Prólogo O que se diz no princípio? Talvez algumas pistas sobre a trajetória que levou a este livro, não para reproduzir um diário de bordo, mas tão-somente familiarizar o leitor com climas propícios ao momento de embarque. Há cerca de oito anos tiveram início as pesquisas e discussões que acabaram resultando neste ensaio. Sua redação propriamente dita deu-se em várias etapas, descontínuas no tempo e no espaço, entre março de 1985 e novembro de 1987. Na sua maior parte foi escrito no Embu, pequeno município a sudoeste da Grande São Paulo, com todas as influências dessa ambigüidade de suburbe necessária ao entendimento dos desencontros que empurram o campo na direção da cidade e vice-versa. Houve, no percurso, interregno fundamental: muitas notas e revisões foram produzidas durante passagem de quase um ano na praia do Bessa, quilômetro 11 da Transamazônica, Cabedelo, próximo ao ponto extremo oriental da América do Sul. Este registro vale, quando não, por uma afinidade temática das mais íntimas e caras ao corpo da escrita: pois, nos capítulos seguintes, cada escala é feito um ponto extremo, seja no sentido geográfico, seja sobretudo no histórico, situações-limite da experiência humana, desterros involuntários que podem também ser lidos, a meu ver, como metáforas da história moderna e contemporânea, ali onde as fronteiras entre vida nacional e vida mundial já foram de há muito postas em xeque. Menos do que ensaio de tradições culturais, esta é uma pequena resenha em torno do dilaceramento de convicções, identidades e referências. Menos do que a "estrutura das mentalidades", é sua crise e estilhaçamento que se busca rastrear. De saída, uma advertência: não imagine o leitor que o caráter aparentemente vaporoso e precário das imagens na modernidade pode trazer alguma leveza grácil aos destinos das fantasmagorias da técnica. Ao contrário, todos sabemos a barra de viver sem chão, o peso de cada minuto nesses tristes trópicos, a desolação que é ver a cidade virada pelo avesso; todos sentimos, num dia qualquer, a vertigem do vazio, num cenário em que já não cabem mais maravilhas mecânicas. Este trabalho tece também, à sua maneira, o elogio dos viajantes e do nomadismo moderno. Nesse plano, viagens que realizei pelo Norte-Nordeste, em 1980-2, motivaram instantâneos pessoais e intelectuais extremamente fecundos para o andamento deste roteiro, em particular no tocante à arqueologia industrial e ferroviária. Destaco, aqui, visitas a antigas fábricas do século XIX nos interiores da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Maranhão. Quanto à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a estada em Porto Velho, em julho de 1982, permitiu a assimilação de um clima histórico-psicológico de extrema relevância para o dimensionamento adequado do objeto de estudo. Três anos mais tarde, uma excursão meteórica à Espanha e à Alemanha colocou ante os olhos novas conexões entre o que de mais moderno exibíamos aqui e o que de mais arcaico persistia em paisagens do Velho Continente. Experiências marcantes igualmente pelo lado afetivo de toda cartografia. Assim, também, foi significativo em múltiplos sentidos reencontrar Buenos Aires inteira (quase), após a Idade do Horror, em 1984 e 1985. No processo de descobertas sucessivas, é preciso mencionar, além das fontes institucionais, o papel insubstituível de sebos e livreiros antiquários, cujas prateleiras percorri não poucas vezes só pelo prazer do achado, surpreendendo raridades empoeiradas - algumas preciosíssimas aos rumos deste volume - em ruas do Recife, Salvador, João Pessoa, Rio de Janeiro e São Paulo. Na origem do projeto, o primeiro desejo era recuperar a história da construção da ferrovia Madeira-Mamoré. As narrativas belas e tristes de Neville B. Craig (1947) e Manoel R. Ferreira (1960) me causaram tanta impressão que a aventura já teria valido a pena se, ao menos, conseguisse contar de novo a mesma história com aquele idêntico equilíbrio entre engenho e arte, melancolia e ingenuidade. Mas esse narrador ansiosamente aguardado morreu antes de o livro começar. A narrativa buscada permaneceu, pois, numa ordem invisível do discurso, ao mesmo tempo intacta e inalcançável. Inquietaram-me desde logo a intensidade e rapidez com que a Madeira-Mamoré virou lenda, com que seus vagões e locomotivas passaram ao imaginário como fantasmas. A incursão que ensaiei tem muito a ver com essas aparições. A partir daí, o trânsito do reino das fantasmagorias para o mundo dos espetáculos foi decorrência inevitável, e quase imediata. A Madeira-Mamoré era o espetáculo privilegiado da civilização capitalista na selva. Retrocedi, então, à urbe do século XIX e aos primórdios desse maravilhamento. A intimidade