Trecho do livro REPRESENTAÇÕES DO INTELECTUAL

1. REPRESENTAÇÕES DO INTELECTUAL Os intelectuais formam um grupo de pessoas muito grande ou extremamente pequeno e altamente selecionado? Sobre essa questão, duas das mais famosas descrições de intelectuais do século XX são fundamentalmente opostas. Antonio Gramsci, o marxista, militante, jornalista e brilhante filósofo político italiano, que foi preso por Mussolini entre 1926 e 1937, escreveu nos seus Cadernos do cárcere que "todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais". A própria carreira de Gramsci exemplifica o papel que ele atribuiu ao intelectual. Filólogo capacitado, ele foi ao mesmo tempo um organizador do movimento da classe operária italiana e, em sua atividade jornalística, um dos analistas sociais mais conscientemente ponderados, cujo objetivo era construir não apenas um movimento social, mas também toda uma formação cultural associada a esse movimento. Gramsci tenta mostrar que as pessoas que desempenham uma função intelectual na sociedade podem ser divididas em dois tipos: primeiro, os intelectuais tradicionais, como professores, clérigos e administradores, que, geração após geração, continuam a fazer a mesma coisa; e, segundo, os intelectuais orgânicos, que Gramsci considerava diretamente ligados a classes ou empresas, que os usavam para organizar interesses, conquistar mais poder, obter mais controle. Assim, Gramsci diz o seguinte sobre o intelectual orgânico: "o empresário capitalista cria junto de si o técnico industrial, o especialista em economia política, os organizadores de uma nova cultura, de um novo sistema legal etc.". Nos dias de hoje, o especialista em publicidade ou relações públicas, que inventa técnicas para obter uma maior fatia de mercado para um detergente ou uma companhia de aviação, seria considerado, segundo Gramsci, um intelectual orgânico, alguém que numa sociedade democrática tenta ganhar a adesão de clientes potenciais, obter aprovação, nortear o consumidor ou o eleitorado. Gramsci acreditava que os intelectuais orgânicos estão ativamente envolvidos na sociedade; isto é, eles lutam constantemente para mudar mentalidades e expandir mercados; ao contrário dos professores e dos clérigos, que parecem permanecer mais ou menos no mesmo lugar, realizando o mesmo tipo de trabalho ano após ano, os intelectuais orgânicos estão sempre em movimento, tentando fazer negócios. No outro extremo se encontra a célebre definição de intelectuais de Julien Benda: um grupo minúsculo de reis-filósofos superdotados e com grande sentido moral, que constituem a consciência da humanidade. Apesar de ser verdade que o tratado de Benda La trahison des clercs - a traição dos intelectuais - ficou para a posteridade mais como um duro ataque aos intelectuais que abandonam sua vocação e comprometem seus princípios do que como uma análise sistemática da vida intelectual, Benda cita, de fato, um pequeno número de nomes e de características principais dos que considerava serem verdadeiros intelectuais. Sócrates e Jesus são mencionados com freqüência, além de outros exemplos mais recentes, como Espinosa, Voltaire e Ernest Renan. Os verdadeiros intelectuais constituem uma clerezia, são criaturas de fato muito raras, uma vez que defendem padrões eternos de verdade e justiça que não são precisamente deste mundo. Daí o termo religioso que Benda lhes atribui - clérigos -, uma distinção na posição social e no desempenho que ele sempre contrapõe aos leigos, aquelas pessoas comuns interessadas em vantagens materiais, em promoção pessoal e, se possível, numa relação próxima com os poderes seculares. Os verdadeiros intelectuais, diz ele, são aqueles cuja atividade não é essencialmente a busca de objetivos práticos, ou seja, todos os que procuram sua satisfação no exercício de uma arte ou ciência ou da especulação metafísica, em suma, na posse de vantagens não materiais, daí de certo modo dizerem: 'Meu reino não é deste mundo'. No entanto, os exemplos de Benda deixam muito claro que ele não endossa a noção de pensadores totalmente descomprometidos, alheios a este mundo, fechados numa torre de marfim, voltados intensamente para si próprios e devotados a temas obscuros, e talvez mesmo ocultistas. Os verdadeiros intelectuais nunca são tão eles mesmos como quando, movidos pela paixão metafísica e princípios desinteressados de justiça e verdade, denunciam a corrupção, defendem os fracos, desafiam a autoridade imperfeita ou opressora. "É necessário lembrar", pergunta Benda, como Fenelon e Massillon denunciaram certas guerras de Luís XIV? Como Voltaire condenou a destruição do Palatinado? Como Renan denunciou as violências de Napoleão, e Buckle, as intolerâncias da Inglaterra em relação à Revolução Francesa? E, nos nossos tempos, Nietzsche em relação às brutalidades da Alemanha contra a França? De acordo com Benda, o problema dos intelectuais de hoje é que eles concederam sua autoridade moral àquilo que, numa frase premonitória, ele chama "a organização de paixões coletivas", tais como o sectarismo, o sentimento das massas, o nacionalismo beligerante, os interesses de classe. Benda