultos, o surgimento dos estudantes como uma força política e a imposição de um domínio estrangeiro a mais países árabes, o nacionalismo se tornou um motivo para a ação bem como um princípio de pensamento. Uma quarta fase se abre com a Segunda Guerra Mundial, e no Epílogo tentei definir algumas de suas características. A guerra pôs fim ao período de ascendência européia e abriu caminho para o período dos Estados Unidos e da Rússia, expressando-se não num controle político direto, mas num poder militar e econômico definitivo. A inquietação gerada pela guerra, a difusão da educação, o crescimento das cidades e da indústria e o uso dos novos meios de comunicação de massa provocaram uma mudança na escala da vida política: havia um campo mais amplo de ação política, e maior público para as idéias e a retórica. Tentei indicar alguns dos novos modos de pensamento e ação, embora na época da redação do Epílogo eles não pudessem ser vistos tão claramente como agora: o movimento em favor de uma revivescência do Islã como a única base válida para a sociedade, exemplificado pelos Irmãos Muçulmanos; o movimento pelo qual o nacionalismo começou a adquirir um conteúdo de reforma social, expresso freqüentemente na linguagem do socialismo; e o alargamento da idéia do nacionalismo árabe, para incluir todos os países em que se fala a língua árabe. Foi para tornar clara essa última idéia que incluí um breve exame do movimento das idéias no Norte da África; mas o centro de gravidade ainda residia mais ao leste, e 'Abd al-Nasir pode ser considerado a figura representativa desse período. 2. Um livro pode nos dizer algo, não só sobre o seu tema explícito, mas sobre a época em que foi escrito. Ao ler este livro pela primeira vez depois de vinte anos, posso ver claramente que reflete uma certa maneira pela qual eu e talvez outros considerávamos a história do Oriente Médio durante as décadas de 1950 e 1960. O pressuposto subjacente ele é que um pequeno grupo de escritores, que foram afastados daqueles entre os quais viviam pela educação e pela experiência, podia ainda assim expressar as necessidades da sua sociedade, e em alguma medida pelo menos as suas idéias serviam como forças no processo de mudança. Sem fazer essa pressuposição, não teria valido a pena escrever tantas páginas sobre pensadores que, apesar de algumas de suas idéias terem um certo interesse intrínseco, não eram da categoria mais elevada. Não acho que fosse um pressuposto falso, e se eu fosse escrever um livro sobre o mesmo tema, hoje, acho que escreveria sobre esses escritores, e talvez alguns outros, de forma muito semelhante. Tentaria lhe dar outra dimensão, entretanto, perguntando como e por que as idéias de meus escritores tiveram influência sobre as mentes de outros. Responder a essas questões implicaria um estudo mais pleno e mais preciso das mudanças na estrutura da sociedade de uma geração para outra, com distinções cuidadosas entre o que estava acontecendo em diferentes países árabes, e também alguma tentativa de estudar o processo de comunicação, tanto direto como indireto. As idéias que me interessavam não se difundiram apenas pelos escritos daqueles cuja obra estudei; elas foram transmitidas para um público maior em escritos de outro tipo e sobretudo na poesia. Estou ciente de que poderia haver um modo completamente diferente de considerar esses escritores, julgando que suas idéias não expressam aquilo em que realmente acreditavam, mas meio que revelam, meio que escondem a busca de seus próprios interesses. Essa visão tem sido expressa com força e elegância por Elie Kedourie. Escrevendo sobre Afghani e 'Abduh, ele os descreve como homens "envolvidos em transações complicadas e obscuras" e pergunta se não seria melhor "supor que o que se faz não tem nenhuma conexão necessária com o que se diz, e que o que se diz em público pode ser muito diferente daquilo em que se acredita em particular". Não estou convencido por esse argumento. Sobre Afghani há realmente um mistério, e não estou certo de tê-lo esclarecido, embora ainda ache que o professor Kedourie está errado ao descrever a sua atitude como de "descrença religiosa", e o professor Keddie tem razão em tentar situá-lo em algum ponto dentro do amplo espectro do pensamento xiita. Sobre escritores posteriores, de 'Abduh em diante, não parece haver nada misterioso. Escreviam em geral dentro de uma tradição sunita em que os escritores diziam aquilo em que acreditavam, por mais cautelosa que fosse a maneira; e o alcance do que podia ser publicado, certamente no Egito e na Síria otomana tardia, era bastante amplo. Mesmo que fossem insinceros, havia certa coerência no que diziam, sendo possível articular a estrutura lógica de seu pensamento, e isso é útil porque, se eles tiveram realmente certa influência sobre os leitores da sua geração e de gerações posteriores, não foi por causa de suas "transações obscuras", mas