1941 24 de setembro Chove sem parar faz três dias. Devagarinho, miudinho, como para azucrinar os que gostam de sol, como eu. Um céu baixo cor de ratão oprime a cidade. E aqui estou, tristonha, arrepiada de frio, como um passarinho molhado empoleirado num fio de telefone. O vento hoje anda correndo e uivando como um desesperado por céus, ruas e descampados. Atrás de quem? Talvez do tempo. Diz a Dinda que o vento e o tempo têm uma briga antiga, que vem do princípio do mundo. Maneira esquisita de começar um diário. Decerto um jeito de dizer a mim mesma que não estou levando a sério este negócio. Mas estou, e muito. Preciso escrever certas coisas que venho pensando e sentindo. A quem mais posso me confessar senão a mim mesma? Isso prova que, como todo o mundo, tenho dupla personalidade. Agora sou a que escreve e depois serei a que lê. Qual! Tenho muitas Sílvias dentro de mim. Cada vez que eu reler estas páginas, serei outra. E cada uma dessas outras será diferente da que escreveu. E mesmo a que escreveu não foi sempre a mesma, mas várias. Isso tudo me alarma um pouco. Comprei este diário a semana passada na Lanterna de Diógenes. Era o único que existia na casa. Tipo álbum, fecho de metal, uma gaivota dourada na capa de plástico azul imitando couro. Ridículo! Senti necessidade de explicar à empregada da livraria que eu queria o álbum para dá-lo de presente a uma mocinha. Bom, não foi uma mentira completa. Porque na realidade dei o diário à jeune fille que em parte ainda sou. Agora só falta o amor-perfeito seco entre duas páginas. Não, isso não se usa mais. Mas que é que se usa hoje em dia? Angústia. Tio Bicho fala no Angst de seus filósofos alemães. Minha angústia é menor. Angustiazinha nacional e municipal. Tem um mérito que é ao mesmo tempo um inconveniente. É minha. Em certos momentos, chegamos a ter até um certo orgulho de nossas tristezas e infelicidades, e usamos essas "desgraças" para comover os outros e arrancar deles piedade ou amor. (Não quero piedade, quero amor.) Em suma, uma chantagem. Um caso parecido com o da Palmira Pepé, que há anos anda pelas ruas da cidade manquejando, choramingando e mendigando. Quando os médicos querem curar-lhe o defeito da perna, a Palmira recusa, alegando que, se sarar, não terá mais razão para pedir esmolas. Não quero usar o truque da Palmira. É por isso que vou desabafar neste livro. É mais decente lamber as próprias feridas na solidão, a portas fechadas. Mas o certo mesmo é curá-las. Ouço as goteiras. É a musiquinha do tédio, esse "inimigo cinzento", como costuma dizer o Floriano. Não contava escrever esse nome tão cedo. Ia esperar um intervalo decente... o que prova que ainda não tenho intimidade com o diário. Preciso fazer exercícios de franqueza. Para começar, pergunto a mim mesma se Floriano não terá sido o motivo deste jornal. Sim, foi, mas não o único. Nem mesmo o principal, apesar da grande importância afetiva que ele tem na minha vida. Surgiu um novo "possível amor" no meu horizonte espiritual: Deus. Através da correspondência que mantivemos entre 1936 e 1937, Floriano com seu agnosticismo muito fez (inconscientemente, claro) para afastar de mim esse possível rival. Meu amigo cessou de me escrever, mas Deus continuou onde estava. Afinal de contas, onde está mesmo Deus? Não sei. Sinto que ainda não o avistei. Se Ele me conceder a graça da Sua presença, estou certa de que minha vida mudará para melhor. Em suma, necessito que Deus exista. 28 de setembro Continua a chuva. Mas não comprei este livro para fins meteorológicos. Preciso ter uma conversa muito sincera comigo mesma. Botar as cartas na mesa. Olhar de frente umas certas situações que me inquietam. São problemas que se apresentam na forma de pessoas: minha mãe, Floriano, Jango, padrinho Rodrigo... Mas essas quatro pessoas se fundem numa só. Está claro que meu problema maior sou eu mesma. Cada vez mais, me convenço da utilidade deste jornal. Ele me pode ajudar muito na exploração desses poços insondados que temos dentro de nós, e que tanto nos assustam por serem escuros e parecerem tão fundos. Por outro lado, talvez eu possa deixar nestas páginas, de vez em quando, discretamente, um bilhetinho a Deus. O endereço? Posta-restante. Estou convencida de que um dia, dum modo ou de outro, Ele me responderá... 