entre mecanismo e teatro, entre ferrovia e cinema poderia conduzir-nos longe demais. Fixei apenas algumas imagens dessa temática, isso no capítulo 1. Sobre essa ponte entre caminhos de ferro e olhar de cinematógrafo, basta lembrar, aqui, que aquele invento fantástico dos irmãos Lumière exibia, entre suas primeiras películas, L'arrivée d'un train(1895), onde se via, num plano geral, a estação vazia, um ferroviário uniformizado passando, para na seqüência aparecer, desde o horizonte, um ponto negro aumentando rapidamente, até a locomotiva preencher a tela inteira, como que se precipitando sobre os espectadores. Em seguida o comboio pára junto ao cais; abrem-se as portas; passageiros sobem ou descem. Com a ferrovia e a navegação a vapor, o mercado mundial ganhava ao mesmo tempo concretude, o que vale dizer, nesse caso, que a forma fetiche das mercadorias estava definitivamente liberada para encantar toda a humanidade. Daí, também, muito da intransparência e mistério romântico que envolvem o espaço das estações ferroviárias, essas catedrais do século XIX, até mesmo em suas estruturas despojadas, à base de ferro, vidro e tijolo aparente. É que, sob o peso e a envergadura das relações internacionais que nelas tinham vazão, suportando a liberdade de cada vão em seus espaços amplíssimos, ''já não conseguiam tornar palpável para os passageiros a rede de tráfego a que davam acesso; nada que se comparasse à clareza com que outrora os portões da cidade sugeriam as ligações concretas com as vilas adjacentes e a cidade mais próxima". Para acompanhar a representação da sociedade das trocas desiguais e do maquinismo como espetáculo, nada melhor do que percorrer o cenário das exposições universais, em especial na segunda metade do século XIX. Foi esse o panorama que se esboçou no capítulo 2. Sempre estive convencido - e ainda mais após este trabalho - a respeito do movimento simultâneo e internacional de constituição das sociedades produtoras de mercadorias. Assim, as formas e cadências da modernidade industrial, suas relações técnicas com a paisagem e o trabalho, bem como seus impactos psicossociais, visíveis nas marcas de violência e nos destroços emergidos de culturas preexistentes, constituem padrões detectáveis tanto na Europa quanto no Brasil Colônia e Império, até mesmo nas intermitências e descompassos que lhes são próprios. O capítulo 3 apresenta alguns elementos em torno dessa entrada do Brasil na era do espetáculo. Sem falar do pioneirismo das artes fotográficas em nosso país, cujas descobertas e ensaios não podem ser vistos como mero acaso nas calmarias do Império, vale realçar, aqui, que desde a primeira Exposição Nacional (1861) é o Brasil inteiro exibido como parceiro passável no rol das nações civilizadas. Alguns exemplos confirmam significativamente essa tendência. Na Exposição de 1866, já havia uma seção específica consagrada à etnografia. Estávamos, portanto, diante do índio-vitrine. Já na quarta Exposição, de 1875, foi exibida, numa seção dedicada a "Objetos ilustrativos dos esforços empregados no melhoramento da condição física, intelectual e moral do homem" - que incluía, numa classe específica, a possibilidade de expor "Habitações com as condições e regulamentos sanitários para operários, trabalhadores rurais, com os requisitos de barateza, salubridade etc." -, a planta de um projetado "cortiço monstro", de autoria do engenheiro Lucarelli, do Rio de Janeiro. Já aqui, nessa figura, o proletariado-vitrine. No mesmo evento, as obras públicas se organizavam em mostra à parte, estradas de ferro nacionais ali incluídas, mesmo as que ainda não haviam saído do papel, como a Madeira-Mamoré. Em 1881, afinal, com uma exposição de história do Brasil, era essa própria disciplina convertida em espetáculo. De todo modo, o ambiente típico dessas manifestações era o da capital do Império e de alguns centros urbanos provinciais. No capítulo 4, então, esboça-se a passagem dos espaços da metrópole para a selva. O pressuposto é que a vertigem fantasmagórica do homem moderno possui um mesmo fundo, tanto nos "centros" quanto nas ''periferias" do sistema. Variam as figuras, a intensidade, as especificações. Mas a sensação de deslocamento perene, o corte de raízes, as peripécias da retina, a navegação à deriva são fenômenos experimentados, desde o início da Idade Moderna, cada vez mais em escala planetária. O drama ferroviário da Madeira-Mamoré será por fim focalizado, agora em primeiro plano, nos capítulos 5 e 6. Conforme já sugeri, não se trata de reconstrução histórica exaustiva, mas apenas fachos esporádicos de luz sobre aquela era extinta, fogos-fátuos de uma memória coletiva irreversivelmente soterrada. Muitos personagens parecerão, assim, ausentes