por causa de suas idéias. Concordo a esse respeito com Hamid Enayat: "as idéias parecem ter uma vida própria: as pessoas, em especial aquelas de gerações subseqüentes à dos autores, tendem freqüentemente a perceber as idéias com pouca ou nenhuma consideração para com os desígnios insidiosos dos autores, a menos que sejam dotadas de uma capacidade de cinismo mordaz". O que realmente me perturba não é isso, mas o pensamento de que talvez devesse ter escrito um tipo diferente de livro. Quando o escrevi, estava principalmente interessado em notar as rupturas com o passado: novos modos de pensamento, novas palavras ou palavras antigas usadas de um modo novo. Em alguma medida posso ter distorcido o pensamento dos escritores que estudei, pelo menos aqueles da primeira e segunda gerações: o elemento "moderno" no seu pensamento pode ter sido menor do que aquele que deixei implícito, e teria sido possível escrever sobre eles de maneira que enfatizasse a continuidade em vez da ruptura com o passado. Um livro de Christian Troll sobre Sayyid Ahmad Khan me parece oferecer o tipo de análise que agora creio ser necessário; mostra as bases "tradicionais" de seu pensamento e indica os pontos em que delas se aparta na direção de algo novo. Há também livros a serem escritos sobre pensadores de um tipo completamente diferente: aqueles que ainda viviam no seu mundo herdado de pensamento, cuja principal meta era preservar a continuidade da sua tradição, o que fizeram nos modos costumeiros, escrevendo e ensinando dentro da estrutura das grandes escolas, a Azhar no Cairo ou a Zaytuna em Túnis, ou nas irmandades sufistas. Para citar mais uma vez o livro de Hamid Enayat: um interesse especial se liga àqueles cujas idéias "são articuladas nos termos e categorias reconhecidos da jurisprudência, teologia e disciplinas correlatas islâmicas", porque as suas "premissas doutrinárias, epistemológicas e metodológicas têm assegurado a continuidade do pensamento islâmico". De muitas maneiras foram esses escritores e professores que continuaram a dominar durante todo o século XIX, uma vez que a maioria dos árabes foi alfabetizada e adquiriu cultura em escolas tradicionais e permaneceu filiada a uma ou outra das ordens sufistas. No século atual, eles perderam grande parte do seu domínio, ou assim parecia no momento em que escrevia o meu livro: hoje é mais claro do que então, pelo menos para mim, que a extensão da área da consciência e da atividade políticas, o surgimento da "política de massa", introduziria no processo político homens e mulheres que ainda estavam sujeitos a ser dominados pelo que a Azhar dizia ou escrevia e pelo que os xeques de uma irmandade poderiam ensinar. 3. Este livro foi publicado pela primeira vez em 1962, reimpresso em 1967 com várias correções e reimpresso mais uma vez numa edição de bolso em 1970. Para a presente reedição pude fazer um número limitado de pequenas mudanças naqueles pontos em que encontrei erros ou falhas de impressão, mas não tentei mudar o texto de nenhuma maneira importante. No entanto, fui capaz de acrescentar um suplemento à bibliografia, na qual não tentei levar a história além de 1962, mas dar referências de livros e artigos que apareceram na sua maior parte a partir daquela data e que lançam luz sobre os temas do livro. Como anteriormente, gostaria de expressar a minha profunda gratidão para com as instituições e as pessoas que me ajudaram. Minha maior dívida é para com o presidente e os membros de Magdalen College, Oxford, que me escolheram para uma bolsa de pesquisa e assim tornaram possível que eu iniciasse o processo de pensamento e estudos que deu origem a este livro. Parte do material foi transmitido em forma de conferências, na Universidade Americana de Beirute em 1956-7, na Faculdade das Artes e Ciências em Bagdá em 1957, em Oxford em 1958-9, no Institut des Hautes Études de Túnis em 1959; devo agradecer àqueles que me propiciaram a oportunidade de dar essas conferências e aos estudantes que, por meio de perguntas ou silêncio, me ajudaram a ver o que estava claro na exposição e o que não estava. Sou grato pelo estímulo e bondade à srta. Margaret Cleeve, ex-secretária de Pesquisa do Instituto Real de Relações Exteriores, e a seu sucessor, sr. A. S. B. Olver; apreciei muitíssimo a cortês suspensão de descrença com que recebiam toda afirmação de que o livro estava quase terminado e logo estaria nas suas mãos. Sou igualmente grato àqueles amigos que o leram e criticaram na sua totalidade ou em parte: Richard Walzer, Bernard Lewis, Charles Issawi, Walid Khalidi, Malcolm Kerr, Elie Kedourie e Sylvia Haim. Tenho uma dívida especial para com a srta. Ursula Gibson, que datilografou o manuscrito, e para com a srta. Hermia Oliver da equipe editorial de Chatham House, que conferiu ao meu texto datilografado, assim como a tantos outros, a compaixão intensa da arte dos curandeiros. A. H. Janeiro de 1983