29 de setembro Acabo de fazer uma importante descoberta. No inferno o castigo não é o fogo eterno, mas a eterna umidade, o que é muito mais terrível. Neste quinto dia de chuva ininterrupta, sinto que cogumelos me brotam no cérebro. Um bolor esverdeado me forra a alma. Sou um vegetal. 6 de outubro Oito da manhã. Acabo de dar café ao meu marido, como uma esposa que se esforça por ser exemplar. A comédia continua. Represento como posso. Mas não posso muito. Não tenho talento de atriz. Não consigo decorar o meu papel. Falo e me movimento no palco sem convicção. Não presto atenção nas deixas de Jango. Isto é: não digo nem faço no momento exato as coisas que em geral uma boa esposa diz e faz. E não é por falta de hábito, pois esta peça já está no cartaz há mais de três anos... De vez em quando tento improvisar, sair fora do papel, dizer o que sinto, o que penso mesmo de certas situações. Jango então me olha admirado, como se estivesse me vendo pela primeira vez. E não diz nada. Fala pouco. Não tem o talento nem o gosto do diálogo. Está habituado a gritar ordens aos peões. Para me dar a entender que seus silêncios e casmurrices não significam que deixou de me querer, ele freqüentemente me abraça, me beija e parece ficar seguro de que isso resolve tudo. Muitas vezes tentei entabular com ele conversas francas e sérias, dessas capazes de mudar a vida dum casal ou pelo menos deixar uma janelinha aberta para melhores perspectivas. Mas ele recusa obstinadamente aceitar a realidade desse outro mundo em que tais problemas se apresentam e tais conversas são possíveis e necessárias. Essa teimosia em negar a existência das coisas que estão fora dos limites de seu mundo, de suas necessidades, gostos e conveniências não deve ser apenas egocentrismo, mas insegurança: esse medo que temos de visitar um país estrangeiro cuja língua não falamos nem entendemos. Jango acha que eu invento, imagino coisas que na realidade não existem. Mais duma vez esquivou-se de perguntas que lhe fiz sobre nossas relações dizendo apenas: "Foi o que ganhei por ter casado com uma professora". É um homem sólido e prático, incapaz de sonhos e fantasias. Como pode acreditar em feridas da alma quem vive tão preocupado com as bicheiras dos animais do Angico? Se eu lhe contar meus problemas espirituais, temo que me receite creolina. Como tudo seria mais fácil na vida (deve refletir ele) se pudéssemos juntar todos os nossos parentes, amigos e dependentes que têm problemas de consciência, e atirá-los como se faz com o gado, dentro dum banheiro cheio de carrapaticida... Jango é um homem bom e decente. O que acabo de escrever sobre ele é grosseiro e injusto. Resultado dum acesso de mau humor. Estou pensando em rasgar esta página. Mas não rasgo. Um diário não é apenas um escrínio onde a gente guarda as raras jóias que a vida nos dá. É também uma lata de lixo onde despejamos a cinza de nosso tédio, o cisco de nossas tristezas, a aguada bile de nossos odiozinhos e birras de cada dia. 15 de outubro Temos a tendência de classificar as pessoas como os naturalistas classificam as borboletas, feito o que as espetamos com um alfinete contra um quadro... e pronto!, passam a ser peças do nosso museu particular. Acho que foi isso que Jango fez comigo. Não quero fazer o mesmo com ele. Duma coisa, porém, tenho certeza: não nascemos para ser marido e mulher. Somos psicologicamente antípodas. Um realista diria que o mundo de Jango é, ao passo que o meu seria. Considero-me irmã gêmea de Floriano. Se eu me tivesse casado com ele, teríamos cometido um incesto espiritual. Mas casando com Jango, que sempre considerei um irmão, desde o tempo em que éramos crianças, estou cometendo um incesto