escreveu isso em 1927, bem antes da época dos meios de comunicação de massa, mas ele pressentiu quão importante era para os governos terem como seus servidores aqueles intelectuais que podiam ser convocados não para dirigir, mas para consolidar a política governamental, para expelir propaganda contra inimigos oficiais, eufemismos e, em escala mais ampla, sistemas inteiros da Nova Língua Orwelliana, capazes de dissimular a verdade do que estava acontecendo em nome de "conveniências" institucionais ou da "honra nacional". A força da lamúria de Benda contra a traição dos intelectuais não se encontra na sutileza do seu argumento, nem no seu absolutismo quase impossível no que respeita a sua visão totalmente descomprometida da missão do intelectual. De acordo com a definição de Benda, os verdadeiros intelectuais devem correr o risco de ser queimados na fogueira, crucificados ou condenados ao ostracismo. São personagens simbólicos, marcados por sua distância obstinada em relação a problemas práticos. Por isso, não podem ser numerosos, nem desenvolver-se de modo rotineiro. Têm de ser indivíduos completos, dotados de personalidade poderosa e, sobretudo, têm de estar num estado de quase permanente oposição ao status quo. Por todas essas razões, os intelectuais de Benda formam inevitavelmente um grupo pequeno e altamente visível de homens - ele nunca inclui mulheres -, cujas vozes tonantes e imprecações indelicadas são vociferadas das alturas à humanidade. Benda nunca assinala como esses homens conhecem a verdade, ou se suas luminosas intuições dos princípios eternos não seriam, como as de Dom Quixote, pouco mais do que fantasias pessoais. Mas pelo menos não resta dúvida de que a imagem do verdadeiro intelectual, concebida por Benda, permanece de modo geral atraente e insinuante. Muitos dos seus exemplos, positivos e negativos, são persuasivos: um deles é a defesa pública da família Calas feita por Voltaire; ou, no extremo oposto, o nacionalismo repugnante de escritores franceses como Maurice Barrès, a quem Benda atribui perpetuar um "romantismo de aspereza e desprezo" em nome da honra nacional francesa. Benda foi espiritualmente moldado pelo caso Dreyfus e pela Primeira Guerra Mundial, ambos provas rigorosas para os intelectuais, que podiam optar por levantar a voz corajosamente contra um ato de injustiça militar anti-semita e de fervor nacionalista, ou ir timidamente atrás do rebanho, recusando-se a defender o oficial judeu Alfred Dreyfus, injustamente condenado, entoando palavras de ordem chauvinistas para atiçar a febre da guerra contra tudo o que fosse alemão. Depois da Segunda Guerra Mundial, Benda tornou a publicar seu livro, dessa vez acrescentando uma série de ataques contra intelectuais que colaboraram com os nazistas, bem como contra aqueles que, sem uma visão crítica, foram entusiastas dos comunistas. Mas no fundo da retórica combativa da obra basicamente conservadora de Benda encontra-se essa figura do intelectual como um ser colocado à parte, alguém capaz de falar a verdade ao poder, um indivíduo ríspido, eloqüente, fantasticamente corajoso e revoltado, para quem nenhum poder do mundo é demasiado grande e imponente para ser criticado e questionado de forma incisiva. A análise social que Gramsci faz do intelectual como uma pessoa que preenche um conjunto particular de funções na sociedade está muito mais próxima da realidade do que tudo o que Benda escreveu, sobretudo no fim do século XX, quando tantas profissões novas - locutores de rádio e apresentadores de programas de TV, profissionais acadêmicos, analistas de informática, advogados das áreas de esportes e de meios de comunicação, consultores de administração, especialistas em política, conselheiros do governo, autores de relatórios de mercado especializados e até mesmo a própria área do moderno jornalismo de massa - têm sustentado a visão do filósofo italiano. Hoje, todos os que trabalham em qualquer área relacionada com a produção ou divulgação de conhecimento são intelectuais no sentido gramsciano. Na maior parte das sociedades industrializadas do Ocidente, a relação entre as chamadas indústrias do conhecimento e as que estão ligadas à produção mecânica e artesanal propriamente ditas tem crescido vertiginosamente a favor das indústrias do conhecimento. O sociólogo americano Alvin Gouldner disse há vários anos que os intelectuais eram uma nova classe, e que os administradores intelectuais tinham agora substituído, em grande escala, as velhas classes endinheiradas e abastadas. Entretanto, Gouldner também afirmou que, em virtude de sua posição ascendente, os intelectuais não eram mais pessoas que se dirigiam a um público vasto; em vez disso, tinham se tornado membros do que ele chamou uma cultura do discurso crítico. Todos os intelectuais, o editor de um livro e o autor, o estrategista militar e o advogado internacional, falam e lidam com uma linguagem que se tornou especializada e utilizável por outros membros da mesma área: especialistas que se dirigem a outros experts numa língua franca em grande parte incompreensível por pessoas não especializadas. De modo