nessa história. Os índios, por exemplo. No caso da Madeira-Mamoré, seus ataques pertencem quase ao domínio da lenda. Na verdade, desde o século XVII e sobretudo no XVIII, já havia sido completada, com bandeirantes, jesuítas e homens a serviço da centralização pombalina, grande parte da obra destruidora das culturas indígenas naquela região. Por isso, talvez, na construção da ferrovia, em especial no início do século XX, apareçam tão raros relatos sobre conflitos com indígenas. A visão de um caripuna mutilado entre funcionários do Hospital da Candelária é, provavelmente, a imagem mais fiel, agônica, do índio naquela ferrovia. Muitos deles, sem dúvida, terão se engajado nos acampamentos de obras, no corte da madeira de lei, sem falar das populações já incorporadas na indústria da borracha - fantasmas entre fantasmas. A viagem de Claude Lévi-Strauss nos anos 1930 pelo Noroeste do Brasil, de onde nasceu uma das obras mais fascinantes da antropologia do século XX - Tristes trópicos, homenagem irônica do autor ao gênero das narrativas de viajantes -, representa uma espécie de contato tardio com restos já quase arqueológicos (hoje inteiramente) de culturas indígenas e com sinais sinistros e ruínas prematuras da passagem, por ali, dos mensageiros da civilização ocidental. Nesses Tristes trópicos, sintomaticamente, Lévi-Strauss imagina as metrópoles americanas que conheceu naquela mesma época - incluídas aí Nova York, Chicago e São Paulo - como imensas vitrines de exposições internacionais, tal a discrepância de tempos e culturas nelas condensadas, cidades que envelheciam sem lastro de antigüidade. É nesse livro, também, que Goiânia aparece como uma cidade-fantasma, espécie de Brasília avant la lettre, muitas décadas antes que o brilho do pó de césio-137 iluminasse tragicamente os destinos da nação, paisagem lunar de um cenário de faroeste fantástico, em que atuam e se chocam de modo fatal o modernismo dos tecnocratas e a curiosidade dos catadores de ferro-velho ante os segredos de mecanismo estranho e abandonado. Na mesma obra, além disso, há uma visão das linhas telegráficas em ruínas, estruturas civilizatórias que Rondon implantou mas a selva teima em devorar, na desolação do cerrado de nambiquaras errantes e miseráveis. Ou, então, um ramal perdido que não leva a lugar nenhum, na vasta depressão do Pantanal, registro patético dessas ferrovias-fantasmas que palmilham a história econômica do país, antecipando projetos como o dos marimbondos de ferro que hoje o presidente quer fazer passar na sua república repleta de trilhos e vazia de sentido, delírio progressista arquetípico rumo à estação Açailândia. Lá, enfim, o baile melancólico dos seringueiros, tristes em suas toadas solitárias na fronteira da civilização, dançarinos de uma história que literalmente os jogou no fim da linha. Se Craig e Ferreira ensinaram-me algo da letra, Lévi-Strauss introduziu a melodia mais apropriada. É tendo ao fundo seu lamento em tom menor, elogio nada retórico aos homens primitivos da selva, que se poderia ler o Epílogo ao final deste volume. Quanto à técnica de montagem ali experimentada, recurso cinematográfico um tanto tardio, é bem possível que, se fosse reescrevê-lo, hoje, o livro inteiro saísse um pouco assim. Contingência de época e espírito. Fragmentos de história com sentido. Fatalidades do simultaneísmo e da intermitência dos processos pesquisados. Esse movimento novo e fragmentário não passou despercebido aos seus primeiros contemporâneos. Rozendo Moniz Barreto, em suas anotações sobre a Exposição Nacional de 1875, por exemplo, fala dessa experiência vertiginosa de uma viagem no tempo e no espaço que domina o visitante naquele recinto. Num capítulo intitulado "Efeito mágico das exposições para os nacionais", o cronista relata o fascínio da "maior sedução para o espírito" que representava "ver como se resume entre quatro paredes o mais rico e abundante Império!". E continua por várias páginas, sugerindo essa articulação entre progresso material e fantasia lúdica dentro de um espaço interiormente organizado pelo espetáculo da sociedade industrial, não em função de suas paisagens "típicas", mas justamente pelos confrontos sucessivos estabelecidos na psique do espectador: Entre feiticeiros espécimens, que determinam a mais prolongada associação de idéias, subitamente restitui-se o homem, como se possuísse o talismã da dupla visão, aos sítios mais prediletos da infância, aos primores naturais que lhe iniciaram o proveitoso estudo em recreativas digressões, aos usos cotidianos e indispensáveis da família, enfim a um sem-número de particularidades que é inútil procurar em outra parte e que, por mais vistas que sejam, não deixam de parecer sempre