carnal, que me repugna e que me dá um permanente sentimento de culpa. Nestes últimos meses, tenho feito mentalmente a necropsia de nosso casamento. Qual foi a sua causa mortis? Atribuir toda a culpa do fracasso a mim mesma seria dar uma explicação fácil demais ao caso. Eximir-me de qualquer responsabilidade seria injusto, insincero. Pergunta essencial: "Por que casei com Jango?". Respostas que me ocorrem: Porque ele insistiu com uma fúria apaixonada. - Porque desejei despeitar Floriano por ele me ter recusado. - Porque sabia que minha mãe estava para morrer e a idéia de ficar sozinha no mundo me apavorava. - Porque queria a qualquer preço vir morar no Sobrado... Mas não teria havido também da minha parte uma certa inércia, uma espécie de covardia moral, receio ou preguiça de dizer não, de lutar contra todos e gritar que não me podia casar com Jango pela simples razão de que não o amava como homem, embora lhe quisesse bem como a um irmão? Não sei. Talvez eu me deva fazer justiça e reconhecer que também tive pena do rapaz. Ele vivia repetindo que precisava de mim e que eu lhe "estragaria a vida" se continuasse a dizer não. Lembro-me duma frase de minha mãe: "Que é que te custa fazer esse moço feliz?". Naqueles meses de 1937, eu estava confusa e desolada. Tinha chegado à conclusão de que Floriano não me amava. E isso me doía. Por essa ocasião recebi uma carta de meu padrinho que foi decisiva. Quero-te como a filha que perdi. Tu me darias uma imensa alegria se casasses com o Jango, que tanto te ama. Pensa que está ao teu alcance tornar esse bom e leal campeiro um homem venturoso. O Angico precisa dele, e ele precisa de ti. Na noite em que Jango e eu contratamos casamento, na hora em que os convidados começaram a chegar para a festa, senti de repente uma espécie de pânico. Fiquei de mãos trêmulas e geladas. Floriano havia chegado do Rio no dia anterior, mas eu ainda não o tinha visto. Não sabia que dizer ou fazer quando o encontrasse. Temia trair meus sentimentos ali na frente de toda aquela gente. Houve um instante em que me encolhi num canto da sala de visitas e fiquei olhando fixamente para o retrato de meu padrinho. Nesse momento tio Toríbio entrou, com aquele seu jeitão de boi manso e bom, me olhou bem nos olhos, me acariciou a cabeça, como se eu fosse ainda uma criança, e perguntou: "Tens a certeza de que não vais cometer um erro? Pensa bem. Ainda é tempo". Eu quis dizer alguma coisa, mas não consegui pronunciar a menor palavra. E à meia-noite, quando no centro do estrado, no quintal, Floriano me abraçou, me beijou os cabelos e o rosto, murmurando "Minha querida... minha querida...", tive a impressão de que subia às estrelas. Floriano me amava, não havia a menor dúvida! O que eu devia ter feito naquele instante era agarrar-lhe o braço e gritar: "Eu te amo também! Vamos embora daqui, já, já!... antes que seja tarde demais!". Mas qual! O respeito humano, a minha timidez, e principalmente esse sentimento de obediente inferioridade que sempre senti diante da "gente grande" do Sobrado, de mistura com gratidão e afeto - tudo isso fez que eu ficasse muda e paralisada... Perdi Floriano de vista em meio do tumulto. E naquela madrugada terrível, quando velavam o corpo de tio Toríbio na sala de visitas, e quando eu já tinha chorado todas as lágrimas que existiam dentro de mim - inclusive lágrimas antigas e reprimidas, de outros choques e desgostos -, fiquei a olhar para as mãos que me tinham acariciado a cabeça havia poucas horas. "Tens a certeza de que não vais cometer um erro?" O erro já estava cometido. Mas aquelas mãos pálidas pareciam falar: "Mas não! Ainda há tempo. O Floriano está ali no canto, olhando para ti, te pedindo alguma coisa". Impossível, tio Toríbio! Sou ainda a filha da pobre modista, a menina de olhos assustados que nunca ousou contrariar o senhor do Sobrado. Exatamente no momento em que eu pensava essas coisas, Jango aproximou-se de mim, abraçou-me e pôs-se a chorar, com a sua cabeça encostada na minha.