semelhante, o filósofo francês Michel Foucault disse que o chamado intelectual universal (é provável que ele tivesse Jean-Paul Sartre em mente) viu seu lugar tomado pelo intelectual "específico", alguém que domina um assunto, mas que é capaz de usar seu conhecimento em qualquer área. Aqui, Foucault estava pensando concretamente no físico americano Robert Oppenheimer, que saiu de sua área específica quando atuou como organizador do projeto da bomba atômica de Los Alamos em 1942-5 e depois se tornou uma espécie de comissário de assuntos científicos nos Estados Unidos. E a proliferação dos intelectuais se estendeu inclusive por um grande número de áreas em que eles - seguindo talvez as sugestões pioneiras de Gramsci nos Cadernos do cárcere, que, praticamente pela primeira vez, viu os intelectuais, e não as classes sociais, como essenciais para o funcionamento da sociedade moderna - se tornaram o objeto de estudo. Basta pôr as palavras "de" e "e" ao lado da palavra "intelectuais" para que, quase de imediato, apareça diante de nossos olhos uma biblioteca inteira de estudos sobre eles, bastante intimidante em sua amplitude e minuciosamente focada em seus detalhes. Além dos milhares de diferentes estudos históricos e sociológicos de intelectuais, há também intermináveis relatos sobre os intelectuais e o nacionalismo, e o poder, e a tradição, e a revolução, e por aí afora. Cada região do mundo produziu seus intelectuais, e cada uma dessas formações é debatida e argumentada com uma paixão ardente. Não houve nenhuma grande revolução na história moderna sem intelectuais; de modo inverso, não houve nenhum grande movimento contra-revolucionário sem intelectuais. Os intelectuais têm sido os pais e as mães dos movimentos e, é claro, filhos e filhas e até sobrinhos e sobrinhas. Há o perigo de que a figura ou imagem do intelectual possa desaparecer num amontoado de detalhes, e que ele possa tornar-se apenas mais um profissional ou uma figura numa tendência social. O que vou discutir nestas conferências tem como certas essas realidades do final do século XX, originariamente sugeridas por Gramsci, mas quero também insistir no fato de o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro competente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e de seus interesses. A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público. E esse papel encerra uma certa agudeza, pois não pode ser desempenhado sem a consciência de se ser alguém cuja função é levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que produzi-los); isto é, alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações, e cuja raison d'être é representar todas as pessoas e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou varridos para debaixo do tapete. Assim, o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos têm direito de contar com padrões de comportamento decentes quanto à liberdade e à justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões têm de ser corajosamente denunciadas e combatidas. Gostaria de expor isso em termos pessoais: como intelectual, apresento minhas preocupações a um público ou auditório, mas o que está em jogo não é apenas o modo como eu as articulo, mas também o que eu mesmo represento, como alguém que está tentando expressar a causa da liberdade e da justiça. Falo ou escrevo essas coisas porque, depois de muita reflexão, acredito nelas; e também quero persuadir outras pessoas a assimilar esse ponto de vista. Daí o fato de existir essa mistura muito complicada entre os mundos privado e público, minha própria história, meus valores, escritos e posições que provêm, por um lado, de minhas experiências e, por outro, a maneira como se inserem no mundo social em que as pessoas debatem e tomam posições sobre a guerra, a liberdade e a justiça. Não existe algo como o intelectual privado, pois, a partir do momento em que as palavras são escritas e publicadas, ingressamos no mundo público. Tampouco existe somente um intelectual público, alguém que atua apenas como uma figura de proa, porta-voz ou símbolo de uma causa, movimento ou posição. Há sempre a inflexão pessoal e a sensibilidade de cada indivíduo, que dão sentido ao que está sendo dito ou escrito. O que o intelectual menos deveria fazer é atuar para que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável. No fim das contas, o que interessa é o intelectual enquanto figura representativa - alguém que visivelmente representa um certo ponto de vista, e alguém que articula representações a um público, apesar de todo tipo de barreiras. Meu argumento é que os intelectuais são indivíduos com vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo na televisão. E essa vocação é importante na medida em que é reconhecível publicamente e envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade. Quando leio Jean-Paul Sartre ou Bertrand Russell, são suas vozes e presenças específicas e individuais que me causam uma impressão para além e acima dos seus argumentos, porque eles expõem com clareza suas convicções. Não podem ser confundidos com um funcionário anônimo ou um burocrata solícito. [...]