novas e belas. O autor poderia melhor dizer: novas e sublimes. De todo modo, eloqüência burocrática à parte, estão se introduzindo nas ''culturas brasileiras", pelo menos a partir dos anos 70 do século XIX, temas e percepções pertinentes ao universo do modernismo. Quando não, esse culto do espaço interior, do devaneio pelo mundo dos objetos, já é próprio de uma prospecção burguesa do país, mesmo que o esquadrinhamento do território não se faça ainda sob o signo do prosaico, mas contenha esse acento forte numa reminiscência comunitária. Que não equivale exatamente à mera reprodução do mito da terra natal, porque é revivida agora sob efeito de um "talismã da dupla visão", que só o espetáculo moderno é capaz de proporcionar. Aqui, pois, a viagem se dá no interior das galerias de uma exibição, apesar das instalações não sob encomenda do edifício da Secretaria da Agricultura no Rio. Esse transe lúdico-infantil constitui uma matriz importante no universo dos espetáculos do maquinismo. É da mesma modalidade, por exemplo, que as sensações experimentadas por Elias Canetti, ainda menino, numa espécie de trem-fantasma de um parque de diversões em Viena, lá por volta de 1913, quando visões e acontecimentos se simulam sucessivamente à janela do vagão, até o clímax representado pela cena do terremoto de Messina, momento em que o artifício ocupa completamente a alma, e somos com efeito transportados para o encanto de outras espaço-temporalidades. Mas pode ser, igualmente, que o trem-fantasma trafegue na contramão da história. Trótski, em 1907, após a revolução operária abortada de 1905, após prisão e fuga forçada, clandestino, viajando por tundras e taigas, com um trenó, até a região de minas dos Urais, tenta um retorno a São Petersburgo como passageiro anônimo num trem. Nessa passagem, a locomotiva surge não como metáfora do progresso da história, mas, ao contrário, como signo de seus desvios ocultos, quando a perspectiva revolucionária se recolhe e regressa às origens em bitola estreita. Trótski gravou assim aquelas impressões: Enquanto viajava no trem de bitola estreita dos Urais ainda não me encontrava fora de perigo; num ramal regional os ''estranhos" são logo notados e, se tivessem recebido instruções telegráficas de Tobolsk, eu poderia ter sido detido em qualquer estação. Mas depois de fazer a troca de trens e encontrar-me num vagão confortável da estrada de ferro de Perm, soube que havia ganho. O trem passou pelas mesmas estações nas quais tão pouco tempo atrás nos haviam recebido tantos gendarmes, policiais e tropas. Mas agora eu ia na direção oposta e também meus sentimentos eram totalmente diferentes. No início o vagão espaçoso e quase vazio me pareceu fechado e sufocante. Levantei-me e me aproximei da plataforma que se encontra entre os carros; estava escuro, soprava um forte vento e de meu peito brotou espontaneamente um forte grito: um grito de felicidade e liberdade. Entretanto, o trem da estrada de ferro Perm-Kotlass me levava para a frente, para a frente, sempre para a frente. Relido esse texto, hoje, em retrospectiva, sabe-se que o "para a frente" pode se desdobrar tanto nas utopias revolucionárias de uma geração quanto nos horrores reacionários produzidos pelos donos do poder e da guerra, das imagens e das palavras. Tendo-se cruzado, mais "para a frente", no século XX, tanto com os sonhos de mundos interconectados, inteligíveis e habitáveis, quanto com campos de concentração e de desengano. Trótski embarcou naquela viagem ferroviária de trás "para a frente", que lhe inverteu até os sentimentos, em 25 de fevereiro de 1907. Em 2 de março já passeava pela Perspectiva Nevski, em Petersburgo. De volta ao espaço da metrópole, estava, por enquanto, livre. Poucos meses mais tarde, naquele mesmo ano, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré era reiniciada após quase trinta anos do fracasso de sua última tentativa. Trótski nada devia saber dos destinos dos milhares de miseráveis que morreriam sob os trilhos da obra fantasmagórica. Os construtores da Madeira-Mamoré tampouco teriam ouvido falar do revolucionário russo, mesmo alguns dentre eles provenientes daquele país, cerca de sete, segundo as estatísticas da empresa. No entanto, por trás das fotografias e textos, trens continuavam a correr soltos pelas estepes, selvas, desertos, cidades. Fantasmas, idem. A história e a psicanálise também cruzavam seus ramais. A exhibitio da era burguesa multiplicava ainda mais suas formas de aparição. Décadas antes, quando as ferrovias surgiram, houve também quem nelas cresse como condutos da paz, espécie de versão primeva da teoria atual acerca do poder de dissuasão dos arsenais nucleares. Melhor entrar logo no assunto. Embu, 1985-7